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Revista Portuguesa de Ortopedia e Traumatologia

versão impressa ISSN 1646-2122

Rev. Port. Ortop. Traum. vol.21 no.1 Lisboa mar. 2013

 

CASO CLÍNICO

 

Artrodese tibio-talo-calcâneana com cavilha

 

João CaetanoI; Pedro JordãoI; André BahuteI; Ugo FontouraI; Pedro MarquesI; Ana InêsI

I. Serviço de Ortopedia. Hospital Geral. Centro Hospitalar Universitário de Coimbra. Portugal. Coimbra. Portugal.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO

A artrodese tíbio-talo-calcaneana com cavilha tem vindo a tornar-se uma opção cada vez mais popular em situações clínicas complexas que envolvem o tornozelo e retropé. Embora a evidência descrita na literatura seja escassa e essencialmente retrospectiva, estão descritas boas taxas de consolidação e satisfação. Sendo um recurso ortopédico de última linha, esta cavilha consegue, com recurso a pequenas incisões, uma fixação muito estável comparativamente a outras alternativas (cravos, fixadores externos, placas, etc).

Este artigo visa descrever os pontos essenciais na realização da artrodese tíbio-talo-calcaneana com cavilha e apresentar os resultados obtidos nos 10 doentes operados no nosso serviço.

Palavras chave: Artrodese tibio-talo-calcaneana, encavilhamento retrógrado do tornozelo.

 

ABSTRACT

The use of intramedular nails in tibio-talo-calcaneal arthrodesis has become an option in complex cases envolving the ankle and hindfoot. Althought most articles describe good fusion rates and overall satisfaction there is still little evidence about this procedure in medical literature with most studies being retrospective.

The retrograde nailing is usually used as a salvage procedure and, with minimum incisions, is able to provide a very stable fixation compared to other alternatives (pins, external fixators, plates, etc).

This article describes the main points that must be kept in mind while doing a tibio-talo-calcaneal arthrodesis with a retrograde nail, and presents the follow up of 10 patients from our service.

Key words: Tibio-talo-calcaneal arthrodesis, retrograde ankle nailing.

 

INTRODUÇÃO

Com a disponibilidade de novos bio-materiais e com a transformação de uma cirurgia tecnicamente exigente, invasiva, necessitando imobilizações prolongadas num procedimento pouco invasivo, com boas taxas de consolidação e deambulação imediata, tem-se registado um aumento na popularidade da artrodese tibio-talo-calcaneana com cavilha. Esta, exibe uma superioridade biomecânica nas forças compressivas aplicadas assim como maior rigidez e estabilidade rotacional quando comparada com outros métodos de fixação[1-4].
As principais indicações aprovadas na literatura internacional[5] são:
-    Artroses desenvolvidas na tibiotalar e talocalcaneana (de etiologia degenerativa, pós-traumática ou inflamatória)
-    Traumatologia aguda severa
-    Necroses talares
-    Neuropatias periféricas
-    Consolidações viciosas
-    Não uniões com perdas ósseas importantes (após falência de artrodese ou artroplastias)
-    Estabilização após amputações de Chopart

As contraindicações absolutas específicas para a aplicação de cavilha incluem infecções ativas, alterações vasculares severas e deformidades da tíbia que impeçam a normal progressão da cavilha.
Como contra indicação relativa, a presença de uma articulação subtalar saudável e o seu sacrifício visando uma artrodese mecânica imediata e estável tem sido alvo de alguma controvérsia. Pés neurogénicos, talus que não permitam artrodese, patologia traumática severa do pilão tibial ou a incapacidade em realizar descarga provisória sobre o membro afectado são exemplos em que o sacrifício subtalar pode ser equacionado.

 

TÉCNICA CIRÚRGICA[6]

O paciente é colocado em decúbito dorsal ou lateral. A abordagem subtalar e tibiotársica é preferencialmente lateral mas é comum o uso de vias alternativas já que muitos doentes apresentam uma pele danificada por sequelas traumáticas ou cirúrgicas. Embora algumas casas comerciais evoquem a não necessidade de abordagem subtalar, a preparação das superfícies articulares, principalmente tibiotársica, é ainda recomendada.
Durante a preparação articular é necessário ter em conta o offset lateral do corpo do calcâneo relativamente à diáfise tibial dado que uma linha recta traçada ao longo do istmo diafisário da tíbia encontra, medialmente, o sustentáculo do calcâneo.
Assim, na aplicação de uma cavilha reta procede-se a uma medialização (com ou sem remoção do maléolo interno) do calcâneo e talus em relação à tíbia de modo a que, entrando distalmente pelo corpo do calcâneo, a progressão da cavilha não provoque um desvio em varo do retro-pé. Alguns autores defendem que esta opção pode provocar um stress nas estruturas vasculares laterais[7], muitas vezes retraídas por cicatrizações antigas. Este argumento, assim como o fato de facilmente se medializar o ponto de entrada distal, potenciando uma fragilização calcaneana, tem levado ao desenvolvimento de cavilhas “anatómicas” com uma curvatura distal de 7º a 10º.  Com um ponto de entrada lateral, asseguram boa progressão pelo corpo do calcâneo poupando tempo cirúrgico na preparação e correção do eixo anatómico[8].
O normal posicionamento do retropé em relação ao tornozelo é de 0º de dorsiflexão, 5º de valgo e  5ºa 10ºde rotação externa.
Após introdução da cavilha, faz-se a aplicação de parafusos no talus, tíbia e calcâneo. Estes, promovem a coaptação e compressão direta das três estruturas anatómicas formando-se um bloco rígido que promove a artrodese. A cavilha permite ainda, se necessário, dinamização da tíbia, ausência de compressão para aplicação de enxerto ósseo, introdução de parafusos no calcâneo para maior estabilidade e até progressão de parafusos pela tuberosidade calcaneana para artrodeses do médio e ante-pé.
Uma das questões mais polémicas refere-se ao comprimento da cavilha já que esta, não ultrapassando o istmo, pode provocar um ponto de concentração de stress com hipertrofia cortical e eventual fratura. Noonan e Pinzur demonstraram que em doentes osteopénicos e obesos a progressão da cavilha até 5 cm distal à superfície proximal da tíbia dissipa as forças e evita fraturas de stress.[9]

 

RESULTADOS

Os doentes são normalmente encorajados a deambularem, com ou sem imobilização gessada, em descarga parcial. As queixas clínicas e os parâmetros radiológicos irão ditar, individualmente, o programa de reabilitação.
As taxas de fusão óssea descritas na literatura variam entre 76% e 100%, ficando a maioria dos doentes satisfeitos quanto aos resultados finais. As complicações mais comuns incluem infeções, pseudartroses dolorosas, fratura de parafusos calcaneanos e consolidações viciosas com retropé em valgo ou varo. A taxa de complicações pode chegar, em alguns estudos, aos 55%, com 22% de re-intervenções (e 1,6% de amputações) [10, 11].

 

EXPERIÊNCIA DO SERVIÇO

Desde 2002 que foram seguidos, no serviço de Ortopedia do Hospital Geral do Centro Hospitalar Universitário de Coimbra (antigo centro Hospitalar de Coimbra), 10 pacientes submetidos a artrodese tibio-talo-calcâneana com cavilha, nomeadamente: 2 doentes com sequelas neurológicas (um dos quais com pseudartrose diafisária da tíbia), 1 doente com artrose primária tíbio-talo-calcaneana, 1 caso de necrose talar pós traumática, 1 caso de fratura aguda cominutiva do pilão tibial e 5 casos de consolidações viciosas/não uniões de fraturas distais da tíbia.
O follow up foi de 9 a 117 meses. Em 8 dos casos verificou-se uma progressão para consolidação. Como complicações registámos 1 infecção pós-operatória superficial (resolvida com antibioterapia sistémica), e 2 casos de atraso de consolidação associados a infecção profunda (resolvidas após desbridamento cirúrgico, antibioterapia sistémica e dinamização da cavilha). Registámos em todos os casos satisfação dos doentes, com um score AOFAS Ankle-Hindfoot médio de 70.
Seguem-se dois casos seguidos neste serviço.

 

CASO CLÍNICO 1

JFCP, 64 anos, Queda com fratura multiesquirolosa do pilão tibial direito – exposta grau 3B de Gustillo e Anderson - tendo-se realizado limpeza, desbridamento e osteotaxia com fixador externo.
Pós-operatoriamente houve deiscência de sutura e exposição óssea necessitando intervenção pela equipa de cirurgia plástica com retalho de cobertura sural. Desenvolvimento de pseudartrose dolorosa e incapacitante tendo sido submetido a artrodese tibio-talo-calcâneana com cavilha e aplicação de enxerto ósseo autólogo (Figura 1).

 

Figura 1

 

Nove meses após aplicação da cavilha o doente mantinha algumas queixas álgicas tendo desenvolvido infeção profunda e fistulização. Foi submetido a nova cirurgia  com desbridamento cirúrgico amplo e dinamização da cavilha.
Um ano após a última cirurgia, o paciente apresenta marcha autónoma sem necessidade de auxiliares de marcha, sem infecção visível e muito satisfeito quanto aos resultados finais. AOFAS Ankle-Hindfoot score 69.

 

CASO CLÍNICO 2

NDFC, 26 anos, Acidente de viação em Abril de 2007, com “Injury Severity Score”>16, do qual resultou fratura do fémur esquerdo com lesão vascular, fratura da extremidade distal dos ossos do antebraço esquerdo, fratura metafisária proximal da tíbia esquerda e fratura-luxação peri-talar esquerda associadas a lesão tipo neurotmese do ciático-poplíteo externo (CPE).
Realizada reparação vascular e osteossíntese. Um ano após procedimentos cirúrgicos, realizava marcha com canadianas e palmilha corretora mantendo dores intensas. Radiologicamente apresentava necrose asséptica do talus. Submetido a artrodese tibio-talo-calcâneana com cavilha (Figura 2).

 

Figura 2

 

Dois anos após a artrodese, o paciente apresenta marcha autónoma sem auxiliares de marcha, mantendo ainda algumas dores residuais mas totalmente satisfeito quanto aos resultados cirúrgicos., AOFAS Ankle-HIndfootscore 72.

 

CONCLUSÃO

A artrodese tibio-talo-calcâneana com cavilha é um procedimento reservado para situações particulares e, muitas vezes, de difícil resolução[12]. Embora a literatura refira taxas elevadas de re-intervenções cirúrgicas é necessário compreender quais seriam as alternativas (como a amputação) e ter em conta que estamos, muitas vezes, perante um membro multi-operado.
A evidência atual aponta para bons resultados e uma satisfação geral dos pacientes submetidos a esta técnica, mas os estudos são ainda escassos e na sua maioria descritivos e retrospectivos.
Na nossa série, a taxa de consolidação situou-se nos 80% com poucas complicações e uma satisfação geral dos pacientes.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Mückley T, Eichorn S, Hoffmeier K. Biomechanical evaluation of primary stiffness of tibiotalocalcaneal fusion with intramedullary nails. Foot Ankle Int. 2007; 28 (2): 224-231        [ Links ]

2. Mueckley TM, Eichhorn S, von Oldenburg G. Biomechanical evaluation of primary stiffness of tibiotalar arthrodesis with an intramedullary compression nail and four other fixation devices. Foot Ankle Int. 2006 Oct; 27 (10): 814-820

3. Mann MR, Parks BG, Pak SS, Miller SD. Tibiotalocalcaneal arthrodesis: A biomechanical analysis of the rotational stability of the Biomet Ankle Arthrodesis Nail. Foot Ankle Int. 2001; 22 (9): 731-733        [ Links ]

4. Chiodo CP, Acevedo JI, Sammarco VJ. Intramedullary rod fixation compared with blade-plate-and-screw fixation for tibiotalocalcaneal, A biomechanical investigation. J Bone Joint Surg Am. 2003; 85 (12): 2425-2428        [ Links ]

5. Thomas Ruth L., Sathe Vinayak, Habib Syed I.. The Use of Intramedullary Nails in Tibiotalocalcaneal Arthrodesis. JAAOS . 2012 Jan; 20: 26-35

6. McGarvey WC, Trevino SG, Baxter DE, Noble PC, Schon LC. Tibiotalocalcaneal arthrodesis: Anatomic and technical considerations. Foot Ankle Int. 1998; 19 (6): 363-369        [ Links ]

7. Fox IM, Shapero C, Kennedy A. Tibiotalocalcaneal arthrodesis with intramedullary interlocking nail fixation. Clin Podiatr Med Surg. 2000 Jan; 17 (1): 19-31

8. Hammett R, Hepple S, Forster B, Winson I. Tibiotalocalcaneal (hindfoot) arthrodesis by retrograde intramedullary nailing using a curved locking nail: The results of 52 procedures. Foot Ankle Int. 2005; 26 (10): 810-815        [ Links ]

9. Pinzur MS, Noonan T. Ankle arthrodesis with a retrograde femoral nail for Charcot ankle arthropathy. Foot Ankle Int. 2005; 26 (7): 545-549        [ Links ]

10. Jehan S, Shakeel M, Bing AJ, Hill SO. The success of tibiotalocalcaneal arthrodesis with intramedullary nailing--a systematic review of the literature. Acta Orthop Belg. 2011 Oct; 77 (5): 644-651

11. Veselý R, Procházka V, Visna P, Valentová J, Savolt J. [Tibiotalocalcaneal arthrodesis using a retrograde nail locked in the sagittal plane]. Acta Chir Orthop Traumatol Cech. 2008 Apr; 75 (2): 129-133

12. Kim C, Catanzariti AR, Mendicino RW. Tibiotalocalcaneal arthrodesis for salvage of severe ankle degeneration. Clin Podiatr Med Surg. 2009 Apr; 26 (2): 283-302

 

Conflito de interesse:

Nada a declarar.

 

Endereço para correspondência

João Pedro Delgado Caetano
Rua Francisco Lucas Pires lote 20, 4º A
3030-489 Coimbra
Portugal
jpdcaetano@gmail.com

 

Data de Submissão: 2012-11-18

Data de Revisão: 2013-01-23

Data de Aceitação: 2013-03-01

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