SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.20 issue4Acrometástase como manifestação primária de adenocarcinoma pulmonarRotura do quadricipite após artroplastia do joelho author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

Related links

  • Have no similar articlesSimilars in SciELO

Share


Revista Portuguesa de Ortopedia e Traumatologia

Print version ISSN 1646-2122

Rev. Port. Ortop. Traum. vol.20 no.4 Lisboa Dec. 2012

 

CASO CLÍNICO

 

Trocanterite tuberculosa

 

João OliveiraI; Fernando JudasI; António GarruçoI; Rui FerreiraI; Fernando FonsecaI

I. Serviço de Ortopedia e Traumatologia. Hospitais da Universidade de Coimbra. Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. Coimbra. Portugal.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO

A trocanterite de origem tuberculosa manifesta-se na sua fase inicial por uma discreta e inespecífica sintomatologia clínica, havendo necessidade de apoiar o diagnóstico, mesmo na fase tardia, na imagiologia e no exame microbiológico e anatomopatológico do caseum de abcessos peri-articulares.

Descreve-se o caso de um doente que se apresenta com uma tumoração dolorosa na face anterior do terço proximal da coxa esquerda, de evolução arrastada, sem relação com episódio traumático. O estudo imagiológico da tumoração não foi conclusivo, mostrando uma lesão osteolítica localizada ao grande trocânter e várias coleções líquidas multi-loculadas na espessura dos músculos da coxa, levantando a suspeita de se tratar de uma neoplasia maligna, de acordo com o resultado da PET. Feita a biópsia da lesão guiada por TC, foi revelada a presença de um processo inflamatório crónico granulomatoso inespecífico. Procedeu-se a drenagem e limpeza cirúrgica do abcesso peri-articular e a colheita de um tecido granulomatoso com uma substância caseosa-esbranquiçada para exame anátomo-patológico e bacteriológico. O estudo histológico mostrou um processo inflamatório crónico granulomatoso, com granulomas do tipo tuberculóide e a pesquisa do Mycobacterium tuberculosis complex foi positiva.

Foi instituída terapêutica quádrupla com Isoniazia, Etambutol, Pirazinamida e Rifampicina e, apesar de inicialmente haver diminuição da tumoração e dos sinais inflamatórios, após 2 meses de terapêutica médica re-inicia quadro álgico referido à anca esquerda e edema local, que condiciona nova cirurgia (limpeza cirúrgica, sequestrectomia e bursectomia), mantendo a  terapêutica tuberculostática e bactericida por mais 4 meses. Aos 2 anos de follow-up pós-operatório, o doente mantém-se assintomático clinica e radiologicamente.

Apesar de rara, a bursite trocantérica de origem tuberculosa deve ser levada em linha de conta na etiologia da síndroma dolorosa da região trocantérica de evolução arrastada e resistente ao tratamento conservador.

Palavras chave: Tuberculose óssea, grande trocanter, trocanterite.

 

ABSTRACT

Trochanteritis tuberculosis manifests itself in an early stage by nonspecific clinical symptoms, and because of this there is the need to support the diagnosis, even in a late phase, in imagiological, microbiological and anatomopathological examination of the peri-articular caseum.

The authors report a case of a patient with long term complaints of a painful tumoration located on the anterior surface of the proximal third of left hip, without traumatic history associated. The imagiologic study of the tumoration was inconclusive, showing an osteolytic lesion localized to the greater trochanter and several multi-loculated fluid collections on the thickness of the muscles, what make us suspect of a malignant tumor, according to the PET result. A CT-biopsy guided as been performed, revealing the presence of a nonspecific granulomatous chronic inflammatory process. It has been drain and debrided and a white caseous substance as been collected for pathological and bacteriological examination. The histologic study showed a chronic granulomatous inflammatory process with granulomas tuberculoid-type, and the research of the Mycobacterium tuberculosis complex was positive.

It has been instituted a quadruple therapy with Isoniazia, Ethambutol, Pyrazinamide and Rifampicin and, although initially there was a reduction of the tumoration and inflammatory signs, after 2 months of medical therapy he re-starts the symptoms of pain and local edema of the left hip, what lead us to a second surgery (debridement, bursectomy and sequestrectomy), maintaining the treatment with tuberculostatic and bactericide for a further 4 months. With 2 years of follow-up, the patient remains clinically and radiologically asymptomatic.

Although rare, we emphasize the importance of the inclusion of bone tuberculosis on the differential diagnosis of patients with a prolonged painful trochanteric syndrome resistant to conservative treatment.

Key words: Bone tuberculosis, greater Trochanter, trochanteritis.

 

INTRODUÇÃO

A tuberculose continua a ser uma das principais causa de morte em todo o Mundo devido a doença infeciosa, sendo que a sua prevalência continua a aumentar, particularmente em países subdesenvolvidos[1]. Em Países desenvolvidos, os factores predisponentes mais importantes são a infeção pelo vírus da imunodeficiência humana[2,3] e a idade. Outro importante fator são as forma de M. Tuberculosis resistentes à terapêutica[1, 4].

Em mais de 85% dos casos de Tuberculose, o sistema respiratório é afetado. A localização osteo-articular não é frequente[5]. Em 20.000 novos registo de tuberculose extra-pulmonar de 22 países observou-se que em 19% dos casos eram atingidos o osso ou a articulação[6], sendo multifocal em 72,2% [7]. Quando a sua disseminação é osteo-articular, o grande trocanter é afectado em apenas 1-2% dos casos[5,8,9].

O diagnóstico de uma trocanterite tuberculosa é difícil e desafiante, uma vez que os sinais clínicos são inespecíficos, o estudo radiológico inicialmente é pouco útil e são raros os casos que se apresentam com um volumoso abcesso peri-articular. Para obter o diagnóstico, frequentemente são necessárias técnicas mais invasivas assim como o recurso a estudo microbiológico e anátomo-patológico.

 

CASO CLÍNICO

Doente do sexo masculino, 85 anos de idade, com antecedentes patológicos de pleuresia há 65 anos, internado pelo Serviço de Urgência por quadro de queixas arrastada de dor e edema localizados à face anterior do terço proximal da coxa esquerda (Figura 1), sem história traumática associada. Analiticamente apresenta uma PCR de 2,27 mg/dL e VS de 35 mm/hora (sem outras alterações significativas). O estudo ecográfico revela um coleção heterogénea com parede moderadamente espessada e a radiologia convencional da bacia (Figura 2) levanta a suspeita de se tratar de uma lesão lítica localizada ao grande trocanter esquerdo. A TC (Figura 3) confirma a presença de uma lesão osteolítica associada a uma coleção líquida multi-loculada com calcificações e a biópsia guiada por TC revela no estudo anátomo-patológico a presença de um processo inflamatório crónico granulomatoso inespecífico. Na RNM (Figura 4) observam-se várias coleções abcedadas na espessura dos músculos da coxa e interrupção da cortical ao nível do grande trocanter e por Angiogragia (Figura 5) constata-se que a lesão osteolítica é vascularizada pela artéria ilíaca interna. Perante a ausência de diagnostico, realiza um cintigrama ao esqueleto e um PET (Figura 6), que levanta a suspeita de se tratar de uma massa neoplásica maligna com envolvimento ganglionar secundário.

 

 

 

 

 

 

Figura 6

 

Dada a evolução da tumoração ao nível da coxa esquerda, que se encontrava sob tensão, e a indefinição diagnostica, é submetido a drenagem, limpeza e biópsia cirúrgica aberta com colheita de um tecido granulomatoso com uma substância caseosa-esbranquiçada para estudo anátomo-patológico e bacteriológico.

O estudo anátomo-patológico revela a presença de um processo inflamatório crónico granulomatoso, com granulomas do tipo tuberculóide, alguns com necrose central, e a presença de células gigantes do tipo Langerhans. A pesquisa de micobactérias no pus do abcesso é positiva para Mycobacterium tuberculosis complex (por Quantiferon®-Tb Test). Encaminhado para o Serviço de Luta Anti-Tuberculosa, inicia terapêutica quádrupla (Isoniazia, Etambutol, Pirazinamida e Rifampicina). Inicialmente apesenta diminuição da tumoração e dos sinais inflamatórios, porém e após 2 meses de terapêutica tuberculostática e bactericida, re-inicia quadro álgico referido à anca esquerda e edema local, que condiciona nova cirurgia (limpeza cirúrgica, sequestrectomia e bursectomia).

Após 6 meses de terapêutica tuberculostática e bactericida e com 2 anos de follow-up pós-operatório, o doente mantém-se assintomático clínica e radiologicamente.

 

DISCUSSÃO

A tuberculose extrapulmonar pode originar-se por: 1) disseminação canalar, associada a tuberculose pulmonar ativa, particularmente de longa evolução e sem tratamento; 2) disseminação linfática e/ou hemática por ocasião da primoinfecção, usualmente não associada a tuberculose pulmonar activa e 3) extensão da lesão para estruturas adjacentes (contiguidade).

A tuberculose osteoarticular resulta da disseminação do bacilo de Koch de um foco ativo ou não de uma qualquer parte do organismo[10]. A tuberculose óssea normalmente atinge a porção anterior dos corpos vertebrais e a metáfise dos ossos longos. Teale[11] foi o primeiro a descrever a trocanterite tuberculosa em 1870. 

É atual a discussão sobre se a anormalidade inicial é a osteíte trocantérica ou a infeção de uma das bursas. Alvik[12] e mais tarde Ahern[13], defendem que a disseminação seria da bursa para o osso. Segundo Lampe[14] a lesão começa ao nível do grande trocanter devido à presença de foci enquistados. Já Lindahl, Ahlberg e McNeur[14, 9,15] acreditam que a lesão primária pode ser tanto na bursa como no osso.

A trocanterite tuberculosa é uma entidade relativamente rara, estando descrita em apenas 1-2% dos casos de tuberculose óssea[5,8,9], apresentando uma marcada tendência à recorrência[15].

A lesão óssea típica causa destruição, rarefacção e sequestro. A calcificação de tecidos moles revela a actividade da doença nos tecidos circundantes. Um padrão lítico com destruição do trocanter ocorre se não tratada.

O tratamento deve ser iniciado o mais rapidamente possível com o objetivo de “salving the hip”[17]. Sendo a trocanterite tuberculosa extra-articular, especial cuidado deve ser tido no sentido de evitar iatrogenia intra-operatória e a sua disseminação articular por má abordagem cirúrgica.

A apresentação clínica da tuberculose do grande trocanter é frequentemente vaga e um abcesso frio surgindo na região trocantérica pode estar tanto presente medial ou mais comummente lateralmente[8, 18]. Ainda assim, a principal dificuldade no diagnóstico de uma infeção tuberculosa da bursa trocantérica continua a ser a sua falta de inclusão na lista dos diagnósticos diferenciais. Após a suspeição diagnóstica, o estudo por TC ou RNM, onde frequentemente se verifica uma lesão lítica com comunicação justacortical abcedada são fortes fatores preditores de tuberculose óssea. Nestes casos, a biopsia associada a estudo microbiológico e anátomo-patológico permitem a confirmação do diagnóstico[5].

Um diagnóstico precoce é extremamente importante pois 90-95% dos pacientes chega a atingir uma função proxima do normal quando este é efectuado[19, 20].

Após o diagnóstico, o tratamento mais indicado assenta na remoção cirúrgica do tecido infetado (bursa e ósseo)[19, 20]. Paralelamente um esquema de quimioterapia durante 4-18 meses deve ser associado[19, 20], sendo que a sua data de inicio e duração são tema de controversia.

O objetivo deste caso clínico é o de chamar a atenção para esta entidade clínica pouco comum e para a sua suspeição diagnostica. Salienta-se assim a importância da inclusão da tuberculose óssea no diagnóstico diferencial de pacientes com bursite trocantérica resistente ao tratamento conservador, assim como aqueles com sintomatologia osteoarticular de longa duração.

Apesar de rara, a tuberculose óssea é uma realidade, devendo todos nós estarmos alerta para esta doença uma vez que o resultado final em muito se relaciona com o seu diagnóstico precoce.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Ramanath V. S., Damron T.A., Ambrose J.L., Rose F.B.. Tuberculosis of the hip as the presenting sign of HIV and simulating pigmented villonodular synovitis. Skeletal Radiol. 2002; 31: 426-429        [ Links ]

2. Yamamoto T., Iwasaki Y., Kurosaka M.. Tuberculosis of the greater trochanteric bursa occurring 51 years after tuberculous nephritis. Clin Rheumatolo. 2002; 21: 397-400        [ Links ]

3. Watts H.G., Lifeso R.M.. Current concepts review: tuberculosis of bone and joints. J Bone Joint Surg Am. 1996; 78: 288-298        [ Links ]

4. Ryuh-Sup K., Joung-Yoon L., Sae-Rom J., Kang-Yun L.. Tuberculous subdeltoid bursitis with rice bodies. Yonsei Med J. 2002; 4: 539-542        [ Links ]

5. Mouhsine E., Pelet S., Wettstein M., Blanc C.-H., Garofalo R., Theumann N., et al. Tuberculosis of the Greater Trochanter. Med Princ Pract. 2006; 15: 382-386

6. Bulla A.. Tuberculosis: A Pulmonary disease only?. Bull Int Union Tuberc. 1979; 54: 291-293        [ Links ]

7. Wassersug J.D.. Tuberculosis of the Greater Trochanter and Trochanteric Bursae. The Jounal of Bone and Joint Surg. 1940; 22: 1075-1079        [ Links ]

8. Groulier P., Curvale G., Franceschi J.P., Bataille J.F.. Tuberculosis of the Greater Trochanter. Apropos of 2 cases. Rev Chir Orthop Reparatrice Appar Mot. 1995; 81 (4): 344-348        [ Links ]

9. Ahlberg A.. Tuberculosis of the Greater Trochanter and Trochanteric Bursae. Acta Chirurgica Scandinavica. 1948; 97: 201        [ Links ]

10. Dominguez E.V., Velasco F.G., Velasco J.L.A.. Bursitis trocantérea tuberculosa. Rev Clin Esp. 1982; 164: 67-70        [ Links ]

11. Teale TP. On the Simulation of the Hip Disease by Suppuration of the Bursa over the Trochanter Major. Lacet. 1870; 2: 506-507        [ Links ]

12. Alvik I.. Tuberculosis of the Greater Trochanter. Acta Orthopaedics Scandinavica. 1949; 19: 247-262        [ Links ]

13. Ahern RT. Tuberculosis of the Femoral Neck and Greater Trochanter. The Journal of Bone and Joint Surg. 1958; 40B (3): 406-419        [ Links ]

14. Lampe CE. Tuberculous Osteomyelitis of the Greater Trochanter. Acta Orthopaedica Scandinavica. 1953; 22: 307-325        [ Links ]

15. McNeur JC, Pritchard AE. Tuberculosis of the Greater Trochanter. The Journal of Bone and Joint Surg. 1955; 37B (2): 246-251        [ Links ]

16. Lindahl O. Tuberculous Trochanteritis. Acta Tuberculosea Scandinavica. 1952; 26: 289-300        [ Links ]

17. Babhulkar S., Pandel S.. Tuberculosis of the Hip. Clin Orthop Relat Res. 2002; 398: 93-99        [ Links ]

18. Lynch AF. Tuberculosis of the Greater Trochanter – A report of eight cases. The Jounal of Bone and Joint Surg. 1982; 64-B (2): 195-188        [ Links ]

19. Shembekar A., Babhulkar S.. Chemotherapy for osteoarticular tuberculosis. Clin Orthop. 2002; 398: 20-26        [ Links ]

20. Tuli S.M.. General principles of osteoarticular tuberculosis. Clin Orthop. 2002; 398: 11-19        [ Links ]

 

Conflito de interesse:

Nada a declarar.

 

Endereço para correspondência

João Pedro Oliveira
Serviço de Ortopedia e Traumatologia
Hospitais da Universidade de Coimbra
Praceta Mota Pinto
3000-075 Coimbra
Portugal
dr.jpoliveira@gmail.com

 

Data de Submissão: 2012-07-02

Data de Revisão: 2012-09-28

Data de Aceitação: 2012-10-31

Creative Commons License All the contents of this journal, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution License