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Revista Portuguesa de Ortopedia e Traumatologia

Print version ISSN 1646-2122

Rev. Port. Ortop. Traum. vol.20 no.2 Lisboa June 2012

 

ARTIGO DE REVISÃO

 

O que o ortopedista deve saber sobre balística terminal

 

Carlos DurãoI, II; Rui PintoIII

I. Serviço de Ortopedia do Hospital de São João. Porto. Portugal.
II. Hospital Central do Corpo de Bombeiros Militar do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Brasil.
III. Exército Português. Portugal.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO

Ferimentos por projéteis de arma de fogo começam a ser frequentes em nosso meio. O elevado custo destas lesões desde a sua abordagem inicial até o tratamento das suas sequelas tem justificado a publicação de diversos artigos mundialmente. O constante recurso a sofi sticadas armas de fogo pelas forças policiais e pela criminalidade nas principais metrópoles da America Latina como o Rio de Janeiro, geram estatísticas só comparadas a zonas de guerra. Este artigo busca fazer uma revisão dos conceitos balísticos essenciais para o cirurgião ortopedista militar e do trauma e de condutas a serem adotadas frente a estes traumatismos esclarecendo alguns mitos.

Palavras chave: feridas por armas de fogo, balística terminal, medicina legal, fraturas por projéteis de alta energia.

 

ABSTRACT

Gunshot wounds occur more frequently in our society. The high cost of these injuries, since the initial approach until the treatment of their after-effects, has justifi ed the world wide publishing of various articles. The constant use to sophisticated fire arms by the police forces and the criminal groups in the major cities of Latin America, like Rio de Janeiro, has created statistics which can only be compared to war zones. The purpose of this article is to review the essential ballistic concepts for the military orthopedic surgeon plus the trauma and the guidelines to be address these traumatisms, in order to demystify the myths related to ammunition.

Key words: Gunshot wounds, ballistic trauma, forensic pathology, military medicine.

 

INTRODUÇÃO

As lesões dos membros por projéteis de arma de fogo (PAF) estão entre as mais frequentes de todas as lesões ocorridas em confl itos militares, representando cerca de 70%. Destas é a principal lesão que afeta os membros inferiores[1]. Muitas delas são ocasionadas por fragmentos e estilhaços de projéteis, que sofrem ricochetes em superfícies rígidas como o solo, por exemplo. As feridas variam de gravidade consoante a energia transferida pelo projétil. Projéteis que atingem a vítima no final da sua trajetória balística e portanto com baixa energia cinética, normalmente geram apenas escoriações, lesões contusas e perfuro-contusas de pouca gravidade. Diferente é o caso dos projéteis que atingem a vítima com média ou grande energia cinética, em que mais da metade das lesões estão associadas a fraturas e uma complexa reconstrução pode ser necessária[2].

Embora alguns ferimentos possam ser fatais, particularmente as fraturas femorais com lesões vasculares associadas, a maioria das lesões nos membros não são fatais e o tratamento pode ser retardado. No entanto todos estes ferimentos podem estar associados à elevada morbidade, devendo ser iniciado o tratamento adequado o mais breve possível. Isso não se aplica apenas aos ferimentos militares, mas a todos os ferimentos por PAF[2]. É importante perceber que uma avaliação mais precisa só pode ser alcançada durante a abordagem cirúrgica o que não se consegue apenas com uma observação superficial do aspeto da ferida na sala de trauma.

 

ASPETOS BALÍSTICOS DOS PROJÉTEIS DE ALTA ENERGIA

O domínio da balística terminal é fundamental para explicar os efeitos destas lesões nos tecidos humanos. Razão pela qual abordaremos alguns conceitos fundamentais. O potencial lesivo dos projéteis depende basicamente da sua energia cinética expressa pela fórmula: E=mv2/2 . Para que estes causem danos é necessário que realizem um trabalho mecânico de deformação dos tecidos, transferindo assim a sua energia cinética. Apenas pequena parte desta energia é transformada em calor e por isso este aumento da temperatura do projétil não é capaz de gerar qualquer tipo de lesão térmica, nem suficiente para o tornar estéril[3,4].

A capacidade de penetração de um projétil é medida pela fórmula do Coeficiente Balístico : CB= m/ Id2, em que m é a massa do projetil, I o fator de forma e d o calibre[4, 5]. O fator de forma é uma  constante que mede o quão pontiagudo é o projetil sendo menor nos mais afilados. Pela equação notamos a importância do calibre, se o dobrarmos estaremos reduzindo o seu poder de penetração à quarta parte do que possuia antes (22 = 4). Por outro lado, quanto maior a massa, maior a sua inercia e a sua capacidade de atravessar o alvo. Portanto o projétil mais penetrante é aquele que for mais fino, estreito e pesado[4] (como os dos fuzis) ao contrário de projéteis esféricos e de borracha como os utilizados nas munições não letais.

O calibre é apenas uma das variáveis do potencial do ferimento, uma vez que indica o diâmetro do projétil medido em centésimos de polegada ou em milímetros, mas não o seu comprimento e, portanto não revela sua massa (Figura 1).

 

 

A força que oferece resistência ao deslocamento do projétil é representada pelo Arrasto. O seu valor é diretamente proporcional à densidade do meio atravessado, ao valor do fator forma e ao quadrado tanto da velocidade quanto do calibre do projétil. Desvios do eixo do projétil em relação à sua direção de vôo aumentam o arrasto por oferecerem maior superfície de contato com o meio. O retardo que o projétil sofre ao atravessar um meio é diretamente proporcional ao arrasto e inversamente proporcional à sua massa. Quanto maior o retardo , maior a energia  transferida[4]. Logo, um projétil que não transfixe a vítima terá transferido para ela toda a sua energia, conferindo um maior "stopping power".

A estabilidade do projétil é alcançada quando o seu centro de massa e o seu centro de pressão estão alinhados com a trajetória. Quando o centro de massa esta localizado na ponta do projétil e o de pressão na sua base, este tende a ser muito estável como nas setas. No caso dos projéteis de fuzil o centro de pressão fica mais próximo da ponta que do centro de massa. Os mais curtos tendem a tombar mais superficialmente ao longo do trajeto, dentro da vítima[4]. Isso explica porque algumas feridas de entrada de  projéteis de alta energia são tão grandes em comparação com outros projeteis de baixa energia.

Os projéteis disparados por armas de guerra, e aqui de uma forma muitosuperficial incluiremos os fuzis (espingardas metralhadoras como a G3 7,62 mm ou a Galil 5,56 mm utilizadas pelo Exército) são revestidos por uma jaqueta de metal duro, de modo a não se deformarem facilmente, provocando lesões mais transfi xantes. O uso de projéteis de alta energia deformáveis foi utilizado pelos ingleses em 1890. A deformação destes ao atingirem a vítima propiciava maior transferência da energia gerando que combinavam a deformação do projétil com a sua alta velocidade foram tão eficazes, que foram proibidas para o uso militar por Convenções em 1899, podendo ainda ser utilizadas na caça[6]. Então qual a razão para que munições de caça de alta energia  sejam mais letais que as militares? Isto justifica-se pelo fato de que projéteis militares são desenhados para ferir e não necessariamente para matar. Um soldado morto retira apenas um soldado do combate, um soldado ferido necessita de ajuda e mobiliza mais soldados. As munições militares acabam por ser mais leves, facilitando assim o seu transporte individual, aumentando a cadência real de tiro, armas menores facilitam o manuseio em espaços pequenos como no interior de veículos e troca de tiros em espaços fechados. Numericamente a velocidade dos projéteis deve ser considerada baixa quando inferior a 300m/s, média entre 300m/s e 600m/s e alta acima de 600m/s[4].

A forma pontiaguda destes projéteis faz com que o orifício de entrada seja menor que o do projétil na maioria dos casos, com microlacerações[7, 4]. Mas há fatores que podem tornar este orifício muito maior como a velocidade, a distância e a região anatómica envolvida. Di maio afirma que qualquer coisa que altere a estabilidade do projétil na sua entrada tende a ampliar muito a ferida[7]. Nos tiros dados em estruturas ósseas, há uma transferência muito rápida da energia, que vem a distender a pele do orifício de entrada, promovendo uma ferida com aspeto“explosivo”[7, 4, 8, 9]. Feridas por projéteis de fuzil na cabeça podem ser tão grandes que impossibilitam a distinção entre entrada e saída[7, 4] (Figuras 2 e 3).

 

 

 

 

OS FENÓMENOS DE CAVITAÇÃO

O trajeto dos projéteis de alta energia difere dos demais devido à maior potência das ondas de pressão que produzem. Os projeteis rompem os tecidos deixando um túnel (cavidade permanente) cujas paredes são deslocadas por estas ondas em direção radial e sentido centrífugo. A cavidade temporária é o resultado do alargamento da cavidade permanente sob a influência das ondas de pressão pulsáteis. Quanto mais rápido o fluxo de energia cinética, maior o impulso dado aos tecidos vizinhos, à cavidade permanente e maior será a cavidade temporária[4, 6, 7]. Esse aspeto do ferimento é análogo à onda originada durante um mergulho na água. Se o mergulhador entra na água muito reto e com a cabeça para frente ( igual à configuração de ponta para a frente de um projétil com inclinação de 0º), a onda deve ser mínima. A onda é maior quando a pessoa mergulha de barriga (semelhante a um projétil com inclinação de 90º). No tecido, esta onda, a cavidade temporária, provoca um traumatismo fechado.

Projéteis deformáveis, que transferem rapidamente a sua energia para os tecidos, são capazes de produzir grandes cavidades temporárias. A cavidade temporária, entretanto só deixa lesões visíveis macroscopicamente quando a velocidade do projétil é superior a 304m/s[4]. O efeito mais visível é a infiltração hemorrágica causada pela rutura dos capilares pela ação contundente da onda de pressão. Tem sido alvo de discussão as lesões vasculo-nervosas causadas à distância, como as neuropraxias[8, 10]. Ou os espasmos vasculares. Grande parte da lesão permanente nas feridas das extremidades resulta no fato de as estruturas serem atingidas pelo projétil íntegro, por seus fragmentos ou por projéteis secundários. Como em todo traumatismo fechado, surgem forças de avulsão, e as estruturas laceram os pontos onde um lado está fixo e o outro se movimenta livremente. Hiperestesias, palidez ou pulso fraco jamais devem ser atribuídos a espasmo arterial sem antes se excluir a presença de trombo arterial (Figuras 4 e 5).

 

 

 

 

FERIDAS DE SAÍDA

Se os projéteis mantivessem a sua estabilidade ao longo do trajeto, produziriam saídas pouco menores que a entrada, mas não é isso o que se sucede, uma vez que ao longo do trajeto os projéteis sofrem desvios e até deformações e costumam sair de lado ou de base, ampliando muito mais a saída[8,9]. São várias as causas que contribuem para o aumento da ferida de saída. A mais importante é o comprimento do trajeto[11]. Nos primeiros centimetros ainda não existe uma cavidade temporária bem formada, atingindo o máximo aos trinta centímetros e diminuíndo logo após. Se, no entanto, o segmento a ser atingido for pequeno como um braço e o projétil não tocar no osso, não existe tempo suficiente para que o projétil tombe e produza uma cavidade temporária significativa[4, 12]. O mesmo já não ocorre se o segmento atingido for maior,como a coxa, podendo a cavitação temporária máxima coincidir com a saída do projétil, produzindo feridas muito grandes, com aspeto em couve flor. Se  neste trajeto for atingido algum plano ósseo, dá se tranferência precoce de energia e a saída será maior[12, 13, 14, 15].

Notem que numa troca de tiros, se o projétil transfixar a vítima e não atingir nenhum órgão vital, parte da sua energia não será transferida, Isto permite que a vítima mesmo atingida possa continuar em combate. Este mesmo projétil pode atingir outra pessoa com energia sufi ciente para a matar consoante a região anatómica atingida, o que motiva grande discussão sobre a utilização destas munições pelas forças policiais brasileiras[12]. Por esta razão foram desenvolvidos projéteis como hollow point para uso policial, uma vez que por serem mais deformáveis são menos transfixantes,13,14 o que reduz o número de vítimas colaterais e aumenta o efeito stopping power, além de produzir menor ricochete quando falham o alvo.

A fragmentação do projétil durante a fratura óssea pode dar origem à projéteis secundários e vários orifícios de saída (Figuras 6 a 9).

 

 

 

 

 

 

DIFERENÇAS ENTRE LESÕES MILITARES E CIVIS

Como acontece com todas as fraturas cominutivas associadas a lesão extensa de partes moles, a morbilidade está relacionada com a sua contaminação[16,17]. As feridas militares são das mais contaminadas[18],de acordo com os resultados de diversos estudos realizados com feridos da Segunda Guerra Mundial e das guerras da Coréia e do Vietnam[19] onde foram isolados três ou quatro especies diferentes de bactérias, e até seis tipos em alguns trabalhos, contra apenas um tipo de bactéria isolado nas feridas no meio civil causadas por PAF[18, 19]. As espécies aeróbicas parecem ser muito similares, mas as anaeróbicas foram mais frequentes nas feridas militares, que nas do meio civil. São exceções as do meio rural ou que ocorrem em ambientes extremamente contaminados, onde o grau de contaminação das feridas parece ser equivalente[20].

Entre os fatores que mais contribuem para a gravidade das feridas militares, salienta-se o atraso e as condições da evacuação médica. Durante a Guerra do Golfo , em 1991, o tempo médio decorrido entre o acidente e o atendimento médico, foi de 10 horas. A ferida já pode ser considerada contaminada em seis horas, e infetada após este tempo, quando já ocorreu multiplicação bacteriana e disseminação pelo sistema linfático[20].

As feridas militares estão mais associadas a ferimentos penetrantes do abdomen com evisceração, mas a utilização de armamento de guerra entre a população civil no Rio de Janeiro (inclusive granadas) parece igualar estes dados, uma vez que ao transfixar a cavidade abdominal pode ocorrer contaminação com gram negativos do intestino. Há relatos de que narcotraficantes cariocas contaminam os projéteis com material fecal com o objetivo de aumentar as complicações[12]. O princípio do tratamento em ambos os meios é o mesmo, embora a experiência aponte para um desbridamento mais radical em feridas militares. Mas este deve ser feito com cautela e da forma mais anatómica possível[20, 21, 22] (Figura 10)

 

 

 

LESÕES POR TIROS DE CAÇADEIRA

Estas são as lesões mais frequentes no nosso meio. As lesões geradas por armas que utilizam cartuchos de projéteis múltiplos diferem das causadas por projéteis únicos. Cada projétil produz a sua própria ferida de entrada e tem o seu trajeto. Por outro lado, a concentração das feridas é inversamente proporcional à distância do disparo[4, 23].

Embora sejam consideradas lesões de baixa velocidade em tiros de curta distância os seus efeitos são devastadores. Nos tiros inferiores a 7 metros costuma haver lesão acessória causada pela bucha, e em lesões a curta distância esta bucha pode penetrar no corpo da vítima[23] (Figuras 11 e 12)

 

 

 

 

TRATAMENTO

O tratamento das feridas por PAF, deve seguir os mesmos princípios gerais aplicáveis a outros tiposde traumatismos. O objetivo prioritário consiste na identificação das lesões potencialmente fatais. A menos que existam hemorragias óbvias, a avaliação dos membros só deve ser feita após garantir a estabilização do doente[24,25,26]:

Lavagem exaustiva da ferida e desbridamento cirúrgico,

Estabilização do membro, Antibioticoterapia adequada e profilaxia do tétano.

De todos estes, a cirurgia é o fator mais importante. A antibioticoterapia é importante, mas é secundária à cirurgia e não deve ser usada em alternativa a esta.

 

TRATAMENTO CIRÚRGICO E TÉCNICA OPERATÓRIA

O objetivo é reduzir o risco de infeção. Todas as fraturas têm indicação formal para serem exploradas cirurgicamentes e tratadas como fraturas expostas. Embora alguns Serviços tenham apresentado bons resultados com o tratamento conservador, estes casos são atribuíveis a projeteis de baixa energia e com rápido atendimento médico, diferente do já exposto[27].

Quando existirem múltiplos e pequenos estilhaços nem todos precisam de ser removidos. Numa ferida pequena, se não houver a suspeita de fratura ou lesão articular, e se o projetil estiver superficial e for de baixa energia, o tratamento conservador é admissívell, mas com o acompanhamento ambulatorial cuidadoso. Embora raro estão descritos casos de migração de projéteis e de saturnismo pela absorção do chumbo[28,29].

O desbridamento cirúrgico tem como objetivo remover corpos estranhos e tecidos desvitalizados[24]. O desbridamento começa pela margem da ferida. Lesões do tipo desenluvamento podem necessitar de maior desbridamento, com remoção de parte do tecido subcutâneo. Entretanto a cirurgia deve ser o mais anatómica possível. Podem ser necessárias fasciotomias. Nos casos de lesões por alta energia a remoção de tecido muscular necrótico é fundamental. A falta de circulação capilar, alteração na contratilidade, na cor e na consistência são sinais de compromisso muscular, e o cirúrgião deve ser cauteloso para realizar o mínimo desbridamento necessário. É um processo que pode aumentar a hemorragia e portanto o anestesista deve estar atentono sentido de assegurar a estabilidade hemodinâmica do doente[21,22].

Os Nervos e vasos não comprometidos devem ser preservados, assim como os tendões inseridos nos músculos. Podem ser dados pontos de referência para intervenções futuras. Maiores difi culdades ocorrem no desbridamento ósseo, principalmente com pequenas esquírolas. Estes fragmentos, sem conexões com tecidos viáveis, devem ser removidos para evitar zonas de sequestro ósseo. A fratura deve ser lavada abundantemente, sendo recomendável utilizar nove litros de soro para fraturas expostas[20].

 

AMPUTAÇÃO

A Amputação primária pode ser necessária como parte inicial do desbridamento. Esta decisão parece unânime quando o membro esta preso apenas pela pele ou se se encontra muito lacerado. Mas a viabilidade do membro pode ser mais difícil de avaliar em lesões menos graves. Alguns critérios podem ajudar na indicação primária da amputação:

Extensa perda óssea.

Lesão extensa com perda de pele e tegumentos, incluindo lesão vascular.

Lesão neurológica, principalmente envolvendo as mãos ou os pés.

Em caso de dúvida pode ser necessária um reavaliação após 48 horas para tomar a a decisão da amputação. Preservar um membro sem função, sem inervação e ,às vezes, com infeção crónica, pode ser mais prejudicial para o doente que uma amputação e reabilitação precoce.

 

O ENCERRAMENTO DA FERIDA

O encerramento secundário é a regra. A ferida é deixada aberta para permitir a drenagem, diminuir o edema e prevenir o aumento das pressões tissulares, impedindo aprgressão de infeções. Entretanto algumas feridas pela sua extensão ou localização, como as da face e genitália, podem ser encerradas primariamente, mas são casos de exceção. Feridas de alta energia com perda de partes moles e grande cominuição óssea, nunca devem ser encerradas primariamente e geralmente necessitam de reconstrução pela cirurgia plástica, cerca de sete ou catorze dias após o desbridamento, dependendo dos recursos disponíveis e do tipo de ferida.

As lesões de baixa energia provocam feridas pequenas e necessitam de pouco desbridamento. Geralmente cicatrizam por segunda intenção, mas nunca devem ser encerradas primariamente.

As articulações expostas devem ser cobertas durante a intervenção cirúrgica primária, para prevenir artrites sépticas[30]. Se o desbridamento for efi ciente a aplicação de antisépticos diretamente no osso é desnecessária já são potencialmente tóxicos para as células ósseas. Deve se ter cuidado ao realizar o penso e a imobilização, de maneira a evitar síndromes compartimentais.

 

CLASSIFICAÇÃO DAS FRATURAS

Algumas classificações têm sido propostas para fraturas por PAF, mas a sua variabilidade é tanta que nenhuma classificação é unânime. Talvez a mais consensual seja a desenvolvida pelo Comité Internacional da Cruz Vermelha[22] (IRC), que correlaciona a ferida com a sua gravidade, tendo em conta o tamanho do orifício de entrada, de saída, das cavitações, das fraturas e de estruturas vitais, mas o seu uso é demasiado complexo. Na prática, as fraturas podem ser divididas em incompletas e completas.

As fraturas completas podem dividir-se, em simples e cominutivas. As incompletas em:

Tipo "Drill-hole": Quando um túnel é criado através do osso como os produzidos pelas brocas.

Tipo "Divot" ou " chip type": Quando parte da cortical é removida, mas o canal permanece, à semelhança dos torrões utilizados como suporte das bolas de golfe após a tacada (Divot).

Os projéteis de alta energia causam fraturas completas, geralmente cominutivas, e os de baixa energia, fraturas incompletas, ou quando completas,de pouca complexidade.

 

ESTABILIZAÇÃO DAS FRATURAS

A estabilização das fraturas permite o alívio da dor, diminui os danos nos tecidos moles e ósseos permitindo a sua consolidação. A utilização de imobilzações, como a desenvolvida por Owen Thomas durante a Primeira Guerra Mundial, reduziu drasticamente a mortalidade das fraturas do femur[21]. Hoje, várias são as opções cirúrgicas deixando no passado a imagem de uma enfermaria repleta de soldados em tração esqueletica à espera da consolidação demorada de uma fratura femoral.

Fixação interna Placas

As placas e parafusos permitem a redução anatómica e uma fixação rígida. No entanto são mais vulneráveis às infeções. Técnicas minimamente invasivas diminuem a exposição e o risco de complicações. Devem sempre ser avaliadas as condições da pele e na dúvida aguardar a "janela de oportunidade". A osteossíntese é a opção de tratamento na reconstrução articular em fraturas de baixa energia e no meio civil.

Fixação intramedular

A fixação intramedular com cavilha é considerada o método de escolha para estabilização de fraturas expostas diafisárias da tíbia e do fémur, no meio civil[31]. As vantagens desta fixação são os elevados índices de cicatrização da ferida e de consolidação da fratura, sem a necessidade de imobilização gessada, o que facilita a troca dos pensos.

Durante a Guerra do Vietnam trabalhos revelaram uma taxa de 50% de maus resultados com cavilhas utilizadas em fraturas associadas a lesões vasculares, por complicações do material ou por infeções. Isto pode ser atribuído a dificuldades técnicas locais e à gravidade das lesões de alta energia no meio militar. Atualmente a cavilha intramedular tem sido a opção mais usada nas fraturas diafi sárias nos Estados Unidos, onde normalmente as fraturas são minimamentecontaminadas e tratadas em menos de seis horas.

Fixação externa

O Fixador Externo (Figura 13) é a opção de estabilização das fraturas por projéteis de arma de fogo mais utilizada em feridas militares, durante a abordagem cirúrgica inicial[32]. Tem por indicações:

 

 

- Grande perda óssea

- Extensa lesão de partes moles

- Lesões vasculares associadas

- Fraturas associadas com queimaduras

- Politraumatizados (Damage Control)

 

TRATAMENTO CONSERVADOR

Embora o tratamento cirúrgico seja geralmente o recomendado, em determinadas circunstâncias como nos casos das feridas de projeteis de baixa energia ou de fraturas incompletas, com preservação de partes moles e baixo risco de infeção , o tratamento conservador poderá ser uma boa opção.

 

IMPLICAÇÕES MÉDICO LEGAIS

Os ferimentos causados por tiros têm implicações médico legais importantes. A simples interpretação de uma ferida pode denunciar um homicídio ou esclarecer um acidente. O encontro de elementos figurados relacionados com a combustão da pólvora, o chamado GSR (gunshot residues), junto à ferida são evidências de que a vítima esteve ao alcance desta núvem de resíduos, denunciando um disparo próximo à vítima e caracterizando uma ferida de entrada.

Durante o disparo são expulsos gases incandescentes e restos de pólvora combusta e não combusta. Quanto mais próxima a vítima estiver da saída destes elementos do cano da arma, mais concentrados estes estarão, e quanto mais afastada, mais dispersos. O termo "à queima roupa" é usado quando a distância do disparo é tão próxima que é possível encontrar uma zona de chamuscamento, de queimadura na ferida de entrada, muito dependente da munição e da arma utilizada. Repare que este termo não tem relação com a capacidade da vítima reagir, como erroneamente observamos na comunicação social e refere-se apenas a uma estimativa da posição e da distância. A pólvora combusta reduz a sua massa e traduz-se como uma poeira, uma fuligem ao redor da ferida, caracterizando uma zona de esfumaçamento, conhecida como negro de fumo. Já a pólvora não combusta, com maior massa, é projetada mais para a diante e, face a esta projeção associada à sua temperatura dá origem a chamada zona de tatuagem,isto porque estes vestígios ficam incrustados na pele sendo algumas vezes de difícil remoção.

Estas zonas descritas, além de caracterizarem uma ferida de entrada, vão ajudar a estimar a distância do disparo. Mas se houver roupa entre a ferida e o disparo, estes elementos serão mais evidentes na roupa. Daí a importância forense de preserva-la.

O projétil exerce uma ação perfuro-contundente, sendo alguns mais perfurantes que outros, consoante a sua forma. Ao vencer a elasticidade da pele o projétil acaba por romper os tecidos e capilares ao redor da ferida, dando origem a uma orla de equimose (ausente nos cadáveres). Os seus movimentos de rotação promovem uma orla de escoriação e as suas sujidades e vestígios criam uma orla de "limpadura", de enxugo. Estas três orlas são típicas dos orifícios de entrada, independentemente da sua distância. São exceção os disparos com cano encostado junto aos planos ósseos, que guardam características estreladas que lembram orifícios de saída. A sua interpretação é muito estudada em medicina legal e devem ser evitadas falsas interpretações pelo ortopedista entre os orifícios de entrada e saída. Isto parece muito simples quando observamos apenas dois orifícios, mas pode tornar se muito complexo quando apenas um projétil produz múltiplos orifícios de entrada e de saída ou quando encontramos diversos projeteis. A ferida deve  ser fotografada e documentada sempre que possível, para que possa posteriormente ser apreciada numa eventual perícia médico-legal.

 

CONCLUSÕES

O conhecimento da balística terminal permite compreender o mecanismo de lesão dos prójeteis de alta energia evitando erros do passado e mitos sobre algumas munições. A experiência que antes era quase exclusiva dos cirurgiões militares, hoje é compartilhada com os cirurgiões dos grandes centros urbanos que atendem rotineiramente vítimas de tiro.

Os principais determinantes, conforme já discutido, são: a propriedade dos tecidos através dos quais o projétil passa (elasticidade, densidade, coesão, estrutura interna); diâmetro, forma, massa e velocidade do projétil; se se expande ou se fragmenta; seu material, comprimento e se a trajetória é suficientemente longa para permitir uma inclinação de 90º. Só ocorre cavitação temporária significativa quando o projétil penetra com velocidade suficiente e depois deformase, fragmenta-se ou inclina-se 90º.

O estiramento tecidual pode ser absorvido com pouco ou nenhum efeito deletério pelo tecido elástico, como por exemplo, do pulmão e do músculo. Já a cavidade temporária formada pelos tecidos menos elásticos como o fígado ou cerebral determina uma lesão mais grave.

A abordagem dos doentes deve ser multidisciplinar e dar atenção às secundárias. A escolha do método de osteossíntese deve ser avaliada caso a caso tendo em conta as lesões de partes moles, a contaminação, a personalidade da fratura e a experiência do Serviço e do cirurgião.

 

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Conflito de interesse:

Nada a declarar.

 

Endereço para correspondência

Carlos Durão
Alameda dos Oceanos
Rotunda das Oliveiras, 4 Bloco C, Apto
Frente
Parque das Nações
Lisboa



 

Data de Aceitação: 2012-01-22

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