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Revista Portuguesa de Ortopedia e Traumatologia

Print version ISSN 1646-2122

Rev. Port. Ortop. Traum. vol.23 no.1 Lisboa Mar. 2015

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Desmóide cortical. Irregularidade cortical distal femoral que mimetiza malignidade

 

Luís TavaresI; Cristina AlvesI; Pedro CardosoI; Inês BalacóI; Tah Pu LingI; Gabriel MatosI

I. Serviço de Ortopedia Pediátrica. Hospital Pediátrico. Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO

O desmóide cortical define-se como lesão fibro-óssea reactiva auto-limitada, considerada como uma variante da displasia fibrosa cortical, com características biológicas e clínicas benignas. No entanto, esta poder-se-á apresentar com características clínicas e imagiológicas que podem induzir suspeita de malignidade.

Assim, os autores têm como objectivo, através da apresentação de dois casos clínicos, salientar a importância do reconhecimento desta patologia como uma variante do normal, evitando-se a realização de exames complementares de diagnóstico invasivos como a biópsia, de forma a excluir patologia maligna.

Duas crianças recorreram ao serviço de urgência após traumatismo do joelho durante actividades desportivas. Radiologicamente apresentavam imagens de densidade heterogénea, com contorno espiculado da cortical ao nível do côndilo femoral interno, proximalmente à placa fisária. Os casos foram discutidos em reunião multidisciplinar Ortopedia-Radiologia e, pela necessidade de distinção entre patologia benigna ou maligna, foram realizados outros meios complementares de diagnóstico.

A correlação entre os achados imagiológicos e a clinica, permitiram realizar o diagnóstico de desmóide cortical, sem necessidade de realização de biópsia.

Conclusão: o desmóide cortical não carece de tratamento, apenas vigilância clínica e radiológica em consultas de seguimento. O seu prognóstico é excelente e lesão desaparece ao atingir a idade adulta.

Palavras chave: Desmóide cortical, crianças, variante displasia fibrosa cortical.

 

ABSTRACT

Cortical desmoid are self-limiting reactive fibroosseous lesions, considered to be a variant of fibrous cortical dysplasia, which has benign biological and clinical behaviour. However, it may present clinical and imaging features that can induce suspicion of malignancy.

Through presentation of 2 clinical cases, authors aim to emphasize the importance of diagnose cortical desmoid as a variant of normal and thus avoid the need to perform invasive diagnostic procedures to exclude malignancy.

2 children were observed in the emergency department after knee trauma during sport activities. Radiologically, spiculated lesions were observed at the distal femoral metaphysis, proximal to the growth plate. The cases were discussed in a multidisciplinary meeting between Orthopaedics and Radiology. To distinguish between benign and malignant disease, further imaging was done.

The correlation of imaging with clinical findings allowed to diagnose desmoid cortical lesions and no biopsy was performed.

Conclusion: cortical desmoid doesn´t need treatment, just clinical and radiological follow-up.

The prognosis is excellent and lesion disappears upon reaching adulthood.

Key words: Cortical desmoid, children, fibrous cortical dysplasia variant.

 

INTRODUÇÃO

Nas crianças, a extremidade distal do fémur é sede de patologia benigna e maligna. As lesões benignas são maioritariamente assintomáticas e com limites radiológicos bem definidos, contrastando com as lesões malignas, que geralmente se manifestam com dor à palpação local, por vezes associadas a sinais inflamatórios, e com padrão radiológico destrutivo da cortical, edema tecidual e reacção periostal9. No entanto, existem patologias de carácter benigno que apresentam características clínicas e imagiológicas que podem induzir suspeita de malignidade.

O fémur distal é a localização preferencial do desmóide cortical, lesão fibro-óssea benigna, reactiva e auto-limitada, considerada por muitos autores como uma variante da displasia fibrosa cortical, com características biológicas e clínicas benignas7, mas que podem levantar dúvidas diagnósticas nesta localização. Vários nomes têm sido utilizados para caracterizar esta entidade: irregularidade cortical femoral distal, desmóide periostal ou justacortical ou irregularidade cortical avulsiva7. A sua incidência é maior em crianças fisicamente activas entre os 10-15 anos de idade, sendo de 11,5% do sexo masculino e 3,6% do sexo feminino, com atingimento bilateral em 35% dos casos1,3,4,9. De referir a presença de lesões com maiores dimensões no membro dominante, nunca tendo sido descrita como achado inicial em doentes com fises encerradas6.

Embora o desmóide cortical se encontre mais frequentemente no fémur, também pode ser observado em outras regiões associadas a inserção muscular de grande tracção como o úmero, tíbia, perónio, rádio, metatarsos, metacarpos e falanges distais.

Na maioria dos casos, a lesão é descoberta de forma acidental em doentes assintomáticos, através de uma radiografia realizada por outros motivos4,9. Porém, em alguns casos, a presença de sintomatologia associada pode levantar dúvidas e exigir o diagnóstico diferencial com patologia oncológica.

Os autores têm como objectivo descrever os aspectos clínicos e radiológicos de 2 casos clínicos de desmóide cortical no fémur distal4.

 

CASO CLÍNICO 1

Doente do sexo masculino, 10 anos, saudável até à data da observação. Recorreu ao Serviço de Urgência por traumatismo do joelho esquerdo a jogar futebol.

O doente referia dor e desconforto no joelho durante o último mês, no contexto da prática desportiva.

Negava dor nocturna ou alterações sistémicas.

O exame físico não revelou alterações, excepto empastamento na face interna da extremidade distal da coxa esquerda, com dor à palpação.

Radiologicamente apresentava imagens de densidade heterogénea, com contorno espiculado da cortical ao nível do côndilo femoral medial, proximalmente à placa fisária (Figura 1).

 

 

O caso foi discutido em reunião multidisciplinar Ortopedia-Radiologia, tendo-se decidido pela realização de investigação diagnóstica complementar com radiografia do joelho contralateral, cintigrafia óssea e ressonância magnética nuclear (RMN) de ambos joelhos.

A radiografia (Figura 2) e a RMN do joelho bilateral (Figura 3) revelaram imagens simétricas ao nível da extremidade femoral distal contralateral.

 

 

 

A Cintigrafia Óssea (Figura 4) não revelou alterações significativas.

 

 

Na RMN do joelho esquerdo (Figura 5) verificou-se a presença de edema periosteal e medular póstero-medial da região supracondiliana do fémur, apresentando-se hipodenso em ponderação T1 e hiperdenso em ponderação T2, e, em ambas as ponderações, apresentava um halo negro em redor, correlacionando-se com a inserção femoral musculo-tendinosa do grande adutor. Não se observaram outras lesões de tecidos moles, medula óssea ou do osso cortical.

 

 

Após período de 2 semanas de repouso, o doente apresentava-se assintomático e sem qualquer limitação funcional dos joelhos ou na actividade física.

 

CASO CLÍNICO 2

Doente do sexo feminino; 14 anos.

Recorreu ao Serviço de Urgência por traumatismo do joelho direito a andar de bicicleta. Negava episódios prévios de gonalgia, dor nocturna ou alterações sistémicas.

O exame físico não revelou alterações, excepto edema e escoriações na face ântero-interna do joelho direito, com dor à palpação.

Radiologicamente apresentava imagens de densidade heterogénea, com contorno espiculado da cortical ao nível do côndilo femoral medial, proximalmente à placa fisária (Figura 6).

 

 

O caso foi, também, discutido em reunião multidisciplinar Ortopedia-Radiologia, tendo-se optado pela realização de investigação diagnóstica complementar com tomografia axial computorizada (TAC) dos joelhos e RMN do joelho afectado.

A TAC (Figura 7) do joelho bilateral revelou imagens simétricas ao nível da extremidade femoral distal contralateral. Nas imagens de TAC do joelho direito (Figura 8) observou-se um defeito da cortical póstero-medial da região supracondiliana do fémur, correlacionando-se com a inserção musculo-tendinosa do gastrocnemius medial. Na RMN do joelho direito (Figura 9) verificou-se o mesmo defeito associado a edema periosteal e medular, apresentando-se hipodenso em ponderação T1 e hiperdenso em ponderação T2, e, em ambas as ponderações, apresentava um halo negro em redor, correlacionando-se com a inserção musculotendinosa do gastrocnemius medial.

 

 

 

 

Não se observaram outras lesões de tecidos moles, medula óssea ou do osso cortical.

Após período de repouso, a doente apresentava-se assintomática e sem qualquer limitação funcional dos joelhos ou na actividade física.

 

DISCUSSÃO

O desmóide cortical é uma entidade benigna que, no fémur, apresenta localização e padrão de imagem muito característicos: irregularidade ou defeito intracortical focal, de maior eixo paralelo ao eixo mais longo da diáfise, na face póstero-medial da metáfise distal do fémur, ao nível das zonas de inserção muscular do gastrocnemius medial ou do grande adutor (5" href="http://www.rpot.pt/image/?id=2944">Figura 10)1,7. Esta caracterização radiológica é melhor conseguida através de uma incidência oblíqua, obtida por radiografia ântero-posterior (AP) com 20-40º de rotação externa do membro inferior4.

Em relação à fisiopatologia, pensa-se que o desmóide cortical, pelo rápido surgimento, regressão espontânea e atingimento preferencial em adolescentes fisicamente activos do sexo masculino, resulte da combinação entre a tracção exercida pelas inserções musculares do grande adutor/gastrocnemius medial no periósteo/osso cortical e o ratio aumentado de reabsorção/formação óssea durante os períodos de maior crescimento ósseo na extremidade distal do fémur. Desta forma, há uma predisposição para o aparecimento de microavulsões da cortical, que induzem uma resposta vascular fibroblástica com consequente preenchimento do defeito ósseo com tecido fibrótico, o que por sua vez vai estimular a reabsorção óssea através da activação de osteoclastos, gerando um ciclo vicioso (fractura-reabsorção-fractura)1. Assim, do ponto de vista histológico, esta patologia apresenta-se como um defeito cortical superficial preenchido com tecido fibroso associado a espessamento periostal, podendo observar-se fragmentos ósseos em reabsorção no tecido fibrótico1. À medida que o crescimento ósseo cessa, o osso torna-se mais rígido e este ciclo fractura-reabsorção-fractura termina.

O diagnóstico de desmóide cortical é simples em doentes assintomáticos que tenham achados radiológicos típicos. No entanto, em casos de dor articular associada a alterações radiológicas atípicas, como presença de um padrão irregular espiculado com contornos mal definidos, é necessária investigação diagnóstica complementar, para distinção entre patologia benigna ou maligna, com recurso a Cintigrafia Óssea, TAC e RMN de ambos os membros8,9. De salientar que a RMN poderá ter um papel preponderante por não utilizar radiação ionizante.

O diagnóstico diferencial de desmóide cortical inclui osteossarcoma periostal, fibroma não-ossificante e displasia fibrosa cortical2.

O osteossarcoma periostal trata-se de uma lesão progressiva e unilateral que afecta osso cortical e trabecular, assim como o tecido mole envolvente. Já o fibroma não-ossificante corresponde a uma lesão óssea isolada e de contornos bem definidos, sem envolvimento de tecidos moles envolventes, com tendência a migrar proximalmente com crescimento ósseo. A Displasia Fibrosa Cortical localiza-se perto da extremidades diafisárias e atinge inicialmente a cavidade medular com posterior progressão para a cortical.

A cintigrafia óssea permite a distinção entre patologia maligna e benigna, sendo normal no desmóide cortical. Tanto a TAC como a RMN permitem caracterizar a lesão e demonstrar a relação anatómica entre a lesão e as inserções musculares, condição sine qua non para o diagnóstico de desmóide cortical, verificando-se muitas vezes a presença de lesões com as mesmas características no membro contralateral.

A sinergia entre a clínica e os exames complementares permite realizar o diagnóstico de desmóide cortical, evitando a realização de exames mais invasivos como a biópsia.

 

CONCLUSÃO

O desmóide cortical é observado em crianças e adolescentes na região póstero-medial da metáfise distal do fémur e apresenta uma localização e aparência radiológica características.

É importante o seu reconhecimento como variante da normalidade, evitando a necessidade de realização de procedimentos invasivos como a biópsia. O desmóide cortical não carece de tratamento, podendo estar indicada vigilância clínica e radiológica em consultas de seguimento. O prognóstico é excelente e lesão desaparece com a maturação esquelética.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Conflito de interesse:

Nada a declarar

 

Endereço para correspondência

Luis Tavares
Serviço de Ortopedia
Hospital Pediátrico
Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
Av. Afonso Romão
S. António dos Olivais
3000-602 Coimbra-Portugal
lmigueltavares@hotmail.com

 

Data de Submissão: 2015-01-11

Data de Revisão: 2015-03-15

Data de Aceitação: 2015-03-15

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