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Acta Obstétrica e Ginecológica Portuguesa

versión impresa ISSN 1646-5830

Acta Obstet Ginecol Port vol.10 no.2 Coimbra jun. 2016

 

EDITORIAL

Trabalhar sem rede?

Working without mesh?

Alexandra Henriques*

*Editora Associada da AOGP

Assistente Hospitalar - Unidade de Uroginecologia, Departamento de Obstetrícia, Ginecologia e Medicina da Reprodução, Centro Hospitalar Lisboa Norte, E.P.E. - Hospital de Santa Maria

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Escrevo este editorial recém chegada de mais uma reunião científica de Uroginecologia. Esta «terra de ninguém» e ao mesmo tempo de todos porque em Portugal ainda não é reconhecida como uma subespecialidade. Ginecologistas, urologistas e alguns cirurgiões gerais (dedicados à coloproctologia) discutiram com prazer temas controversos, inovações e partilharam técnicas ao demonstrarem as suas cirurgias, por vídeo-conferência, para a audiência atenta e participativa. Mais uma vez, um dos temas controversos e que permanece sem solução à vista, foi abordado: a utilização de redes sintéticas na cirurgia de correcção do prolapso de órgãos pélvicos (POP) por via vaginal.

O primeiro aviso da Food and Drug Administration (FDA) surgiu em 20081, seguido de um segundo em 20112 alertando para o risco elevado de complicações na utilização de redes sintéticas por via vaginal: erosão da rede através da vagina, dor pélvica grave, dispareunia, infecção, hemorragia, perfuração de órgãos e problemas urinários.

E conclui que: a) não são raras as complicações graves associadas com esta técnica; b) não há evidência de que a reparação com rede do compartimento apical e posterior tenha benefício adicional em relação à cirurgia clássica sem rede.

A complicação mais frequente relacionada com a rede é a erosão vaginal da prótese. No aviso da FDA de 20112 pode ler-se: após revisão da literatura baseada em dados de 110 estudos, incluindo 11.785 mulheres, estima-se  que aproximadamente 10% das mulheres apresentem uma erosão nos primeiros 12 meses após a cirurgia. Na vigilância entre os 6 meses e os 3 anos, a taxa de erosão variou entre 7,7% e 19%.

Nos EUA seguiu-se uma avalanche de processos judiciais que conduziu várias empresas, players mundiais, a descontinuar a venda dos seus produtos.

Em Portugal, foi feito um estudo3 utilizando os códigos das cirurgias da base de dados do Sistema Nacional de Saúde entre 2010 e 2012, concomitantemente a um inquérito aos membros da Sociedade Portuguesa de Uroginecologia (55 membros) para avaliar o impacto do aviso de 2011 da FDA. Apenas 6% das cirurgias de correcção de POP foram efectuadas com rede. A taxa de resposta ao inquérito foi de 84% (46/55) e apenas 57% (26/46) dos médicos que responderam ao questionário efectuavam cirurgias com redes. Destes 26, 7 modificaram a sua conduta cirúrgica após 2011. Quatro cirurgiões passaram a usar redes menos frequentemente, 2 abandonaram as redes e um mencionou outro tipo de cirurgias.

A 4 de Janeiro do presente ano a FDA reclassificou as redes transvaginais passando-as de dispositivos médicos de classe II (risco moderado) para classe III (alto risco) e deu 30 meses aos fabricantes para provarem que os seus produtos são seguros e eficazes.

Sublinho, para quem não é da área e não está a par da controvérsia, que estas decisões da agência FDA não se aplicam a redes cirúrgicas para outras indicações, incluindo tratamento de incontinência urinária de esforço e reparação abdominal de POP (sacrocolpopexia).

Se queremos perceber toda a dimensão deste problema, relembremos que em 2001 a FDA aprovou a primeira rede para correcção de POP por entender ser pelo menos tão boa como as redes utilizadas na reparação das hérnias abdominais - não existiam, porém, ensaios clínicos de longa duração para confirmar esta segurança.

E a partir desta altura, a introdução no mercado de redes de múltiplos materiais e variadas metodologias de aplicação foi galopante e pouco regulada a todos os níveis. Na fase da pré-entrada no mercado, as agências nacionais e internacionais que regulamentam os dispositivos médicos são aqui as grandes culpadas por não exigirem estudos sérios e a longo prazo a atestarem a segurança e eficácia dos novos produtos. Na fase de aplicação na prática clínica e avaliação dos desfechos (e estou a pensar em particular no nosso país) qualquer cirurgião ginecológico/urológico podia/pode executar estas técnicas, não se investiu em formação/certificação, nem na criação de centros de referência, nem na criação de uma subespecialidade de Uroginecologia. Aqui os culpados são vários, onde se incluem os próprios médicos.

Não tenho dúvidas de que o desfecho da cirurgia de correcção do POP por via vaginal utilizando redes sintéticas não é influenciado maioritariamente pela utilização da rede em si. É completamente dependente do trinómio: doente-rede-cirurgião.

Um bom desfecho está alicerçado na escolha da doente candidata à cirurgia, baseada em critérios clínicos (os mais importantes) e eventuais exames complementares de diagnóstico. São contraindicações para a cirurgia com redes transvaginais: idade jovem, dor pélvica crónica, dispareunia, imunodepressão. São candidatas ideais as que possuem grandes prolapsos grau 3-4, recidivas e doentes com múltiplos factores de risco para recidiva. É imprescindível o consentimento informado e a sua vigilância após a cirurgia por longos períodos.

Um bom desfecho está dependente das características da rede que se utiliza. O polipropileno é o material mais utilizado é não absorvível e macroporoso. A rede ideal é macroporosa, leve, fina, distensível e de tamanho adequado ao POP que queremos corrigir.

Um bom desfecho está intimamente relacionado com o cirurgião que executa o procedimento. O cumprir de todas as regras do fabricante e passos da técnica cirúrgica; a sua formação e experiência (volume de cirurgias) em  cirurgia vaginal e colocação da rede sem tensão; a sua capacidade de reconhecer e tratar precocemente complicações intra e pós-operatórias. A criação de programas de formação/certificação e centros de referência são urgentes.

Resumindo: são as redes (umas boas, outras nem tanto), nas mãos do cirurgião errado e aplicadas em doentes mal seleccionadas que resultam em maus desfechos.

E o futuro? O futuro passa por sabermos muito bem criar o trinómio de que falei anteriormente.

No caso da selecção das doentes devemo-nos socorrer de todos os meios para escolhermos a candidata que mais beneficiará da técnica. A ecografia do pavimento pélvico surge aqui como uma arma que nos pode alertar para factores preditivos de bom e mau prognóstico. É exemplo disso o excelente trabalho do grupo do Dr. Kamil Svabik4 e a revisão pertinente, que é publicada neste número da AOGP com o título «O uso de redes na cirurgia uroginecológica - contributo da imagiologia»5. Os autores deste trabalho alertam -nos para o interesse e aplicabilidade clínica crescente desta técnica e da sua mais valia na resolução das complicações e recidivas porque permite identificar facilmente as próteses sintéticas ao contrário da ressonância magnética.

Enquanto não existe uma base de dados nacional, cada centro devia avaliar a sua taxa de complicações, em particular a taxa de erosão de modo a poder modificar a sua prestação de cuidados e melhor informar as doentes ao obter o consentimento para a cirurgia. No Hospital de Santa Maria em 2012, avaliaram-se 270 doentes submetidas a correcção de POP com rede de polipropileno (Gynecare ProliftTM Pelvic Floor Repair System). Excluíram-se da análise as doentes que foram submetidas a histerectomia vaginal concomitante. A taxa de erosão num período de vigilância de quatro anos foi de 3,3% (9/270) e a maioria foi corrigida em ambulatório e sob anestesia local (7/9)6. Afigura-se uma realidade bem diferente dos 19% de taxa de erosão reportados pela FDA.

Enquanto não existe uma subespecialidade de Uroginecologia em Portugal, esforcemo-nos individualmente por adquirir formação, por procurar evidência sólida antes de tomarmos decisões, de modo a escolhermos o melhor para cada doente. E depois é só escolher: trabalhar com rede ou sem rede.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. FDA Public Health Notification: Serious Complications Associated with Transvaginal Placement of Surgical Mesh in Repair of Pelvic Organ Prolapse and Stress Urinary Incontinence. Oct. 20, 2008. Disponível em: http://www.fda.gov/MedicalDevices/Safety/AlertsandNotices/PublicHealthNotifications/ucm061976.htm         [ Links ]

2. UPDATE on Serious Complications Associated with Transvaginal Placement of Surgical Mesh for Pelvic Organ Prolapse: FDA Safety Communication, 13 July, 2011. Disponível em: http://www.fda.gov/MedicalDevices/Safety/AlertsandNotices/ucm262435.htm         [ Links ]

3. Mascarenhas T, Mascarenhas-Saraiva M, Ricon-Ferraz A,  Nogueira P, Lopes F,  Freitas A. Pelvic organ prolapse surgical management in Portugal and FDA safety communication have an impact on vaginalmesh. Int Urogynecol J (2015) 26:113-122.         [ Links ]

4. Svabik K, Martan A, Masata J, El-Haddad R, Hubka P. Comparison of vaginal mesh repair with sacrospinous vaginal colpopexy in the management of vaginal vault prolapse after hysterectomy in patients with levator ani avulsion: a randomized controlled trial. Ultrasound Obstet Gynecol. 2014 Apr;43(4):365-71.         [ Links ]

5. Vázquez I, Brandão S, Duarte S, Mascarenhas T. O uso de redes na cirurgia uroginecológica - contributo da imagiologia. Acta Obstet Ginecol Port 2016;10(2):132-141.         [ Links ]

6. Henriques A, Valentim-Lourenço A, Afonso M, Fadigas C, Ribeirinho AL. Ten Tips and Tricks to avoid Mesh Exposure in Pelvic Organ Prolapse Surgery. Comunicação oral apresentada na Reunião Anual da Society of Gynecologic Surgeons (SGS) Baltimore; Maryland, USA, April, 13-15, 2012.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence

E-mail: alexandra.henriques@gmail.com