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Acta Obstétrica e Ginecológica Portuguesa

versão impressa ISSN 1646-5830

Acta Obstet Ginecol Port vol.12 no.1 Coimbra mar. 2018

 

ESTUDO ORIGINAL/ORIGINAL STUDY

Persistent inflammatory pap smears: there will be obligation to refer?

Inflamação citológica persistente: haverá necessidade de referenciar?

Fernanda Santos*, Amália Pacheco**

Centro Hospitalar e Universitário do Algarve

*Interna de Ginecologia e Obstetrícia, Centro Hospitalar de Leiria

**Assistente Graduada de Ginecologia e Obstetrícia, Centro Hospitalar e Universitário do Algarve

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


 

ABSTRACT

Overview: Although low sensitivity of cervical cytology, this screening test was responsible by 70 to 80% reduction of incidence and mortality of cervical cancer worldwide. Inflammation is a common finding, that could be meaningless, could occlude premalignant lesions or could represent an oncological risk.

Aims: To analyze cases of persistent inflammatory pap smears and their association with intraepithelial high grade lesions or carcinoma.

Study Design: Cross-sectional study.

Methods: Two hundred sixty cases of women with persistent inflammatory smears, opportunistically admitted to a tertiary unit, from January 2013 to December 2015, were revised. Statistical analysis was performed by STATA 13.1 program.

Results: Two hundred sixty cases were analyzed, 13% in 2013 (91/692), 12% in 2014 (76/624) and 14% in 2015 (93/649). The mean age was 41 years, 60% were under hormonal contraception and 15% were postmenopausal. It was performed 106 human papillomavirus (HPV) typifications, 95 were negative, one positive to HPV-18 and 10 positive to others high-risk HPV. Considering patients follow-up, 15.4% (n=40) colposcopic abnormal findings were identified, 67.5% grade 1 and 32.5% grade 2. Thirty nine colposcopy guided biopsies were carried out. Histologically, 15 cases of cervicitis were identified, 12 of squamous metaplasia, 11 of low grade squamous intraepithelial lesion (LSIL) and one of high grade (HSIL). Ten women were submitted to treatment, four to excision of transformation zone (histology: three LSIL and one HSIL) and six to cryotherapy. 74%(n=192) had medical discharge after eighteen months, 13%(n=35) missed next appointments, 10% (n=25) maintain follow-up and 3% (n=8) were readmitted (3 LSIL, 1 atypical squamous cells of undetermined significance and 1 that cannot exclude HSIL, 2 persistent inflammation and 1 vulvar condilomatosis).

Conclusion: In conclusion, the persistence of pap smears partially obscured by inflammation should persist to be targeted, until prospective and randomized trials are not performed.

Keywords: Papanicolau test; Cervix uteri; Inflammation; Intraepithelial high grade lesions.


 

Introdução

A introdução da citologia esfoliativa como método de diagnóstico de mulheres com cancro do colo do útero foi introduzida por George Papanicolau e Babes em 1920. Posteriormente, a técnica foi refinada por Papanicolau, passando a ter capacidade de identificar lesões precursoras e, como tal, passou a ser considerada como método de rastreio. A partir de 1960 foi extensamente implementada em países desenvolvidos, verificando-se desde então um decréscimo acentuado da incidência e mortalidade por cancro do colo do útero 1,2. Segundo dados da International Agency for Research on Cancer, o cancro do colo do útero é atualmente o quarto cancro feminino mais frequente3.

A citologia do colo do útero baseia-se nas propriedades descamativas do epitélio pavimento-celular do colo. A sua interpretação é dotada de alguma subjetividade, pois depende da análise morfológica de cada célula. Com o intuito de eliminar desigualdades entre laboratórios, reduzir a variabilidade inter-observador e, consequentemente, reduzir diferenças na avaliação e orientação clínica, foi implementada em 1988 a primeira classificação citológica de Bethesda, posteriormente atualizada em 1991, 2001 e mais recentemente, em 20144. É visto como critério de qualidade laboratorial um relatório citológico uniforme com identificação de aspetos chave, nomeadamente o tipo de colheita efetuada (convencional ou meio líquido), a adequabilidade da amostra (satisfatória ou não satisfatória) e a interpretação ou resultado dos achados (Negative for intraepithelial lesion or malignancy (NILM) ou alterações das células epiteliais, escamosas ou glandulares). O conhecimento desta classificação torna-se obrigatório para os clínicos, pois só deste modo são possíveis ilações sobre os resultados apresentados4.

A descrição da presença de inflamação citológica é um achado frequente, com incidência documentada de 14 a 19%5. Apesar de considerado como um achado relativamente benigno, é alvo de alguma controvérsia, não sendo ainda consensual qual o significado subjacente. A inflamação é reconhecida como uma resposta fisiopatológica normal a qualquer tipo de agressão tecidular, quer seja bacteriana, viral, micótica, parasitária, pós-traumática, química ou física, sendo, no entanto, igualmente normal a identificação de células inflamatórias cervicais quer em fase secretora do ciclo menstrual, quer em mulheres menopáusicas. Deste modo, a inflamação citológica é assumida por alguns autores como tradutora de infeção vulvovaginal, sendo frequente o tratamento empírico5. Outros desvalorizam a sua documentação e mantêm um seguimento normal. Já a sua repetição é interpretada por alguns como um achado que pode ocultar uma neoplasia subjacente ou ainda como um ambiente potenciador e facilitador de infeção por papilomavírus humano (HPV)5. Um ambiente inflamatório crónico será propício à indução de stress oxidativo, instabilidade genómica, inibição da apoptose, proliferação, angiogénese e consequente malignização6.

Segundo a classificação de Bethesda, a importância do achado inflamação é diferente de acordo com o local onde se encontra documentado. A descrição de inflamação como outros achados não neoplásicos (“alterações reativas associadas a inflamação”) é de documentação opcional, no entanto, quando a sua identificação interfere com a adequabilidade da amostra (“Satisfatória, mas parcialmente obscurecida por inflamação”), a documentação deve ser obrigatória. Uma amostra é considerada como parcialmente obscurecida quando 50 a 75% das células epiteliais não são visualizadas. Segundo a American Society of Colposcopy and Cervical Pathology (ASCCP) uma citologia parcialmente obscurecida por inflamação deve ser repetida em 6 meses, se: (1) rastreio prévio inadequado, (2) citologia anterior com alterações glandulares atípicas (Atypical Glandular Cells-AGC), (3) HPV de alto risco (HPV-AR) positivo nos últimos 12 meses, (4) imunodepressão, (5) impossibilidade de colheita de células endocervicais ou de visualização correta do colo e por fim, (6) citologias consecutivas parcialmente obscurecidas (por sangue ou inflamação). Perante alterações reativas associadas a inflamação, a ASCCP defende que na maioria destas mulheres não será identificado qualquer tipo de agente infecioso, sendo consensual a repetição da citologia apenas em mulheres positivas para o vírus da imunodeficiência humana (VIH) ou com antecedentes de imunodepressão7.

Deste modo, o objetivo do trabalho foi avaliar os casos de citologias satisfatórias parcialmente obscurecidas por inflamação, procurando analisar a monitorização prestada e a associação com o desenvolvimento de lesões histológicas com gravidade igual ou superior a lesão intraepitelial de alto grau (High grade squamous intraepithelial lesion - HSIL).

Métodos

Foi efetuado um estudo transversal, retrospetivo e analítico de 260 casos de mulheres referenciadas à Unidade de Patologia do Colo do Centro Hospitalar do Algarve, Hospital de Faro por citologias com inflamação persistente (3 citologias consecutivas, satisfatórias, parcialmente obscurecidas por inflamação, com intervalo de 6 meses), de janeiro de 2013 a dezembro de 2015. Todos os casos foram referenciados por rastreio oportunista. Foram excluídas grávidas e doentes com positividade para VIH. Os dados foram obtidos através da consulta dos processos clínicos.

Foram analisadas as seguintes variáveis: idade na primeira consulta, menarca, coitarca, número de parceiros, paridade, uso de contraceção hormonal, tabagismo, menopausa, manifestações clínicas (assintomáticas, coitorragias e/ou dispareunia), exsudato vaginal prévio, tratamentos anteriores, antecedentes pessoais (patologia do colo e outras), achados colposcópicos (segundo a nomenclatura de 2011 da International Federation of Cervical Pathology and Colposcopy- IFCPC), procedimentos na Unidade (citologia cervical, tipificação HPV, biópsia guiada por colposcopia), tratamentos (médicos e/ou cirúrgicos) e orientação/seguimento.

Todas as citologias foram realizadas em meio líquido (ThinPrep®). A tipificação de ácido desoxirribonucleico (ADN) de HPV foi efetuada por estudo Cobas®. Os exames colposcópicos foram efetuados com colposcópio Olympus OCS 500, por três médicos ginecologistas experientes em colposcopia. As excisões da zona de transformação (ZT) foram efetuadas em ambulatório, sob controlo colposcópico, com ansa diatérmica e anestesia local com lidocaína a 1%. Todas as peças excisadas resultaram em peça única. A curetagem endocervical (CEC) foi efetuada por endobrush.

O tratamento e monitorização foi efetuado de acordo com o consenso de infeção HPV e neoplasia intraepitelial do colo, vagina e vulva da Sociedade Portuguesa de Ginecologia, em vigor8.

A análise estatística foi efetuada através do programa STATA (versão 13.1), com resultado estatisticamente significativo se p<0,05 e nível de confiança de 95%. Para avaliar a relação entre variáveis nominais, foram aplicados o teste exato de Fisher ou qui-quadrado e o teste t de student ou o teste de Wilcoxon para comparação entre medidas de tendência central (de acordo com a presença ou ausência de distribuição normal). O ajustamento de fatores de confundimento
foi efetuado através da aplicação de uma regressão logística.

O estudo foi elaborado de acordo com os pressupostos presentes na declaração de Helsínquia da Organização Mundial de Saúde, revista em 2013. Apenas o médico assistente teve acesso direto ao número do processo e nome da doente em causa. Em momento algum ocorreu identificação ou divulgação de dados pessoais. A base de dados foi elaborada com atribuição de um código não identificativo. Desde 2013 que previamente às consultas efetuadas na unidade é obtido consentimento informado e esclarecido para exame colposcópico, para procedimentos médicos e/ou cirúrgicos (tipificação, citologia e/ou biópsia) e para autorização do uso de dados para estudos de investigação.

Resultados

A maioria das mulheres referenciadas à Unidade de Patologia do Colo provêm do rastreio oportunista. Apesar da referenciação por rastreio organizado ter vindo a aumentar de forma gradual, os anos em análise refletem ainda a tendência inicial. Deste modo, durante o período em análise 89% (n=1966/2203) das mulheres foram referenciadas à Unidade por rastreio oportunista (Figura 1).

 

 

Avaliando apenas as primeiras consultas do rastreio oportunista, verificámos que citologias com inflamação persistente representaram 13% dos motivos em 2013 (91/692), 12% em 2014 (76/625) e 14% em 2015 (93/649).

As mulheres referenciadas pelo motivo em análise tinham em média 41 anos de idade, sendo que aproximadamente um terço (n=90) documentava hábito tabágico, com consumo médio diário de 11 cigarros. Noventa e dois por cento (n=240) das mulheres negavam antecedentes de alterações citológicas com gravidade igual ou superior a células escamosas atípicas de significado indeterminado (Atypical squamous cells of undetermined significance-ASC-US). (Quadro I) Sete por cento (n=18) dos casos reportaram tratamentos prévios pelo mesmo motivo de referenciação (seis: crioterapia; 12: tratamento tópico vaginal (sem registo do princípio ativo)). Catorze mulheres afirmaram ter sido submetidas a estudo por exsudato vaginal, sete com resultado negativo e sete positivo (três: com espécies Candida; três: com espécies de Gardnerella; um: infeção mista). A maioria das mulheres negava sintomas (64%; n=167) (Quadro I).

 

 

Na primeira consulta, 11,5% (n=30) das colposcopias foram consideradas como inadequadas maioritariamente por inflamação e hemorragia. Ao longo do seguimento foram identificados achados colposcópicos anormais em 15,4% (n=40) dos casos, dos quais 67,5% (n=27) foram classificados como grau 1 e os restantes como grau 2. Não foram registados achados colposcópicos com suspeita de invasão. Foram identificadas 15 formações polipoides cervicais, todas submetidas a polipectomia por torção, cujo estudo histológico definitivo confirmou a natureza polipoide fibroepitelial, sem focos de displasia. (Quadro II)

 

 

Como estudo adicional, 40,8% (n=106) das mulheres foram submetidas a tipificação de ADN-HPV, 89,6% (n=95) com resultado negativo. Ao longo do estudo foram efetuadas 182 citologias do colo, 63,2% (n=112) sem alterações. (Quadro III) Foram realizadas 39 biópsias guiadas por colposcópio, tendo sido identificado um caso de histologia compatível com lesão HSIL e 11 LSIL (Quadro III).

 

 

Por fim, seis mulheres foram submetidas a crioterapia e quatro a excisão da ZT. A excisão efetuada por biópsia HSIL, em mulher com HPV18 positivo, correspondeu a LSIL em peça final. Duas excisões foram casos com discordância colpo-histológica, tendo ambas histologia final LSIL. A única excisão com focos de HSIL correspondeu a uma mulher de 43 anos, com antecedentes pessoais de melanoma maligno em remissão, HPV-AR positivo e LSIL em biópsia dirigida. (Quadro III)

Atendendo à histologia final (por biópsia dirigida ou por excisão da ZT), os exames colposcópicos realizados apresentaram para lesões LSIL, sensibilidade de 81%, especificidade 98%, valor preditivo negativo 98% e valor preditivo positivo 78%. Relativamente a lesões HSIL, foi identificada sensibilidade de 100%, especificidade 96%, valor preditivo negativo 100%, mas valor preditivo positivo de 15%.

A maioria das mulheres admitidas por inflamação (74%; n=192) tiveram alta da consulta ao fim de um tempo médio de 18 meses (0 a 36 meses), 13% (n=35) faltaram a consultas subsequentes, 10% (n=25) mantêm seguimento na Unidade e 3% (n=8) foram readmitidas. Seis mulheres foram readmitidas em média ao fim de 18 meses da alta e duas regressaram após falta a consulta prévia, ao fim de 23 e 39 meses (Quadro IV).

 

 

Por estudo analítico, o grupo identificou presença de relação estatisticamente significativa entre identificação colposcópica de metaplasia imatura e coitorragias, ajustando para fatores como idade, paridade, uso de contraceção hormonal e número de parceiros documentados (p<0,001). Foi igualmente identificada relação significativa entre o motivo da classificação de colposcopia inadequada e menopausa (p<0,01). Foi possível confirmar a aplicação correta da tipificação HPV, com relação significativa entre tipagem e idade da utente (p=0,04). Por fim, foi ainda identificada relação significativa entre outros achados não neoplásicos e o tratamento farmacológico implementado (p<0,001). Não foi identificada relação estatística entre achados de inflamação citológica persistente e coitarca precoce (definida como prévia aos 18 anos), número de parceiros, paridade, uso de contraceção hormonal ou tabagismo (p>0,05).

Discussão/conclusão

O presente trabalho reflete uma unidade cuja referenciação decorre essencialmente de rastreio oportunista, uma vez que na área em análise, o rastreio organizado apenas foi implementado em 2011. No entanto, independentemente de diferenças organizacionais ou mesmo culturais, há que destacar os resultados obtidos.

Atendendo ao objetivo proposto, foram identificados dois casos de HSIL, um em biópsia dirigida e outro em peça de excisão de ZT, o que corresponde a uma incidência de 0,77% (2/260). Não foram identificados casos de neoplasia maligna.

Em 2013 foi publicado um estudo que procurou avaliar o risco de progressão para lesão pré-maligna ou maligna ao fim de cinco anos, tendo por base diferentes alterações citológicas. Para tal a amostra incluiu aproximadamente um milhão de mulheres com idades entre os 30 e 64 anos9. Deste modo, verificou-se que ao fim de cinco anos o risco de progressão para lesão HSIL foi: 0,26% para citologia NILM; 0,43% para citologias ASC-US com HPV negativo e 6,8% com HPV positivo; 2% para citologia LSIL com HPV negativo e 6,1% com HPV positivo e 47% para citologia HSIL9. De acordo com os dados obtidos no nosso estudo, constatamos que o risco obtido de 0,77% é superior ao identificado para citologias ASC-US com HPV negativo mas inferior ao de citologias LSIL com HPV negativo8,9. Assim sendo, e não estando complementado nos consensos atuais o tipo de monitorização a implementar em casos com risco intermédio entre ASCUS e LSIL com HPV negativo, concluímos que a controvérsia se mantem8.

Achour MZeghal analisou prospetivamente 60 citologias com inflamação persistente (definidas como presença de dez células inflamatórias por campo, com ampliação 400x) em mulheres residentes na Tunísia (país onde a adesão ao rastreio organizado é baixa). Identificou três casos de LSIL (5%), 11 de HSIL (17%), um carcinoma in situ e dois casos de carcinoma invasivo (5%: 3/60), um espinho celular microinvasivo e um adenocarcinoma. Atendendo ao resultado obtido, este autor concluiu que qualquer citologia com inflamação deve ser considerada como um resultado anormal, devendo ser alvo de estudo colposcópico adicional10.

No presente estudo apenas 15,4% das colposcopias identificaram achados anormais. Tal como é reconhecido pela literatura, a colposcopia apresenta maior sensibilidade e especificidade que a citologia do colo do útero11. No entanto, são ambos exames com limitações e que dependem do conhecimento e interpretação do operador. É inclusive defendido que a citologia e a colposcopia são exames complementares e não antagónicos. Quando o exame colposcópico é realizado por profissionais experientes, é dotado de elevada especificidade e elevado valor preditivo negativo8,11. Para as lesões HSIL, os autores encontraram especificidade de 96% e valor preditivo negativo de 100%, corroborando a literatura e concluindo sobre a elevada concordância colpo-histológica. No entanto, o valor preditivo positivo encontrado foi muito reduzido (15%). São várias as variantes do normal que podem levar a achados colposcópicos anormais (contraceção hormonal combinada ou défice de estrogénios), sendo igualmente frequente esta associação com achados benignos, tais como fenómenos de metaplasia escamosa, regeneração/reparação, inflamação ou infeção11. Atendendo à confirmação histológica, verificamos que a taxa de falsos positivos obtida foi de 69%, essencialmente motivada por fenómenos de metaplasia ou inflamação. (Quadro III)

É importante ainda realçar a ausência de evidência científica que comprove a necessidade de tratar empiricamente uma mulher assintomática e com inflamação citológica. O tratamento é igualmente controverso perante a identificação de microrganismos por citologia (tais como Trichomonas vaginalis, espécies de Candida ou desvio de flora sugestivos de vaginose bacteriana). Segundo a ASCCP, perante identificação de agente infecioso, apenas deverão ser tratadas mulheres com sintomas7. Em relação à tricomoníase, excecionalmente é defendido o tratamento, uma vez que a citologia em meio líquido tem documentada elevada especificidade (99%) e valor preditivo positivo (96%). O mesmo não é defendido para citologias em meio convencional7. No que diz respeito à vaginose bacteriana, a citologia não é um meio de diagnóstico adequado, sendo aconselhada confirmação prévia ao tratamento. Atualmente assiste-se à divulgação do valor atribuído à microscopia vaginal (exame a fresco) que, segundo Donders, é um estudo dotado de elevado rigor e sensibilidade no diagnóstico de diferentes vaginites, nomeadamente da vaginose bacteriana12.

Aproximadamente 90% das tipificações efetuadas confirmaram ausência de infeção HPV. É de facto reconhecida a associação entre presença de inflamação e infeção por HPV, sendo a persistência desta, extensamente defendida como detentora de elevado potencial oncogénico13. Fernandes et al publica uma revisão onde defende que a associação entre inflamação crónica e infeção HPV é mediada por espécies reativas de oxigénio e nitrogénio, citocinas, fatores de crescimento e outros que perturbam fenómenos de apoptose, potenciam a ocorrência de mutações, facilitam a integração do ADN viral e, consequentemente, potenciam a sobre-expressão de proteínas oncogénicas (E5, E6 e E7)13. Sabendo que mais de 90% dos cancros do colo do útero têm subjacente uma infeção persistente por papilomavírus humano de alto risco, é atualmente preconizado que a partir dos 30 anos de idade o rastreio seja efetuado por co-teste (citologia + tipificação HPV), com intervalos de monitorização de cinco anos7. Tal medida é aplicada desde 2012 nos Estados Unidos da América. Deste modo, atendendo à maior sensibilidade e valor preditivo negativo da tipagem HPV, futuramente quando tal medida for implementada na nossa prática, mulheres com citologias consecutivas, satisfatórias e parcialmente obscurecidas por inflamação, serão previamente rastreadas, sendo apenas referenciadas aquelas com maior risco atribuído.

Apesar da análise cuidada e da relevância do assunto, o presente estudo é dotado de algumas limitações. Todas as citologias analisadas foram colhidas em meio líquido. No entanto, foram analisadas por diferentes citopatologistas e, como tal, deveriam ter sido revistas previamente. Deste modo reduziríamos viés associado à interpretação morfológica dos achados citológicos. Outro aspeto determinante é a não documentação relativa à preparação prévia à colheita citológica. São reconhecidas condições ótimas de colheita, não devendo ser efetuada em fase menstrual, perante vulvovaginite ou cervicite, nem nas 24 a 48 horas após uso de tampões, anel vaginal, tratamentos tópicos, duches vaginais ou coito14. São vários os fatores que alteram os resultados citológicos, sendo reconhecido que o fluido seminal contém moléculas (citocinas, protéases, fatores angiogénicos e células imunes) que promovem a inflamação, sendo por isso frequente a associação com citologias inflamatórias13.

Há ainda a referir a natureza retrospetiva do estudo e a forma de obtenção dos dados, o que induz inevitavelmente viés de seleção e de informação e dificulta o controlo de eventuais fatores de confundimento.

A amostra é considerada representativa e procurou-se efetuar um bom desenho de estudo com o intuito de melhorar a sua validade interna.

Apesar do número reduzido de lesões de alto grau identificadas, atendendo aos vieses acima reportados, o grupo conclui não poder extrapolar resultados, considerando sensato que a referenciação de citologias consecutivas com achados satisfatórios e parcialmente obscurecidos por inflamação se mantenha, até que sejam devidamente efetuados estudos prospetivos e randomizados.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence

Fernanda Santos

Pombal, Portugal

E-mail: fernandapatricia.santos@yahoo.com

 

Recebido em: 27/03/2017

Aceite para publicação: 23/12/2017

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