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Revista Portuguesa de Ortopedia e Traumatologia

versão impressa ISSN 1646-2122

Rev. Port. Ortop. Traum. vol.22 no.2 Lisboa jun. 2014

 

CASO CLÍNICO

 

Mosaicoplastia do capitato na carpectomia da fileira proximal

 

Carlos PinaI, II; Edgar RebeloII; Ruben FonsecaI, II; Pedro MatosI, II; Antonio NeriI

I. Serviço de Ortopedia. Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. Portugal.
II. Serviço de Ortopedia. Centro Hospitalar de Leiria-Pombal. Portugal.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO

A carpectomia da fileira proximal é uma cirurgia utilizada com frequência no tratamento da artrose radiocárpica. Trata-se de uma técnica com bons resultados funcionais, no entanto contraindicada na presença de atingimento artrósico mesocárpico.

A mosaicoplastia, técnica descrita e utilizada maioritariamente em cirurgia do joelho para tratamento de lesões condrais, é um conceito que poderá ser aplicado na cirurgia do punho, perante as mesmas condições de defeito condral localizado e contido, permitindo um alargamento das indicações da carpectomia da fileira proximal.

Apresentamos o caso de um doente de 66 anos de idade, com punho SNAC III sintomático proposto para carpectomia da fileira proximal e constatação intraoperatória de lesão condral tipo IV de Outerbridge da cabeça do capitato, cujo recurso a mosaicoplastia com enxerto condral do semilunar excisado permitiu a aplicação da técnica. Aos 17 meses de seguimento apresenta um bom resultado funcional, mantendo arco de mobilidade de 60o e retoma das atividades prévias, sem queixas significativas.

Descrevemos a técnica de mosaicoplastia aplicada ao capitato e discutimos as suas indicações.

Palavras chave: Carpectomia da fileira proximal, mosaicoplastia, artrose radiocárpica.

 

ABSTRACT

Proximal Row Carpectomy is a common technique employed in the treatment of radiocarpal arthritis. This technique has been traditionally contraindicated in cases where the capitate has focal condral lesions.

In knee surgery, mosaicoplasty has been used to treat focal condral lesions and this concept has the potential to be applied in wrist surgery at the same conditions permitting the broadening of proximal row carpectomy indications.

We present a clinical case of a 66 year old man with a symptomatic SNAC wrist with focal condral lesion of the capitate, classified as grade IV in Outerbridge classification, in which we utilized the technique of proximal row capectomy associated with resurfacing of the capitate lesion with autogenous osteochondral graft from excised lunate. After 17 months of follow-up the patient shows a good functional result with maintenance of mobility and return of daily activities.

We describe and discuss the indications to utilization of the technique.

Key words: Proximal row carpectomy, wrist mosaicoplasty, wrist arthritis.

 

INTRODUÇÃO

A carpectomia da fileira proximal (CFP) foi descrita em 1994 por Stamm e consiste na remoção da fileira procárpica, dando à articulação radiocárpica novas superfícies de contacto, nomeadamente, entre o capitato e a fossa semilunar do rádio. É aplicada no tratamento do colapso do carpo associado à pseudoartrose do escafóide (SNAC) e dissociação escafolunar (SLAC), doença de Kienböck e lesões periescafolunares. No entanto, as lesões condrais da cabeça do capitado e/ou fossa semilunar tradicionalmente contraindicam a utilização da técnica.

A mosaicoplastia, técnica descrita e utilizada maioritariamente em cirurgia do joelho para tratamento de lesões condrais dos côndilos, é um conceito que tem vindo a ser utilizado para outras superfícies articulares, incluindo o punho. Perante um defeito condral localizado e contido na superfície articular do capitato, a reparação do mesmo pode permitir um alargamento das indicações da carpectomia da fileira proximal.

 

CASO CLÍNICO

Um paciente de 66 anos de idade, reformado (antigo empregado de escritório), foi avaliado por dor e rigidez do punho direito associado à pseudartrose do escafoide com 20 anos de evolução.

Queixava-se de dor de características mecânicas, quantificável pela Escala Visual Analógica (EVA) em 7 pontos (máximo de 10) e uma limitação severa em todas as atividades que implicassem preensão e carga do punho.

As mobilidades do punho eram 45o de extensão, 40o de flexão e desvios radial e ulnar de 0o e 20o, respetivamente. A força de preensão encontrava-se limitada aos 20 Kg pela dor.

Radiologicamente apresentava uma pseudoartrose do escafóide associado a artrose radioescafoideia e escafocapitato, classificando-se como SNAC III (Figura 1).

 

 

Foi proposta uma cirurgia de resgate com decisão intraoperatória entre a CFP ou artrodese 4 esquinas.

Constatou-se, durante a intervenção cirúrgica, a presença de uma lesão condral tipo IV de Outerbridge da cabeça do capitato, ocupando todo o quadrante central, radial e dorsal com área de aproximadamente 5 x 7 mm. A fossa semilunar encontrava-se íntegra (Figura 2).

 

 

Procedeu-se à realização da CFP recorrendo a um “resurfacing” condral, pela técnica de mosaicoplastia, com um cilindro osteocondral autólogo do osso semilunar excisado.

O período pós-operatório decorreu sem complicações, tendo sido imobilizado com uma tala gessada durante 2 semanas e substituição por uma ortótese neutra do punho, com a qual permaneceu durante mais 4 semanas. Após esse período, iniciou a mobilização progressiva e início de carga progressiva a partir do momento em que a mobilidade se tornou indolor.

Com um seguimento de 13 meses, apresenta uma EVA de 2 pontos, amplitude de movimento combinado do punho de 60o, força de preensão de 28 kg e retomou as atividades de vida diária sem queixas. Radiologicamente não apresenta sinais de artrose radiocárpica e verificou-se integração do enxerto (Figura 3).

 

 

 

Nota Técnica

Sob anestesia geral (podendo ser usada anestesia locorregional) e garrote aplicado no braço, utilizamos uma abordagem longitudinal dorsal alinhada com o 3o raio, sobre o tubérculo de Lister, com aproximadamente 8 cm. Após a dissecção dos planos superficiais com preservação dos ramos sensitivos dorsais, o retináculo é incisado sobre o 3o compartimento extensor, libertando o extensor longo do polegar radialmente. De seguida, é criado o plano sob o 4o e 5o compartimentos extensores, com identificação do nervo interósseo posterior, realizando-se a sua eletrocauterização distal.

A cápsula articular é abordada com um retalho trapezoidal de base radial utilizando como referências o ponto médio entre o tubérculo de Lister e a fossa semilunar, a tuberosidade do piramidal e o intervalo entre o escafoide, trapézio e trapezoidal, conforme preconizado por Berger6,13. O retalho apresenta um ramo proximal justa-radial, um obliquo entre os primeiros dois pontos de referência e um ramo distal transversal entre a tuberosidade do piramidal e o último ponto de referência (Figura 4). Essa abordagem permite a preservação dos ligamentos radiocárpico e intracárpico dorsais, mantendo assim estruturas fundamentais da estabilização do punho6,13.

 

 

Realiza-se uma libertação capsuloligamentar tangencial infracapsular, permanecendo o retalho com uma base radial.

Com as articulações radiocárpica e intracárpicas expostas, é realizada a inspeção da fossa semilunar e cabeça do capitato com manobra de tração e flexão do punho.

Realiza-se a exérese sequencial dos polos proximal e distal do escafoide, e do semilunar e piramidal intactos de modo a constituírem a fonte de enxerto osteocondral. Devem ser tomadas precauções para não lesar as estruturas ligamentares volares do carpo.

De seguida, na presença de lesão condral do capitato, deve-se testar o contacto entre a fossa semilunar e o capitato. Na vigência de uma lesão superior a 3 mm de diâmetro na zona de contacto, deve-se proceder ao seu “resurfacing”. Nós utilizámos uma régua cirúrgica para as medições, podendo no entanto ser utilizada uma broca de mosaicoplastia.

O cilindro condral é colhido do semilunar ou piramidal com brocas de mosaicoplastia ou através de simples confeção e regularização com pinça goiva. É realizada uma regularização dos bordos e fundo da lesão com broca, em direção perpendicular à superfície condral (Figura 5). O enxerto é aplicado à mão e com percussão suave de martelo prevenindo a lesão condral do enxerto. De notar que não é necessário que as dimensões do enxerto preencham completamente a superfície da lesão, evitando assim uma lesão da cartilagem periférica do capitato e do próprio enxerto se a sua introdução decorre com uma fricção/contacto sob grande pressão. Consideram-se toleráveis lacunas até 2 mm (Figuras 6 a 7).

 

 

 

Figura 7

 

Testa-se a mobilidade da nova articulação radiocarpica. Se existir conflito dorsal ou da estilóide radial, procede-se a ostectomias parciais dessas superfícies. O bordo proximal do retalho capsular é encerrado de forma laxa de modo a evitar contracturas e limitação da flexão. O retináculo é encerrado com a transposição radial do EPL e os restantes planos são encerrados. Não utilizamos drenos.

O punho é imobilizado com tala gessada durante 2 semanas, após o que se utiliza uma ortótese de imobilização em posição neutra.

A mobilização do punho é iniciada às 4 semanas e carga progressiva a partir da oitava semana. Preconizamos uma reabilitação mais tardia que numa CFP clássica devido à necessidade de proteção do enxerto osteocondral.

 

DISCUSSÃO

A técnica de mosaicoplastia do capitato permite o alargamento das indicações de CFP em lesões osteocondrais contidas do capitato, com resultados sobreponíveis à CFP clássica.

Após 13 meses de seguimento, constatamos que a força de preensão melhorou significativamente (actualmente 28kg), com perda de amplitude global, mas ainda com arco de movimento de 60o, e retoma das atividades de vida diária com uma EVA média de 2 pontos.

Desde a descrição da CFP, vários estudos já abordaram a biomecânica do punho após a cirurgia. Apesar da concentração de stress no capitato, devido à incongruência entre este e a fossa semilunar4,9, a nova biomecânica estabelecida envolve um duplo movimento de rotação e translação do capitato sobre a fossa semilunar5, mecanismo esse que provoca uma dissipação das forças de stress e é responsável pelo bons resultados funcionais da CFP, que apresenta taxas elevadas de sobrevivência a longo termo1,2,8,11. Esses resultados são semelhantes, mesmo em pacientes com lesões condrais menores que 3 mm de diâmetro11,14. Pacientes entre os 35 e 40 anos de idade foram apontados como fator de mau prognóstico1,8.

Dentro do conceito de “carpe banque” desenvolvido por Fucher e Salon12, a mosaicoplastia do defeito condral do capitato permite o alargamento da indicação da CFP. A longo prazo é expectável, tal como na técnica clássica, o desenvolvimento de artrose radiocárpica, no entanto sem correlação clínico-funcional1,2,8,11.

Embora exista apenas um estudo na literatura em que esta técnica de mosaicoplastia do capitato foi utilizada, com follow-up médio de 25 meses e com 8 pacientes, os autores obtiveram resultados funcionais sobreponíveis aos da CFP clássica5. Neste estudo apontam como contraindicação da técnica a presença de lesões condrais superiores a 10 mm, devido ao risco de fratura do capitato. Apontamos ainda a presença de lesões quísticas do capitato como uma contraindicação, uma vez que põe em risco a integração do enxerto.

Os pacientes com um semilunar tipo II merecem uma avaliação cuidadosa, uma vez que, tal como descrito na literatura, existe uma maior concentração de stress no capitato7, que acompanhado por uma conformação geométrica de menor diâmetro, pode levar a uma fratura do enxerto e capitato, além do maior potencial de desenvolvimento de artrose radiocárpica sintomática.

É igualmente importante que o enxerto seja aplicado em impactação, uma vez que desta são eliminados os micromovimentos entre o enxerto e o osso nativo, promovendo a cicatrizarão subcondral e diminuindo a reabsorção óssea e a formação de quistos12.

A técnica de mosaicoplastia do capitato demonstra grande potêncial no alargamento das indicações da CFP; no entanto, estudos em populações mais alargadas e seguimentos mais prolongados são necessários para a confirmação dessa hipótese.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Wall LB, Didonna ML, Kiefhaber TR, Stern PJ. Proximal row carpectomy: minimum 20-year follow- up. J Hand Surg Am. 2013 Aug; 38 (8): 1498-1504

2. Wall LB, Stern PJ. Proximal row carpectomy. Hand Clin. 2013 Fev; 29 (1): 69-78

3. Tang P, Gauvin J, Muriuki M, Pfaeffle JH, Imbriglia J, Goitz RJ. Comparison of the "contact biomechanics" of the intact and proximal row carpectomy wrist. J Hand Surg Am. 2009 Apr; 34 (4): 660-670

4. Hawkins-Rivers S, Budoff JE, Ismaily SK, Noble PC, Haddad J. MRI study of the capitate, lunate, and lunate fossa with relevance to proximal row carpectomy. J Hand Surg Am. 2008; 33 (6): 841-849        [ Links ]

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6. Berger RA. A method of defining palpable landmarks for the ligament-splitting dorsal wrist capsulotomy. J Hand Surg Am. 2007 Oct; 32 (8): 1291-1295

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9. Hogan CJ, McKay PL, Degnan GG. Changes in radiocarpal loading characteristics after proximal row carpectomy. J Hand Surg Am. 2004 Nov; 29 (6): 1109-1113

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13. Berger RA, Bishop AT, Bettinger PC. New dorsal capsulotomy for the surgical exposure of the wrist. Ann Plast Surg. 1995 Jul; 35 (1): 54-59

14. Imbriglia JE, Broudy AS, Hagberg WC, McKernan D. Proximal row carpectomy: clinical evaluation. .J Hand Surg Am. 1990 May; 15 (3): 426-430

 

Endereço para correspondência

Carlos Pina
Serviço de Ortopedia
Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
Av. Bissaya Barreto
3000 Coimbra
Portugal
manupina79@gmail.com

 

Conflito de interesse:

Nada a declarar.

 

Data de Submissão: 2014-07-15

Data de Revisão: 2014-08-20

Data de Aceitação: 2014-08-20

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