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Revista Portuguesa de Ortopedia e Traumatologia

versão impressa ISSN 1646-2122

Rev. Port. Ortop. Traum. vol.23 no.2 Lisboa jun. 2015

 

CASO CLÍNICO

 

Falência de artroplastia total do joelho primária e sua revisão- um caso extremo de hipersensibilidade aos metais

 

Romeu PinhoI; Filipe PugaI; Paula H. SilvaI; José MartelI; Altino SantosI; José BrenhaI

I. Centro Hospitalar do Baixo Vouga, EPE.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO

A prevalência da hipersensibilidade dérmica a metais na população geral varia entre 10 e 15%, sendo o níquel o metal mais frequentemente envolvido. Apesar disso, estima-se que a alergia/hipersensibilidade a metais esteja envolvida em apenas 0,1% das falências de implantes ortopédicos.

Exceptuando uma minoria de doentes altamente predisposta, não é claro de que modo as respostas de hipersensibilidade a biomateriais metálicos afectam o desempenho dos implantes ortopédicos na generalidade dos doentes.

Não existe nenhum teste ou procedimento unanimemente aceite para confirmar o diagnóstico de hipersensibilidade a um implante ortopédico. Uma anamnese cuidadosa constituirá o primeiro e mais importante passo nessa abordagem.

O risco para a população em geral é baixo, não estando por isso indicada a realização de exames complementares por rotina para despiste de hipersensibilidade a metais.

Os autores apresentam um caso muito raro de hipersensibilidade a metais de que resultou não só a falência da artroplastia primária do joelho bem como da artroplastia de revisão em zircónio oxidado (Oxinium®), mas também o desenvolvimento de uma reacção alérgica a fixadores externos, com consequente prejuízo nos resultados obtidos.

No futuro, são necessários mais estudos para definir eventuais factores preditivos com impacto clínico.

Palavras chave: Artroplastia, hipersensibilidade, alergia, metal, falência, prótese, implante, joelho.

 

ABSTRACT

The prevalence of dermal hypersensitivity to metals in the population varies between 10 and 15%, being the nickel the most frequently involved metal. Nevertheless, it is estimated that allergy / hypersensitivity to metals is involved in only 0.1% of orthopedic implant failures.

Except for a minority of highly predisposed patients, in most patients it is not clear how the hypersensitivity responses to metallic biomaterials affect the orthopedic implants performance.

There is no test or procedure unanimously accepted to confirm the diagnosis of hypersensitivity to an orthopedic implant. A careful history will be the first and most important step in this approach.

The risk for the population is low and consequently there is no indication for the use of routine screening tests.

The authors present a very rare case of metal hypersensitivity that not only resulted in the failure of the primary knee arthroplasty and the revision arthroplasty in oxidized zirconium (Oxinium®), but also to the development of an allergic reaction to external fixators, with consequent impairment in the clinical result.

The risk for the population is low and consequently there is no indication for the use of routine screening tests.

Future studies are needed to define possible predictors with clinical impact.

Key words: Arthroplasty, hypersensitivity, allergy, metal, failure, prothesis, implant, knee.

 

INTRODUÇÃO

O aumento da esperança média de vida da população e as crescentes indicações cirúrgicas da patologia ortopédica degenerativa e traumatológica têm levado a uma cada vez maior utilização de implantes ortopédicos1,2.

Ao longo do tempo e dada a exigência das funções que se pretendem mimetizar, diferentes materiais têm sido aplicados nos componentes das próteses, nomeadamente metais, polímeros e compósitos2. Historicamente, a capacidade dos materiais causarem respostas adequadas na sua interacção com o hospedeiro (biocompatibilidade) determinaram a eliminação de materiais com base no carácter adverso de algumas das respostas obtidas. Contudo, algumas respostas adversas são difíceis de caracterizar no âmbito clínico ou préclínico devido à sua natureza subtil ou infrequente: a hipersensibilidade/reactividade a metais in vivo será uma delas3.

Ainda que pouco seja conhecido acerca da farmacodinâmica e biodisponibilidade dos produtos de degradação metálica circulantes, existem publicados relatos de reacções de hipersensibilidade temporalmente associadas com a implantação de componentes metálicos3.

As reacções de hipersensibilidade podem ser do tipo imediato, com envolvimento de mecanismos do tipo humoral (relacionada com a presença de anticorpos e da formação de complexos antigéneo/anticorpo – reacções tipo I, II e III,) ou do tipo tardio (horas a dias – tipo IV) envolvendo uma resposta mediada por células. O último tipo é o mais frequentemente envolvido na reacção aos implantes ortopédicos, sendo independente dos anticorpos ou do sistema do complemento. Linfócitos T previamente sensibilizados libertam diversas citocinas, das quais resulta a activação e acumulação de macrófagos, que constituem as principais células efectoras deste tipo de reacção. A evidência do papel central dos linfócitos T na hipersensibilidade a metais provém de estudos histopatológicos de doentes com dermatites de contacto a metais e estudos de reacção linfoctária in vitro em doentes com falência precoce de artroplastia. Uma vez que a estimulação in vitro de células mononucleares do sangue periférico pelos iões metálicos leva a respostas intensas em individuos previamente sensibilizados, existe uma forte evidência de que as células T estão envolvidas na patogénese da hipersensibilidade aos metais1,3.

Todos os metais em contacto com sistemas biológicos sofrem corrosão, levando à formação de iões metálicos que podem ativar o sistema imune através da formação de complexos com proteínas endógenas. Está demonstrado que esses produtos de degradação estão associados a alterações cutâneas (dermatite, urticária, vasculite)3.

A prevalência da hipersensibilidade dérmica a metais entre a população geral varia entre 10 e 15%.

O niquel é o ião metálico mais comumente envolvido nas reacções de hipersensibilidade, seguido pelo cobalto, crómio e berílio. A reacção cruzada entre o níquel e o cobalto é a mais comum1,2,3,4.

É de notar que apesar da prevalência de hipersensibilidade dérmica a metais ser superior nos pacientes submetidos a artroplastia (cerca de 25%, sensivelmente o dobro da população geral), particularmente nos doentes com falência da artroplastia (cerca de 60%), o risco para a população em geral é considerado baixo. Estima-se que a alergia/hipersensibilidade a metais esteja envolvida em apenas 0,1% das falências de implantes ortopédicos3.

Os autores pretendem apresentar um caso raro de hipersensibilidade a metais de que resultou não só a falência da artroplastia primária do joelho bem como da artroplastia de revisão em zircónio oxidado (Oxinium®) e até o desenvolvimento de uma reacção alérgica a fixadores externos, com consequente resultado clínico sub-óptimo para a doente.



 

CASO CLÍNICO

Doente do sexo feminino de 70 anos de idade submetida a artroplastia total do joelho direito, por gonartrose primária, a 14/07/2009. Na história pregressa havia menção a reacções alérgicas de repetição a materiais de joalharia. Sem registo de intercorrências no intra e pós-operatório imediato (internamento).

Passadas 5 semanas, em consulta de seguimento, a doente apresentava sinais inflamatórios locais, com presença de vesiculas peri-cicatriciais, bem como queixas álgicas intensas (resultado 7/10 na Escala Visual Analógica) e rigidez articular. Encontrava-se apirética. Analiticamente havia um aumento da Velocidade de Sedimentação (91,0 mm/1ª hora) e da Proteína C Reactiva (6,0 mg/dl) com contagem de leucócitos dentros dos parâmetros normais (6,8 X 109/L). Radiologicamente não eram objetiváveis quaisquer alterações.

Por persistência das queixas e descolamento radiológico de ambos os componentes protésicos (Figura 1), com normalidade dos parâmetros inflamatórios, nomeadamente VS, PCR e leucograma - procedeu-se a extracção da prótese total do joelho direito em 21/01/2011 e colocação de espaçador de cimento. Não houve isolamento de qualquer microrganismo tendo o exame anatomopatológico dos tecidos circundantes revelado “um infiltrado inflamatório intenso, com predomínio de linfócitos, plasmócitos e neutrófilos” sugestivo de “processo inflamatório subagudo a crónico”.

 

 

Foi posteriormente realizado o teste de migração de linfócitos (Melisa®) que foi positivo para o níquel. Perante a ausência de sinais inflamatórios locais e a total normalidade dos parâmetros laboratoriais, a doente foi submetida a artroplastia de revisão do joelho direito com prótese em zircónio oxidado (Oxinium®) em 20/05/2011 (Figura 2). Na primeira consulta de seguimento pós-operatório imediato a doente apresentava já queixas álgicas intensas (EVA 7/10), com limitação do arco de movimento e sinais inflamatórios locais. Numa das consultas seguintes, aos 6 meses (Figura 3), a doente apresentava para além da exacerbação das queixas álgicas (EVA 8/10), eritema de toda a face anterior do joelho, com valores dos parâmetros inflamatórios laboratoriais dentro da normalidade.

 

 

 

Foi decidida a extracção da prótese de revisão, intervenção em que se detectou sinovite extensa e descolamento de ambos os componentes protésicos.

Como solução de recurso, foi tentada a artrodese do joelho com fixadores externos. Perante o surgimento de reacção inflamatória exuberante no local de introdução dos pins e reacção eritematosa cervical e em todo o membro inferior direito, foram extraídos os fixadores externos aos 2 meses e imobilizou-se o membro com tala gessada cruropodálica. Houve remissão total da sintomatologia cutânea e da dor. Radiologicamente, a artrodese foi conseguida (Figura 4).

 

 


 

DISCUSSÃO

A alergia a metais enquanto causa de falência de material ortopédico está envolta em controvérsia na literatura publicada1,5. É discutível até que ponto a hipersensibilidade ao metal leva a instabilidade ou vice-versa. Não é igualmente claro de que modo as respostas de hipersensibilidade a biomateriais metálicos afectam o desempenho dos implantes ortopédicos na generalidade dos doentes (se excluirmos uma minoria altamente predisposta)5,7.

Assim, postula-se que a sensibilidade a metais pode existir quer como uma complicação extrema num pequeníssimo grupo de doentes altamente susceptíveis ou enquanto um factor contributivo mais comum mas também mais subtil para a falência dos implantes3.

É aceite na literatura que o risco de complicações após artroplastia em doentes com alergia cutânea comprovada ao metal é baixo, embora este seja mais significativo em doentes com história prévia de alergia a dispositivos metálicos ou a peças de joalharia3,5,6.

A prevalência exacta de reacções alérgicas a componentes protésicos do joelho ou da anca é desconhecida. De igual modo, não existe qualquer relação causal comprovada entre a prevalência de alergia cutânea aos metais na população geral e a taxa de falência de dispositivos ortopédicos3,8.

Schuh et al.9 reportaram 12 casos de alergia ao níquel, 4 ao cobalto e 1 ao crómio em 300 doentes submetidos a artroplastia primária, apenas 1 dos quais era sintomático. Por outro lado, Thomas et al. 10 documentaram hipersensibilidade ao metal em 11 de 16 casos de falência de artroplastia da anca (próteses metal-metal) com inflamação linfocítica peri-implante.

Não existe atualmente um teste ou procedimento diagnóstico unanimemente aceite para investigação de uma suspeita de alergia a implante ortopédico3,4.

Como no caso apresentado, uma anamnese cuidadosa constituirá o primeiro passo nessa abordagem. O surgimento de sinais de hipersensibilidade cutânea temporalmente relacionada com a implantação de material ortopédico deve levantar a suspeita clínica de alergia ao material. A infecção constitui um importante diagnóstico diferencial e deve ser excluída clinica e laboratorialmente, conforme aconteceu no caso apresentado. Alguns autores, nomeadamente Thomsen et al.4 preconizam mesmo uma biópsia pré-operatória para excluir confiavelmente uma infecção. Adicionalmente, os testes cutâneos (“patch test”), o teste de transformação linfoblástica e o teste de inibição da migração leucocitária podem auxiliar no diagnóstico, embora nenhum dos referidos per se seja universalmente aceite por não apresentarem elevadas taxas de sensibilidade e especificidade3,4,9.

Acresce que no caso das artroplastias cimentadas a reacção alérgica aos componentes cimentados pode ser a causa da falência asséptica.

Após uma investigação exaustiva e rigorosa, com exclusão dos diagnósticos diferenciais mais prováveis, deve ser considerado o diagnóstico de alergia ao metal enquanto causa de falência asséptica do material.

No caso apresentado, optou-se pela revisão com prótese total do joelho em zircónio oxidado (Oxinium®) - uma das alternativas aceites na literatura3,4,11 - que desencadeou também uma reacção de hipersensibilidade exuberante, evento de extrema raridade e de dificil explicação à luz da evidência atual. É de realçar ainda que a própria tentativa de artrodese com fixadores externos foi dificultada por mais uma reacção de hipersensibilidade, o que tornou o caso apresentado num exemplo extremo das possíveis implicações da alergia ao metal na falência de implantes ortopédicos.

Enquanto nos casos de história prévia de hipersensibilidade documentada a metais é lícito ter em conta o risco de reacção alérgica a um implante ortopédico contendo esse material, relativamente aos doentes sem história de hipersensibilidade é aceite que, sendo o risco muito reduzido, não está indicada qualquer investigação rotineira com exames complementares com o intuito de a excluir3,5,12.

No futuro, serão necessários mais estudos sobre esta temática, visando idealmente identificar factores que permitam selecionar do cada vez maior número de doentes, os que poderão desenvolver reacções de hipersensibilidade aos implantes ortopédicos, de modo a tentar evitar as complicações e melhorar os resultados finais.


 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Conflito de interesse:

Nada a declarar.

 

Endereço para correspondência

Tiago Pinheiro Torres
Serviço de Ortopedia do Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia / Espinho
R. Dr. Francisco Sá Carneiro
4400-129 Vila Nova de Gaia
Telefone: +351 22 786 5100
tiagocpt@gmail.com

 

Data de Submissão: 2015-03-20

Data de Revisão: 2015-07-23

Data de Aceitação: 2015-08-20

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