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Revista Portuguesa de Ortopedia e Traumatologia

Print version ISSN 1646-2122

Rev. Port. Ortop. Traum. vol.22 no.1 Lisboa Mar. 2014

 

CASO CLÍNICO

 

Procedimento de Huntington no tratamento de grande defeito ósseo em osteomielite da tíbia

 

Francisco SantosI; Barnabé DeuasseI; Matthias SchmauchI; António AssisI

I. Departamento de Ortopedia. Hospital Central de Maputo. Maputo. Moçambique.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO

Objetivo: As grandes perdas ósseas da tíbia constituem um desafio terapêutico.

Descrição: Apresentamos o caso clínico de uma criança de 9 anos, com drepanocitose, que na sequência de osteomielite crónica da tíbia sofreu uma fratura patológica da região diafisária.

Foi submetida a tratamento cirúrgico de que resultou um defeito ósseo considerável. Após remissão da infeção foi realizada cirurgia reconstrutiva utilizando a técnica de Huntington. O resultado final foi um membro funcional e livre de infeção.

Comentários: Este método permite obter a tibialização do perónio mantendo a sua vascularização e sem recorrer a microcirurgia ou material dispendioso.

Consideramos esta técnica eficaz e de extrema utilidade na abordagem de casos complexos como o descrito, sobretudo num contexto de recursos limitados.

Palavras chave: Defeito ósseo, infeção, tíbia, reconstrução, Huntington.

 

ABSTRACT

Objective: Substantial tibial defects are major therapeutic challenges.

Decription: We present a case of a 9 years old girl with sickle cell disease, which developed a tibial chronic osteomyelitis and suffered a pathologic fracture of the tibial shaft. She underwent surgical treatment resulting in an extensive bone defect. After infection remission she was readmitted for reconstructive surgery by the Huntington procedure. The final outcome was a functional and infection free limb.

Comments: This method consists on a tibialisation of the fibula respecting its blood supply with no need for microsurgery techniques or expensive material.

We consider the Huntington procedure very useful in the management of such complex cases particularly in a setting where there are limited resources.

Key words: Bone defect, infection, tibia, reconstruction, Huntington.

 

INTRODUÇÃO

As grandes perdas ósseas, sobretudo quando associadas a infeção local, constituem um desafio terapêutico importante. Cirurgias múltiplas, na tentativa de obter a reconstrução osteoarticular e debelar a infeção, aumentam o risco de recidiva e resultam frequentemente em defeitos ósseos extensos, podendo levar à necessidade de amputação do membro. A transposição do perónio ipsilateral para a tíbia foi realizada com sucesso pela primeira vez em 1903, por Huntington num defeito de 12,7 cm numa criança de sete anos1. Subsequentemente, vários autores utilizaram e descreveram técnicas semelhantes.

 

CASO CLÍNICO

Descreve-se o caso de uma criança de nove anos, do género feminino, raça negra, natural de Moçambique, drepanocítica, órfã de pais HIV-positivos, com dor referida à perna e ombro direitos com cerca de quatro semanas de evolução, a que se associaram lesões pustulosas na face antero-interna da perna. Por ter iniciado febre e drenagem espontânea, recorreu à consulta externa de ortopedia infantil. À observação apresentava tumefação e calor a nível do ombro e perna, fístulas com drenagem sero-purulenta, dor à mobilização passiva e ativa do ombro, bem como à palpação da perna.

Analiticamente apresentava anemia (Hb 6,26 g/dL), leucocitose (19.20 x 103/µL), neutrofilia (82.2%), velocidade de sedimentação de 120 mm/h. A pesquisa de plasmodium e HIV foram negativos.

A radiografia simples do ombro direito apresentava alterações sugestivas de osteomielite da extremidade proximal do úmero e dos dois terços proximais da tíbia direita.

Foi internada com o diagnóstico de artrite séptica do ombro direito e osteomielite crónica da tíbia ipsilateral. Realizou-se drenagem aspirativa de exsudado purulento do ombro direito e antibioterapia intravenosa empírica com cloxacilina e gentamicina. Registou-se melhoria clínica e laboratorial com exame microbiológico inconclusivo, pelo que teve alta hospitalar medicada com cloxacilina oral, cumprindo um total de sete semanas de antibioterapia.

Nas sucessivas consultas de seguimento verificou-se remissão total clínica e imagiológica relativa ao ombro direito, mas recorrência da dor e exsudado purulento a nível das fístulas da perna direita, com evidência de importante sequestro ósseo. Por subsequente fratura patológica (Figura 1), foi readmitida três meses após o primeiro internamento. Realizou-se limpeza cirúrgica e sequestrectomia, resultando perda de um importante segmento da diáfise da tíbia (Figura 2).

 

 

 

Após estabilização dos tecidos moles, com remissão da drenagem e sinais inflamatórios locais, oito semanas após o último internamento foi submetida a primeira fase do procedimento de Huntington com osteotomia proximal do perónio e fixação tíbio-peronial a este nível (Figura 3 e 4A). Dez semanas depois apresentava sinais de consolidação e procedeu-se à fixação tibio-peronial distal. Clinicamente, aos seis meses após a última cirurgia, apresenta um membro funcional, que permite carga e com alinhamento aceitável. Do ponto de vista imagiológico apresenta consolidação tibio-peronial e remodelação do perónio (Figura 4B).

 

 

 

 

DISCUSSÃO

As grandes perdas ósseas a nível da tíbia constituem um desafio terapêutico. Neste contexto, diversas técnicas utilizando o perónio como enxerto têm sido descritas. Uma dessas técnicas utiliza o perónio ipsilateral ou contralateral como enxerto estrutural não vascularizado. Por este motivo, apresenta taxas de complicações mais elevadas, nomeadamente fraturas e infeção2. Outras técnicas utilizam perónio vascularizado, dissecando, isolando e mantendo a sua vascularização, ou colhendo o enxerto e reanastomosando por microcirurgia. Nestes casos deve ser realizado um estudo angiográfico pré-operatório3,4.

O procedimento de Huntington envolve a osteotomia do perónio ipsilateral e respetiva mobilização medial com fixação à tíbia, com dissecção mínima e mantendo a maioria das inserções musculares1. Estes aspetos permitem preservar a sua vascularização, sem necessidade de recorrer a complexas técnicas de microcirurgia, Desta forma, é promovida a consolidação, bem como a sua integração com a reconstrução do defeito tibial a ser conseguida em oito de onze doentes, num estudo de Kassab et al5.

No primeiro tempo é realizada exposição e decorticação da tíbia proximal, desperiostização de cerca de 4 cm e osteotomia proximal do perónio. O perónio é medialisado e fixado à tíbia proximal. É realizada imobilização cruropodálica durante cerca de dez a doze semanas até ser obtida a consolidação proximal. No segundo tempo é realizado um procedimento semelhante a nível da tíbia distal (Figura 4A). É mantida a imobilização até se constatar consolidação distal, após a qual se inicia carga parcial protegida com imobilização suropodálica durante cerca de 6 a 8 semanas. Modificações ao método devem ser realizadas caso a caso, em função do doente, do defeito ósseo, condições de partes moles ou presença de infeção5,6.

A fixação da reconstrução é obtida recorrendo a parafusos para fixação tíbio-peronial e imobilização gessada cruropodálica, que se encontram disponíveis em qualquer instituição onde se realize cirurgia ortopédica6.

Algumas das desvantagens desta técnica são tratar-se de um procedimento realizado em dois tempos e de, na eventualidade de não se obter consolidação, o doente ficar com uma perna flácida, por perda do efeito estabilizador do perónio intacto6.

Neste caso clínico é apresentada uma complicação da drepanocitose, uma patologia frequente na África subsariana. A apresentação tardia, comum neste contexto, tem como consequência um quadro mais exuberante que coloca um verdadeiro desafio ao ortopedista. A técnica utilizada permitiu obter um resultado muito satisfatório, com tratamento da infeção e restituição da função do membro.

Este procedimento revelou-se uma solução eficaz na abordagem de uma situação clínica complexa, sem necessidade de exames complementares de diagnóstico mais dispendiosos, ou técnicas de microcirurgia disponíveis apenas em centros mais diferenciados. Realça-se assim a sua utilidade no tratamento de grandes defeitos ósseos de uma forma generalizada, mas sobretudo num contexto de recursos limitados.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Huntington TW. Case of bone transference. Use of a Segment of Fíbula to Supply a Defect in the Tíbia. Ann Surg. 1905; 77 (B): 914-919        [ Links ]

2. Yadav SS. Dual-fibular Grafting for Massive Bone Gaps in the Lower Extremity. J Bone Joint Surg. 1990; 72 (A): 486-494        [ Links ]

3. Chacha PB, Ahmed M, Daruwalla JS. Vascular Pedicle Graft of the Ipsilateral Fíbula for Nonunion of the Tíbia with a Large Defect. J Bone Joint Surg Br. 1981; 63: 244-253        [ Links ]

4. Taylor GI, Miller GD, Ham FJ. The Free Vascularised Bone Graft: a Clinical Extension of Microvascular Techniques. Plast Reconstr Surg. 1975; 55: 533-544        [ Links ]

5. Kassab M, Samaha C, Saillant G. Ipsilateral Fibular Transposition in Tibial Nonunion using Huntington Procedure: a 12-year Follow-up Study. Injury. 2003; 34: 770-775        [ Links ]

6. Agiza AR. Treatment of Tibial Osteomyelitic Defects and Infected Pseudarthroses by the Huntington Fibular Transference Operation. J Bone Joint Surg. 1981; 63: 814-819        [ Links ]

 

Conflito de interesse:

Nada a declarar.

 

Endereço para correspondência

Francisco Santos
R. Francisco Conceição Silva, n 5, 1-C
1600-014 Lisboa
Portugal
f.floressantos@yahoo.com

 

Data de Submissão: 2013-09-08

Data de Revisão: 2014-03-03

Data de Aceitação: 2014-03-03

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