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Revista Portuguesa de Ortopedia e Traumatologia

versão impressa ISSN 1646-2122

Rev. Port. Ortop. Traum. vol.23 no.4 Lisboa dez. 2015

 

CASO CLÍNICO

 

Artrodese da Anca: uma solução quase esquecida

 

Joaquim Soares do BritoI; André SprangerI; Alexandre FessenkoI; Paulo AlmeidaI

I. Unidade de Bacia e Anca do Serviço de Ortopedia e Traumatologia do Hospital de Santa Maria, Centro Hospitalar de Lisboa Norte, EPE. Lisboa.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO

A artrodese da anca constituiu tratamento de eleição para patologia degenerativa, traumática e infeciosa da anca durante um largo período de tempo. Apesar dos bons resultados obtidos no controlo álgico, as limitações funcionais resultantes desta técnica são evidentes, tendo sido largamente suplantada pela artroplastia. No entanto, perante condições particulares, a artrodese da anca poderá constituir opção válida no tratamento de doentes selecionados.

Neste trabalho, os autores relatam o caso clinico de uma doente submetida a artrodese da anca em contexto pós-traumático, discutindo o resultado obtido e a validade da técnica.

Palavras chave: Artrodese da anca, Pseudartrose, Fractura acetabular.

 

ABSTRACT

Hip fusion has served well for many years as the surgical procedure of choice to treat painful joints with severe osteoarthritis, trauma sequel or infectious arthritis. Despite the good results obtained in pain relief, functional limitations resulting from this technique allowed the growing preference for total arthroplasty. However, in some conditions, hip fusion may be a good treatment option for selected patients.

In this paper the authors report the clinical case of a patient undergoing hip fusion after a traumatic event, discussing the results and the technique validity.

Key words: Hip arthrodesis, Pseudarthrosis, Acetabular fracture.

 

INTRODUÇÃO

A artrodese da anca constituiu opção cirúrgica de eleição durante praticamente meio século no tratamento da patologia da anca associada a processos degenerativos, traumáticos e infeciosos, nomeadamente os relacionados com tuberculose óssea1,2. Apesar das primeiras tentativas em obter uma artrodese da anca remontarem a 1886 com o cirurgião francês Lagrane1,3, a técnica somente acabou por ser descrita com sucesso por DeBeule em 19092.

Apesar do sucesso alcançado por esta técnica cirúrgica, particularmente na resolução do quadro álgico, as limitações funcionais que implica assim como a introdução e evolução notável da artroplastia total da anca durante a década de 60 do século passado fizeram diminuir drasticamente as indicações para a sua utilização1,2. Contudo, e apesar destas limitações, ainda é considerada uma opção cirúrgica aceitável em situações restritas, particularmente em processos infeciosos e alguns casos de patologia monoarticular não-inflamatória e traumática do adulto jovem1. Esta técnica permite a obtenção do alivio da dor, níveis de atividade física satisfatórios e conserva capital ósseo para realização de uma eventual artroplastia numa outra fase da vida do doente3,4,5. A grande maioria dos doentes submetidos a artrodese da anca apresentam um elevado nível de satisfação com o resultado final apesar das óbvias limitações funcionais e o impacto negativo que esta técnica acarreta sobre as restantes articulações circundantes1.

Neste trabalho os autores relatam o caso clinico de uma doente submetida a artrodese da anca em contexto pós-traumático, discutindo os resultados obtidos com uma técnica de rara utilização mas que pode representar uma boa solução em casos particulares.

 

CASO CLÍNICO

Doente do género feminino, 46 anos de idade, raça negra, natural da Guiné, com seropositividade para VIH e evacuada para Portugal em Março de 2012 em contexto de acidente de viação do qual resultou fratura do acetábulo direito, em Abril de 2011 (figura 1).

 

 

A primeira avaliação foi realizada no serviço de urgência onde a doente se apresentou em cadeira de rodas, incapaz de realizar carga sobre o membro inferior direito, mantendo queixas álgicas intensas e não controladas apesar de realizar analgésicos e anti-inflamatórios orais desde a data do acidente.

A avaliação imagiológica recorrendo a radiologia convencional e tomografia computorizada revelou fratura das duas colunas acetabulares à direita, com esclerose dos topos fraturários mas sem sinais de consolidação, já com alterações pós-traumáticas ao nível das superfícies articulares (figura 2).

 

 

Após discussão clinica do caso e atendendo ao quadro clinico optou-se pela realização de uma artrodese da anca direita com placa Cobra®, sob raqui-anestesia e que decorreu sem registo de intercorrências. A artrodese foi realizada mantendo flexão da anca a 30º, rotação externa de 15º e adução de 5º, de acordo com o planeamento pré-operatório. O tempo operatório foi de aproximadamente quatro horas, com perdas hemáticas estimadas em 400 cc e sem necessidade de suporte transfusional no peri-operatório. O pós-operatório decorreu igualmente sem registo de intercorrências clinicamente relevantes e a doente teve alta clinica ao sétimo dia após cirurgia.

A primeira consulta de reavaliação decorreu às duas semanas de pós-operatório, apresentando boa evolução cicatricial da ferida operatória. Nesta ocasião a doente realizava marcha com apoio de duas canadianas, com melhoria das queixas álgicas em relação à dor pré-operatória. Com seis meses de pós-operatório a doente deambulava com apoio de um auxiliar de marcha, já sem queixas álgicas e com evolução imagiológica favorável para artrodese (figura 3). Aos 12 meses de pós-operatório a avaliação imagiológica evidenciava artrodese da anca direita (figura 4). Nesta ocasião a doente não apresentava qualquer queixa álgica e encontrava-se satisfeita com o resultado funcional pelo que regressou ao seu pais de origem.

 

 

 

Aos três anos de pós-operatório a doente mantém-se sem dor, desenvolvendo atividades de vida diária sem limitação funcional. De momento mantem-se igualmente sem queixas referentes a qualquer outra articulação circundante.

Técnica Cirúrgica

A descrição da técnica cirúrgica que se segue corresponde à opção do cirurgião durante a cirurgia para esta doente em particular, apresentando diferenças relativamente ao descrito na literatura clássica para a artrodese da anca com placa. Parece-nos fundamental reforçar a noção de que esta doente apresentava uma fratura centro-acetabular com subsequente lesão grave da cartilagem articular acetabular, e da cartilagem da cabeça femoral. Por essa razão, a técnica aqui utilizada não seguiu a abordagem clássica, sofrendo adaptações próprias e que visaram o melhor interesse da doente.

Com a doente posicionada em decúbito lateral esquerdo a anca afetada foi abordada através de uma via lateral (Hardinge), com incisão de aproximadamente 30 cm, tendo como referência a localização do grande trocânter. Ao atingir a aponevrose do tensor da Fascia Lata procedeu-se à sua separação (com tesoura de disseção) do músculo grande glúteo, permitindo a visualização direta da face lateral do grande trocânter com a sua bolsa serosa e inserções do médio e pequeno glúteo. Mais distalmente pôde visualizar-se o ventre do vasto lateral que se estende desde a região da rampa trocantérica pela vertente lateral do fémur.

Com a exposição necessária (determinada in loco) procedeu-se de seguida ao correto posicionamento do membro. Neste caso em particular optou-se por: 1) flexão da anca a 30º; 2) rotação externa de 15º; e 3) adução de 5º. A placa foi aplicada sobre a vertente lateral do osso ilíaco e diáfise femoral, requerendo moldagem de modo a obter uma adaptação ideal. De seguida foram realizadas furagens com broca através dos orifícios da placa, tentando obter sempre o maior trajecto intra-ósseo possível. A dimensão de cada parafuso foi medida e os parafusos (de rosca completa) foram introduzidos na placa e apertados manualmente até ao limite, de modo a proporcionar o maior grau de compressão no foco de fratura.

A ferida operatória foi encerrada de modo convencional e sem complicações adicionais. Foi utilizado um hemodreno que foi retirado às 24 horas, igualmente sem registo de intercorrências. A doente manteve descarga do membro operado com duas canadianas durante 6 semanas, iniciando carga parcial com dois auxiliares de marcha após esta data, progredindo finalmente para carga total pelas 12 semanas após cirurgia.

 

DISCUSSÃO

A emergência de técnicas artroplásticas da anca com maior qualidade, em conjunto com uma optimização dos resultados funcionais a longo prazo, tornaram as indicações para artrodese da anca cada vez mais limitadas e restritas1,2,3,4,5,6. O caso apresentado neste trabalho pode, em nosso entender, entrar no grupo restrito de doentes que poderão beneficiar desta técnica. Trata-se de uma doente jovem, em que se espera uma elevada demanda funcional no futuro e com bom potencial para obtenção de fusão óssea. A seropositividade para o VIH coloca esta doente num grupo de risco para as complicações infeciosas decorrentes de uma artroplastia e existia a necessidade de oferecer uma solução duradoura para uma doente proveniente de um país com parcos recursos médicos e ao qual pretendia regressar em definitivo.

A opção pela realização de uma artrodese da anca é uma decisão difícil. A artroplastia cursa com um enorme grau de satisfação por parte do doente e cirurgião, permitindo atividades de vida diária próximas do normal, com baixas taxas de complicações e com elevada previsibilidade na evolução ao longo dos anos. No entanto, a realização deste procedimento em idade jovem relaciona-se com maior taxa de falência e previsibilidade de cirurgia de revisão1,3.

Por outro lado, a artrodese da anca permite o alivio das queixas álgicas do doente e um nível de atividade aceitável, mas sempre inferior relativamente à artroplastia1,2,3,4,5. No mesmo sentido, a artrodese da anca também apresenta um risco de pseudartrose que não é negligenciável1. Constitui, contudo, um procedimento que poderá ser tratamento definitivo, sem necessidade de cirurgia adicional. No contexto atual, esta técnica parece-nos uma solução para casos limite onde as opções terapêuticas são limitadas. O mérito do caso clinico apresentado passa por demonstrar o grau de sucesso obtido e validade deste procedimento numa situação excepcional, conservando potencial para realização de eventual futura artroplastia.

Esta técnica pode, portanto, ser utilizada como resolução definitiva ou como uma ponte para artroplastia. No caso de se equacionar a última opção é fundamental preservar os abdutores da anca, limitar a deformidade pélvica pós-artrodese e preservar a maior quantidade de stock ósseo possível.

A maioria dos trabalhos desenvolvidos sobre artrodese da anca centram-se nos aspectos da técnica cirúrgica e nos resultados funcionais a longo prazo, principalmente no que se refere ao impacto existente sobre as articulações circundantes1. A posição em que articulação da anca será artrodesada irá influenciar a capacidade do doente em sentar e levantar. Doentes com a anca artrodesada com maior flexão podem sentar-se mais facilmente e por maior período de tempo, enquanto que aqueles em que a anca está artrodesada com menor grau de flexão conseguem deambular por maiores distâncias e com menor grau de queixas1,7,8. Dos diversos estudos realizados ao longo dos anos parece resultar que a melhor posição para artrodese encontra-se entre os 30 e 35º de flexão, 5º de adução e 15º de rotação externa1,4,8. Foi precisamente nesta posição que recaiu a nossa escolha.

As articulações circundantes à anca artrodesada deverão encontrar-se em excelentes condições, dado que é expectável a necessidade destas articulações compensarem a perda de mobilidade motivada pela artodese1. Esta técnica representa um impacto negativo sobre a coluna lombar, sendo referida lombalgia na grande maioria dos doentes submetidos a este procedimento. Segundo Kirkos et al a prevalência de lombalgia na população submetida a artrodese da anca é na ordem dos 88%, valor quatro vezes superior a estudos realizados na população em geral1,3. Do mesmo modo, o joelho homolateral é igualmente afectado, sendo reportada gonalgia na maioria das avaliações a longo prazo1,3. A gonalgia desenvolvida parece estar em relação com um processo degenerativo, sendo que Carmona et al reportou taxas de gonartrose cinco vezes inferiores na população em geral quando comparadas com doentes submetidos a artrodese da anca9. Apesar de ser amplamente referido na literatura que as queixas nas articulações adjacentes relacionam-se com a posição em que a artrodese é realizada, não existe diferença estatisticamente significativa na relação entre a posição de artrodese e desenvolvimento de dor nas articulações circundantes1,3,10,11.

O joelho contralateral parece ser pouco afetado, surgindo num menor número de casos e sem importante repercussão funcional, não influenciando as atividades de vida diária1. A anca contralateral também é afetada, no entanto, em menor medida quando comparada aos fenómenos álgicos desenvolvidos ao nível da coluna lombar e joelho homolateral1. A doente por nós operada e descrita neste caso clinico ainda não apresenta qualquer queixa nas articulações circundantes, no entanto, apenas com 3 anos de pós-operatório apresenta, em nossa opinião, um seguimento relativamente curto para que essas manifestações tenham lugar.

 

CONCLUSÃO

A artrodese da anca é uma opção terapêutica válida em situações de exceção. Em doentes jovens, com exigência física considerável, destruição articular estabelecida, co-morbilidades importantes e seguimento médico precário condicionado pela situação sócio-económica, está potenciado o risco de complicações numa eventual artroplastia. Neste contexto, a artrodese constituiu uma boa solução, permitindo o alivio eficaz das queixas álgicas com boa qualidade de vida e risco diminuído de complicações.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Conflito de interesse:

Nada a declarar

 

Endereço para correspondência

Joaquim Soares do Brito
Interno de Ortopedia do Serviço de Ortopedia do CHLN - Hospital de Santa Maria
Avenida Professor Egas Moniz
1649-035, Lisboa, Portugal
joaquimsoaresdobrito@gmail.com

 

Data de Submissão: 2015-12-10

Data de Revisão: 2016-03-19

Data de Aceitação: 2016-03-25

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