SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.12 número3Lesões viscerais e vasculares intra-operatórias durante a histerectomia total laparoscópica no contexto de patologia ginecológica benignaRapariga de 7 anos com queimadura vaginal por exposição a pilhas alcalinas índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Acta Obstétrica e Ginecológica Portuguesa

versão impressa ISSN 1646-5830

Acta Obstet Ginecol Port vol.12 no.3 Coimbra set. 2018

 

CASO CLÍNICO/ CASE REPORT

É mesmo uma gravidez ectópica anexial? Uma apresentação atípica

Is it really an adnexal ectopic pregnancy? An atypical presentation

Tatiana Semedo Leite*, Diana de Castro Almeida*, Olga Viseu**, João Dias***

Centro Hospitalar e Universitário do Algarve – Unidade de Faro – Serviços de Ginecologia e Obstetrícia

*Assistente Hospitalar de Ginecologia e Obstetrícia

** Assistente Hospitalar Graduada Sénior de Ginecologia e Obstetrícia

*** Assistente Hospitalar Graduado Sénior, Diretor do Serviço de Ginecologia da Unidade de Faro do Centro Hospitalar e Universitário do Algarve, Professor auxiliar convidado do Departamento de Ciências Biomédicas e Medicina da Universidade do Algarve

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


 

ABSTRACT

Ectopic pregnancy, a potentially life-threatening condition, represents 1-2% of all pregnancies. Tubal pregnancy represents about 95% of the cases, but other locations can occur such as ovary, uterine cervix and abdominal cavity. Abdominal pregnancy is a rare event, seen in about 1.3% of ectopic pregnancies. We present a case of abdominal pregnancy located at the Douglas pouch and superficially infiltrated the rectovaginal septum in a woman under intra-uterine device contraception.

Keywords: Ectopic pregnancy; Abdominal pregnancy.


 

Introdução

As gravidezes ectópicas (GE), representando 1-2% das gestações1, estão associadas a morbimortalidade significativa. Cerca de 95% localiza-se na trompa uterina e os restantes 5% podem ocorrer noutras localizações como: ovário, colo uterino e cavidade abdominal. A GE abdominal (GEA) é um evento raro (1,3% das GE)1.

Têm sido enunciados fatores de risco2 como GE prévia, tabagismo, infeções sexualmente transmissíveis como doença inflamatória pélvica e infeção por Chlamydia trachomatis; abortos espontâneos prévios; idade ≥40anos; técnicas de procriação medicamente assistida; número de parceiros sexuais; uso de dispositivo intrauterino (DIU).

A taxa de GE tem aumentado e a taxa de mortalidade associada tem diminuído3. A clínica inespecífica impede frequentemente o diagnóstico precoce, o qual só é, muitas vezes, possível reunindo um elevado índice de suspeição e os meios de diagnóstico adequados, nomeadamente o doseamento sérico de gonadotropina coriónica humana (hCG) e a ecografia transvaginal de alta resolução4. A clínica inespecífica associada à constatação de sangue na vagina, dor à mobilização do colo uterino e à palpação do fundo-de-saco de Douglas e a presença de massa durante o exame ginecológico, poderá fazer suspeitar de GE.

Um doseamento sérico isolado de b-hCG é útil na predição de visualização ecográfica de saco gestacional («zona discriminatória»)5. Avaliações seriadas de b-hCG serão necessárias quando a avaliação ecográfica é inconclusiva, contudo têm limitações - a taxa de subida mínima esperada em 48 horas numa gravidez viável varia de 35-66%6.

A determinação da progesterona sérica não parece adicionar informação útil. O valor preditivo de um valor sérico baixo para identificar gestações não-viáveis varia com a população de pacientes e a definição desse valor não está clara7,8.

Para o diagnóstico de suspeição, é importante a complementaridade entre ecografia transvaginal com color Doppler e o valor de b-hCG (níveis discriminatórios =1500-2000mIU/ml2)5. A sensibilidade e a especificidade da ecografia transvaginal para hCG>1500 UI/L é de 15,2% e de 93,4%, e para hCG>2000 UI/L é de 10,9% e 95,2%, respectivamente9. Em alguns casos poderá recorrer-se à laparoscopia diagnóstica e/ou terapêutica.

O diagnóstico e o tratamento das GE não-tubárias podem ser desafiantes devido à diversidade de locais de implantação e dificuldades a eles associadas.

Os locais de implantação das GEA incluem o epíploon, a parede pélvica, o ligamento largo, o fundo-de-saco de Douglas, os órgãos abdominais, vasos abominais e pélvicos, o diafragma e a serosa uterina. Para o diagnóstico de GEA é necessário um elevado índice de suspeição.

Contrariamente às GE tubárias, as GEA podem evoluir até ao termo. Uma GEA precoce poderá ser difícil de distinguir de uma GE tubária se a área de implantação estiver próxima dos anexos. Uma GEA avançada, cujos achados ecográficos são a ausência de miométrio entre a bexiga e a gestação10 e uma baixa definição placentária e oligoamnios, pode ser confundida com uma gravidez intrauterina. A ressonância magnética nuclear11 poderá ser útil para confirmar o diagnóstico e definir relações anatómicas. Nas GEA, o tratamento deverá ser decidido caso a caso. A cirurgia é a opção terapêutica mais frequente. Para diminuir a taxa de complicações, sobretudo hemorrágicas, poder-se-á associar a embolização arterial pré-operatória ou a necessidade de deixar a placenta in situ e medicar com metotrexato12,13.

Os autores apresentam um caso de GE localizada no fundo-de-saco de Douglas, numa mulher sob contraceção com dispositivo intrauterino de cobre (DIU-Cu).

Caso clínico

Mulher de 32 anos, recorreu ao Serviço de Urgência por dor abdominal generalizada e omalgia com um dia de evolução e agravamento progressivo, referindo dor ano-retal com duração de 1 semana. A doente, cujo grupo sanguíneo era ARh positivo, desconhecia a data de última menstruação, era portadora de DIU-Cu desde há 1 ano e fumadora.

Foi observada pelos colegas da Cirurgia Geral que solicitaram colaboração dos da Ginecologia/Obstetrícia, após terem observado dor à palpação, sobretudo profunda e dos quadrantes inferiores do abdómen, associada a dor à descompressão, sem massas palpáveis, tendo considerado hipóteses de diagnóstico de origem ginecológica como rotura de quisto.

No exame objetivo apresentava-se consciente, apirética, com pele e mucosas ligeiramente descoradas, tensão arterial de 102/53mmHg e frequência cardíaca de 112bpm. No exame ginecológico apresentava: perda hemática escassa, fios de DIU visíveis, dor à mobilização do colo uterino e no fundo de saco posterior da vagina, com massa palpável no fundo-de-saco de Douglas/região anexial esquerda, moderadamente dolorosa, com cerca de 3cm de diâmetro e consistência duro-elástica.

A avaliação analítica revelou anemia (Hb=9,7mg/dL) e os doseamentos de b-hCG e de progesterona foram 1950mUI/mL e 6ng/mL, respetivamente.

Ecograficamente, observou-se: DIU-Cu localizado no istmo; imagem compatível com saco gestacional extrauterino sem embrião visível, medindo 18x18mm, localizado no fundo-de-saco de Douglas/região anexial esquerda; áreas anecogénicas e áreas de ecogenicidade heterogénea irregular com cerca de 91x44x52mm sugestivas de hemoperitoneu (Figuras 1 a 3).

 

 

 

 

Perante este quadro, decidiu-se laparotomia exploradora. Após remoção de cerca de 1500mL de sangue e coágulos, verificou-se que os ovários, trompas e útero apresentavam superfície intacta, sem pontos hemorrágicos, dimensões normais e sem regiões distendidas ou de coloração alterada.

Constatou-se área hemorrágica compatível com implantação trofoblástica localizada superficialmente no septo reto-vaginal (Figura 4), cuja hemostase foi controlada após remoção do material.

 

 

A doente necessitou de 2 unidades de concentrado eritrocitário e teve uma evolução clínica favorável. Foi efetuado controlo analítico no segundo dia de pós-operatório, com b-hCG de 891mIU/mL. A b-hCG negativizou ao 14º dia de pós-operatório, após controlos analíticos seriados.

O estudo anatomopatológico revelou coágulos e vilosidades coriónicas em contacto direto, numa curta extensão, com epitélio simples escamoso sobreposto a tecido conjuntivo. A doente iniciou contraceção hormonal combinada oral.

Discussão

O caso relatado traduz um exemplo de apresentação clínica «atípica» que as GE não tubárias podem assumir e a importância de um elevado grau de suspeição.

A variedade de apresentações clínicas das GE não tubárias relaciona-se com a diversidade de localizações, que incluem GE cervical, intersticial, ovárica, intramural, em cicatriz de histerotomia ou abdominal, podendo ainda ocorrer gravidez heterotópica.

A clínica de apresentação desta GE foi «atípica». Se por um lado a omalgia pode estar associada a irritação do nervo frénico condicionada pelo hemoperitoneu, por outro a dor ano-retal poderá ter estado relacionada com a área de implantação trofoblástica.

A clínica de apresentação das GEA depende da idade gestacional e da sua localização. Até ao início do segundo trimestre de gravidez, os sintomas podem ser idênticos aos de uma GE tubária. Contudo, as GEA podem apresentar-se sob a forma de choque hemorrágico ou, em casos raros, sob a forma de obstrução intestinal ou de fístulas.

As GEA podem ser classificadas como primárias ou secundárias. As GEA primárias definem-se pelos critérios de Studdiford14, isto é: presença de trompas e ovários normais sem evidência recente ou passada de gravidez; ausência de fístula uteroplacentária; presença de gravidez relacionada exclusivamente com a superfície peritoneal e precoce o suficiente para eliminar a possibilidade de implantação secundária após nidação tubária primária. As GEA secundárias são mais comuns e resultam de abortamento ou rotura tubária ou de implantação abdominal após rotura uterina2.

A GEA está associada a um risco de morte materna de 20%15, contudo é difícil estimar a real incidência de complicações porque a maioria dos estudos são séries de um reduzido número de casos.

Neste caso optou-se por terapêutica cirúrgica imediata. A laparotomia foi a via de abordagem, atendendo à sintomatologia, aos sinais de abdómen agudo, à anemia e à ausência de laparoscopistas na equipa de urgência. A escolha da abordagem cirúrgica (laparotomia versus laparoscopia) e do procedimento depende das circunstâncias clínicas, da estabilidade hemodinâmica, da localização da GE, dos recursos disponíveis e da capacidade técnica do cirurgião16. As GEA podem ser tratadas cirurgicamente por ambas as vias, dependendo da IG. Até ao início do segundo trimestre, sem envolvimento de estruturas vasculares poder-se-á considerar a via laparoscópica. Em IG avançada, a via mais adequada será a laparotomia17. A embolização arterial pré-operatória poderá reduzir o risco hemorrágico18.

A GE persistente deverá ser excluída. Em geral, no primeiro dia de pós-operatório de uma GE a concentração de b-hCG diminui mais de 50% em relação à avaliação pré-operatória19. Quando esta diminuição é superior a 76%, poder-se-á excluir GE persistente19. A avaliação de b-hCG uma semana após a cirurgia poderá ser útil na exclusão de GE persistente, se for inferior a 5% do valor pré-operatório. Contrariamente, se for superior a 5-10%20, dever-se-á reavaliar no prazo de uma semana. Neste caso, a primeira redução de b-hCG de cerca de 60% e a avaliação posterior excluíram persistência de doença.

A persistência de GE poderá ser tratada médica ou cirurgicamente. O metotrexato é um método eficaz17, que apesar de ter sido associado à necrose rápida dos tecidos, risco de infeção e sepsis, sobretudo em IG avançadas, pode ser considerado em casos seleccionados21. Apesar da dificuldade de diagnóstico (falha de diagnóstico pré-operatório de GEA de cerca de 40%22), a localização abdominal da gravidez ectópica deve fazer parte do diagnóstico diferencial22.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Hoffman BL, Schorge JO, Schaffer JI, Halvorson LM, Brad­shaw KD, Cunningham FG, Calver LE. Ectopic Pregnancy, In: Williams Gynecology (2nd Edition). New York: McGraw- Hill; 2012: 334-365.         [ Links ]

2. Bouyer J, Coste J, Fernandez H, Pouly JL, Job-Spira N. Sites of ectopic pregnancy: a 10 year population-based study of 1800 cases. Hum Reprod 2002; 17:3224–3230.         [ Links ]´

3. Givens VM, Lipscomb GH. Diagnosis of ectopic pregnancy. Clin Obstet Gynecol 2012; 55:387-394.         [ Links ]

4. Barnhart KT. Clinical practice. Ectopic pregnancy. N Engl J Med 2009; 361: 379-387.         [ Links ]

5. Seeber BE. What serial hCG can tell you, and cannot tell you, about an early pregnancy. Fertil Steril 2012; 98: 1074-1077.         [ Links ]

6. Cartwright J, Duncan WC, Critchley HO, Horne AW. Serum biomarkers of tubal ectopic pregnancy: current candidates and future possibilities. Reproduction 2009; 138:9-22.         [ Links ]

7. Verhaegen J, Gallos ID, van Mello NM, Abdel-Aziz M, Takwoingi Y, Harb H, Deeks JJ, Mol BW, Coomarasamy A. Accuracy of single progesterone test to predict early pregnancy outcome in women with pain or bleeding: meta-analysis of cohort studies. BMJ 2012; 345:e6077.         [ Links ]

8. Doubilet PM, Benson CB, Bourne T, Blaiva M. Society of Radiologists in Ultrasound Multispecialty Panel on Early First Trimester Diagnosis of Miscarriage and Exclusion of a Viable Intrauterine Pregnancy. Diagnostic criteria for nonviable pregnancy early in the first trimester. N Engl J Med 2013; 369:1443-1451.         [ Links ]

9. Condous G, Kirk E, Lu C, van Huffel S, Gevaert O, de Moor B, de Smet F, TimmermanD, Bourne T. Diagnostic accuracy of varying discriminatory zones for the prediction of ectopic pregnancy in women with a pregnancy of unknown location. Ultrasound Obstet Gynecol 2005; 26:770-775.         [ Links ]

10. Varma R, Mascarenhas L, James D. Successful outcome of advanced abdominal pregnancy with exclusive omental insertion. Ultrasound Obstet Gynecol 2003; 21(2):192-194.         [ Links ]

11. Lockhat F, Corr P, Ramphal S, Moodley J. The value of magnetic resonance imaging in the diagnosis and management of extra-uterine abdominal pregnancy. Clin Radiol 2006; 61:264-269.         [ Links ]

12. Gupta P, Sehgal A, Huria A, Mehra R. Secondary abdominal pregnancy and its associated diagnostic and operative dilemma: three case reports. J Med Case Reports 2009; 3: 7382.         [ Links ]

13. Poole A, Haas D, Magann EF. Early abdominal ectopic pregnancies: a systematic review of the literature. Gynecol Obstet Invest. 2012; 74(4):249-260.         [ Links ]

14. Studdiford WE. Primary peritoneal pregnancy. Am J Obstet Gynecol. 1942; 44:487-491.         [ Links ]

15. Ayinde OA, Aimakhu CO, Adeyanju OA, Omigbodun AO. Abdominal pregnancy at the University College Hospital, Ibadan: a ten-year review. Afr J Reprod Health 2005; 9(1):123-127.         [ Links ]

16. McCord ML, Muram D, Buster JE, Arheart KL, Stovall TG, Carson SA. Single serum progesterone as a screen for ectopic pregnancy: exchanging specificity and sensitivity to obtain optimal test performance. Fertil Steril 1996; 66(4): 513-516.         [ Links ]

17. Hajenius PJ, Mol F, Mol BW, Bossuyt PM, Ankum WM, van der Veen F. Interventions for tubal ectopic pregnancy. Cochrane Database Syst Rev 2007; 24(1):CD000324.         [ Links ]

18. Rahaman J, Berkowitz R, Mitty H, Gaddipati S, Brown B, Nezhat F. Minimally invasive management of an advanced abdominal pregnancy. Obstet Gynecol 2004; 103 (5 Pt 2):1064-8.         [ Links ]

19. Spandorfer SD, Sawin SW, Benjamin I, Barnhart KT. Postoperative day 1 serum human chorionic gonadotropin level as a predictor of persistent ectopic pregnancy after conservative surgical management. Fertil Steril 1997; 68(3):430-434.         [ Links ]

20. Vermesh M, Silva PD, Sauer MV, Vargyas JM, Lobo RA. Persistent tubal ectopic gestation: patterns of circulating beta human chorionic gonadotropin and progesterone, and management options. Fertil Steril 1988;50:584-588.         [ Links ]

21. Cetinkaya MB, Kokcu A, Alper T. Follow up of the regression of the placenta left in situ in an advanced abdominal pregnancy using the Cavalieri method. J Obstet Gynaecol Res 2005; 31(1):22-26.         [ Links ]

22. Worley KC, Hnat MD, Cunningham FG. Advanced extrauterine pregnancy: diagnostic and therapeutic challenges. Am J Obstet Gynecol 2008; 198(3): 297.e1-7.         [ Links ]

 

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence

Tatiana Semedo Leite

E-Mail: tatianasemedo@hotmail.com

 

Recebido em: 16/12/2015

Aceite para publicação: 29/05/2018

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons