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Motricidade

versão impressa ISSN 1646-107X

Motri. vol.11 no.4 Ribeira de Pena dez. 2015

https://doi.org/10.6063/motricidade.3496 

ARTIGO ORIGINAL

 

Representações, estímulos e constrangimentos do árbitro de futebol de 11

 

Representations, stimulus and constraints of the football 11 referee

 

 

Hugo Miguel Sarmento1, 2, 3, 4,*; Adilson Marques5; Antonino Pereira1, 2

1 Escola Superior de Educação, Instituto Politécnico de Viseu, Viseu, Portugal
2 Centro de Estudos em Educação, Tecnologias e Saúde (CI&DETS), Viseu
3 Instituto Politécnico da Maia (IPMaia), Maia, Portugal
4 Grupo de Investigação para o Desporto, Educação e Saúde (GIDES)
5 Centro Interdisciplinar de Estudo da Performance Humana, Faculdade de Motricidade Humana, Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal

 

 


RESUMO

O objetivo do estudo foi conhecer as representações, estímulos e constrangimentos de árbitros portugueses de futebol de 11. Através da realização de entrevistas semiestruturadas foram inquiridos 19 árbitros. Os dados foram analisados através da técnica de análise de conteúdo com o software Nvivo 10. A análise dos resultados permitiu concluir que a representação do que é ser árbitro se consubstancia, sobretudo, pelo paixão e prazer pela atividade, sendo também atribuída significativa importância aos valores como a idoneidade, a isenção, responsabilidade, respeito e dignidade. Referiram que um bom árbitro apresenta não só uma boa condição física, mas também uma estrutura psicológica e um “saber estar” que potenciam o seu desempenho. A generalidade dos entrevistados sentia-se estimulada para o exercício desta atividade, referindo o prazer e a possibilidade de progressão na carreira como os principais estímulos. Aqueles que não se sentiam estimulados consideraram que eram mal remunerados e pouco acompanhados e acarinhados pelos responsáveis da arbitragem. Os principais constrangimentos apontados foram os comportamentos agressivos de adeptos, dirigentes e público, as dificuldades de conciliação com a vida familiar e profissional, as dificuldades de progressão na carreira e a injustiça na avaliação do desempenho.

Palavras-Chave: arbitragem, soccer, metodologia qualitativa

ABSTRACT

In the course of the study, the intention was to know the representations, stimulus and constraints of football referees. Nineteen referees were inquired using semi-structured interviews. Data was analyzed by content analysis method, using Nvivo 10 software. Result analysis allowed concluding that referees believe what represents themselves, mostly, is passion for football and enjoying their job. Values such as trustworthy, fairness, responsibility, respect and dignity are highly appreciated among them. It was referred that a good referee must be well prepared physically, but psychologically as well to enhance their performance. The majority of the interviewed feels encouraged to perform their referee activities, quoting career progression and appreciation for the job as main incentives. Those not encouraged, mentioned low salaries and not being respected or supported by other colleagues. These constraints have led the interviewers to consider quitting at some point.

Keywords: Refereeing, soccer, qualitative methodology


 

 

INTRODUÇÃO

O árbitro é uma figura ainda algo misteriosa e quanto mais refletimos acerca do seu papel simbólico mais profundo se torna o mistério (A. S. Costa, 1993). Por um lado, é o verdadeiro mestre-de-cerimónias, o zelador da lei, a personificação da autoridade e expressão da justiça no jogo (A. S. Costa, 2006). Por outro, é visto como o “bode expiatório”, que muitas vezes carrega com os erros dos intervenientes para que ninguém assuma a responsabilidade da derrota. É, pois, um dos elementos mais sensíveis do contexto competitivo que carateriza o futebol (Gama, 2005).

Tendo em conta a complexidade da tarefa destes agentes, as estruturas responsáveis têm procurado, ao longo dos últimos anos, incrementar a qualidade da sua formação, no sentido de potenciar as suas capacidades. A evolução da arbitragem e da sua formação tem sido acompanhada, indubitavelmente, pela investigação de cariz científico que procura aportar informação no sentido de facilitar a formação de árbitros cada vez mais competentes.

A nível internacional, esta investigação tem-se centrado sobretudo em aspetos relacionados com a fisiologia (Weston & Batterham, 2012; Weston, Drust, Atkinson, & Gregson, 2011), psicologia (Brandão, Serpa, Krebs, Araújo, & Machado, 2011; Slack, Maynard, Butt, & Olusoga, 2013; Stulp, Buunk, Verhulst, & Pollet, 2012), traumatologia (Bizzini, Junge, Bahr, & Dvorak, 2011), a análise da prestação dos árbitros em função de variáveis como o fator casa (Anderson, Wolfson, Neave, & Moss, 2012) ou barulho e pressão efetuada pelo público (Dawson & Dobson, 2010). A nível nacional, embora de forma mais tímida, também tem sido desenvolvida alguma investigação, enquadrada sobretudo em trabalhos de cariz académico que se enquadram nas áreas estudadas a nível internacional (Barbosa, 2010; Brochado, 2012; Cruz, 2012; Pina, 2010).

Apesar do inegável desenvolvimento da investigação em torno desta atividade, constata-se ainda uma lacuna no que concerne aos estudos desenvolvidos no contexto das Ciências Sociais e Humanas, e no âmbito do paradigma interpretativo (Denzin & Lincoln, 2008), e sobretudo aqueles relacionados com as representações, constrangimentos e estímulos para a prática da arbitragem. Não obstante, apesar de em reduzido número, existem alguns estudos realizados acerca destas temáticas, tanto a nível nacional (Brandão et al., 2011), como internacional (Ferreira & Brandão, 2012; Philippe, Vallerand, Andrianarisoa, & Brunel, 2009).

Tendo como referência a teoria das representações sociais (Farr & Moscovici, 1984), a representação é a reprodução daquilo que um indivíduo ou grupo valoriza, que adquire um determinado sentido e torna-se parte da própria realidade social desse mesmo indivíduo ou grupo (Charry-Joya, 2006). Considerando que a atividade do árbitro é influenciada por fatores múltiplos, e que as representações sociais são fenómenos complexos que devem ser cuidadosamente estudados, uma vez que nos permitem entender os sistemas de pensamentos que sustentam as práticas sociais, esta investigação teve como objetivo o estudo das representações, estímulos e constrangimentos de árbitros de futebol de 11 Portugueses.

 

MÉTODO

Este estudo sustentou-se numa metodologia qualitativa, dada a necessidade de compreensão profunda do entendimento que os árbitros de futebol de 11 possuem acerca das problemáticas em questão.

Campo de Estudo

Participaram no estudo 19 árbitros de futebol com idades compreendidas entre os 18 e os 39 anos (M = 28.79, SD = 5.70), e com uma experiência na arbitragem que varia de 1 aos 18 anos (M = 10.05, SD = 5.60), pertencentes às categorias C2 (n = 12), C3 (n = 3) e C4 (n = 4), das Associações de Futebol do Algarve (n = 1), Aveiro (n = 2), Braga (n = 1), Coimbra (n = 2), Leiria (n = 1), Viseu (n = 2), Vila Real (n = 9) e Setúbal (n = 1). As categorias C3 e C4 incorporam árbitros que desempenham a sua atividade nas competições distritais. Por sua vez, os árbitros pertencentes à categoria C2 arbitram jogos relativos às competições nacionais.

Todos os árbitros de futebol de 11 que integraram este estudo encontravam-se no ativo no momento em que as entrevistas foram realizadas. Considerámos pertinente não introduzir árbitros da categoria C1 neste estudo, uma vez que o enquadramento específico que carateriza a arbitragem a esse nível poderá ser significativamente diferente da realidade vivenciada nos restantes níveis, o que poderia causar algum enviesamento dos resultados.

A participação no estudo foi voluntária e todos os árbitros deram o seu consentimento informado por escrito.

Instrumentos

Recorreu-se ao uso de entrevistas semiestruturadas para efetuar a recolha dos dados (Bardin, 2008; Flick, 2005). A certificação da validade de conteúdo das entrevistas realizou-se de acordo com os procedimentos habituais para as investigações de cariz qualitativo (Strauss & Corbin, 1990). Neste sentido, a versão final do guião resultou dos seguintes passos: i) preparação da primeira versão do guião tendo por base os objetivos do estudo e a literatura específica (Brandão et al., 2011; Farr & Moscovici, 1984; Ferreira & Brandão, 2012; Fruchart & Carton, 2012; Philippe et al., 2009; Stulp et al., 2012); ii) validação da primeira versão do guião por peritagem (3 docentes universitários doutorados especialistas em metodologia qualitativa e 1 árbitro de futebol de 11, licenciado em Desporto); iii) reformulação do guião tendo por base as sugestões apresentadas; iv) realização de uma entrevista piloto a um árbitro da categoria C2; iv) reformulação do guião em função da reflexão efetuada da entrevista piloto e re-submissão para os peritos, tendo resultado, desta ultima análise, a versão final do guião.

Procedimentos

O processo de recolha dos dados iniciou-se através de um contato com os árbitros, com o intuito de se explicar os objetivos do estudo. Após a anuência da sua participação, foi combinado o local da entrevista, que decorreu em hotéis, nas suas residências, nas instalações dos núcleos de árbitros, ou por Skype. As entrevistas, que tiveram uma duração entre 20 e 75 minutos, decorreram entre Outubro e Dezembro de 2013 em diversos locais do País, tendo sido gravadas com o consentimento dos entrevistados. A audição e transcrição das entrevistas foram efetuadas a posteriori pelos investigadores que as realizaram.

Procedeu-se à análise e tratamento da informação recorrendo à técnica de análise de conteúdo, tendo o sistema categorial sido construído a priori e a posteriori (Bardin, 2008). Dois investigadores conduziram a análise independentemente, por forma a respeitar com o maior rigor possível os princípios que orientam a construção de um sistema categorial, ou seja, a exclusão mútua, homogeneidade, pertinência, objetividade, fidelidade e a produtividade (Bardin, 2008). O tratamento dos dados foi efetuado mediante o recurso ao software de análise qualitativa de dados QSR-Nvivo (versão 10).

 

RESULTADOS

A análise dos resultados relativamente ao significado do arbitrar (Figura 1), permitiu constatar que esta atividade é geradora de sentimentos importantes, sobretudo geradores de emoções especiais que conduzem à paixão e experienciação do prazer.

“Gosto imenso da arbitragem. É quase como um caso de amor que eu tenho. Não ponho isto à frente da família mas… até já recusei algumas propostas de trabalho em prol da arbitragem”. E7

Todavia, os valores éticos e deontológicos também foram realçados neste contexto.

“Representa também a minha imagem, como sou no futebol e fora dele, em termos de idoneidade e de responsabilidade para com a sociedade … e como tal devo manter uma postura idónea também fora dos campos para com isso poder elevar a arbitragem”. E5

“Ser árbitro, representa o compromisso com a verdade desportiva, quer seja antes, durante ou depois de um jogo. O “homem” árbitro, faz-nos acreditar na representação dos três vértices desta atividade – isenção, imparcialidade e idoneidade”. E19

De forma menos frequente, os inquiridos consideraram que a arbitragem é um meio de vida/complemento salarial, um estilo de vida, um hobby, um modo de estarem envolvidos na arbitragem ou então uma forma de contribuírem para a sua dignificação.

“Neste momento acaba por ser um complemento a nível pessoal e a nível financeiro também”. E14

“Isto começou como um hobby e ainda hoje é.”. E16

“Ser árbitro é um estilo de vida…. que requer muito trabalho, dedicação e alguns cuidados no dia a dia, tais como: ter um estilo de vida saudável, praticar exercício físico regularmente...”. E13

Por outro lado, consideraram os aspetos físicos, psicológicos e o “saber estar” dentro e fora do futebol como as principais características de um bom árbitro.

“Não é só a nível físico e a nível cognitivo, mas também a nível psicológico. O gerir as emoções, o saber estar, o saber ser, tudo isso é importante para o árbitro. E15

“É preciso saber estar. Então sei que não posso fazer noitadas, ir á noite para discoteca... Eu tenho que ser um exemplo para todos. Se a arbitragem é tão criticada, mesmo quando eles atuam bem… tenho que ser e não parecer… logo tenho que ter bons comportamentos, porque se eu não fizer um bom jogo, sou capaz de ser associado a determinadas coisas… tenho que saber no patamar em que me encontro. Eu tenho que ter determinados cuidados e mesmo assim pode não decorrer da melhor maneira. É não nos pormos a jeito”. E4

A maioria dos árbitros inquiridos sentia-se estimulado para a prática da arbitragem, sustentando essa perspetiva sobretudo no gosto pela arbitragem, mas também nas possibilidades de progressão na carreira e na compensação monetária que obtinham.

“Poder tornar-me melhor árbitro, evoluir, ter capacidade de progressão, poder arbitrar grandes jogos”. E10

“É estimulante, bastante. Esta é uma área de que gosto muito. Eu apitava jogos na escola de graça, e agora sou remunerado. Quando nos pagam para fazer o que nós gostamos, só podemos estar contentes”. E17

Os entrevistados referiram também que os estímulos e inventivos tinham origem em si próprios, nos colegas e amigos e na família.

“O grande estímulo é a nomeação. O aguardar pela nomeação e quando a nomeação chega, esse é realmente o grande estímulo. E depois é começar a trabalhar para o jogo, o reunir com a equipa, para o preparar da melhor forma. Esse é realmente o grande estímulo. Para nós, o próximo jogo é sempre o nosso melhor jogo”. E5

“Claro, claro que me sinto estimulado, mais do que nunca. Um árbitro tem que estar estimulado para apitar, senão não consegue apitar. Não está aqui a fazer nada só deve é acabar a carreira”. E18

“Sinto-me incentivado pelos colegas, pelos amigos… eles dão-me apoio e sou também muito apoiado pela família”. E9

“A nível familiar sinto-me muito apoiado. Até porque o meu pai também é árbitro de andebol. Depois dois tios meus também foram árbitros, e então percebem como todo este processo se passa”. E3

Apesar de em número mais reduzido, existia um grupo de árbitros que não se sentia estimulado, referindo que as principais causas para tal situação se consubstanciam não só ao nível do reduzido acompanhamento e acarinhamento por parte dos dirigentes da arbitragem, mas também ao nível da fraca remuneração que auferiam por tal serviço.

“Cada vez os apoios são menos.... Até por questões monetárias… nós não ganhamos assim tão bem para termos que descontar o que descontamos para as finanças e a segurança social. Leva-nos tudo...”. E7

“Muitas vezes temos falta de apoios do dirigismo da arbitragem. Falta muitas vezes aquela palavra de apoio e não nos é dada. Precisamos, principalmente, quando temos uma prestação menos boa e alguém que nos diga, é pá, correu mal, mas para a próxima irá correr melhor. Nessa altura, olho muitas vezes para o telemóvel, á espera de um telefonema… sei que estive mal, há pessoas que sabem que estive mal, mas ninguém me liga…”. E9

A falta de estímulos que é referenciada por alguns árbitros tem origem, essencialmente, nas Associações Distritais e no Conselho de Arbitragem.

“A nível associativo, os árbitros da nossa Associação Distrital de Futebol são pouco apoiados. Desde a falta de apoio monetário… desde querer reduzir as ações de formação no quadro distrital a uma por época, desde a falta de apoio material… não apoia os núcleos… falámos várias vezes para termos um preparador físico para os árbitros e eu sou árbitro há 13 anos e nunca conseguimos”. E2

“O conselho de arbitragem preocupa-se muito pouco com os árbitros. Por exemplo, há um colega que está lesionado e depois não há um telefonema a perguntar: como é que estás? Como é que aconteceu? É grave? Vais parar durante muito tempo? Ou seja, eles só se preocupam com aquela matéria humana que está disponível e essa é vai fazer os jogos”. E4

Relativamente aos principais constrangimentos e dificuldades com que se debatiam, os inquiridos consideraram que se situavam sobretudo ao nível dos comportamentos agressivos dos diversos agentes desportivos.

“A parte mais complicada é a comunicação social, que é o maior destruidor do futebol e da arbitragem. Se lermos os jornais ou as crónicas à segunda-feira e quando um árbitro erra é devastado e criticado, mas quando o árbitro esteve bem não se comenta. Mas vão sempre buscar qualquer coisa, algum outro jogo anterior, alguma ação do árbitro em que esteve mal para o criticar”. E2

“São os comportamentos incorretos de alguns dirigentes, treinadores, jogadores, público e comunicação social”. E5

Não obstante, também se sentiam constrangidos pelas dificuldades de progresso na carreira da arbitragem, bem como pela avaliação do seu desempenho.

“O sistema de avaliação é o calcanhar de Aquiles da arbitragem. Porque, é assim, ninguém é mais do que ninguém e mas no futebol há os amigos e há sempre alguém que é mais beneficiado do que outros. Nas provas físicas e as escritas, isso não há hipóteses. Agora em termos de avaliação dos jogos, onde há os relatórios técnicos, aí há sempre uns pozinhos mágicos…”. E16

“Reduzidas oportunidades de progressão na carreira, em função do limite de idade para aceder à categoria nacional (como árbitro principal)”. E19

 

Figura 2

 

Ademais, as dificuldades de conciliação desta atividade com a vida familiar e profissional afiguraram-se como sendo constrangimentos significativos.

“A primeira é não podermos conciliar tudo a nível profissional, familiar e esta atividade. A nossa maior dificuldade é dosear tudo. Tudo tem o seu peso e medida e como tal temos que saber dosear tudo.” E3

“A nível profissional conseguimos mudar horários, dá para conciliar minimamente, mas a nível familiar é muito mais complicado. Ou não fazemos jogos ou vamos com a família, ou não trabalhamos ou vamos com a família”. E17

No sentido de ultrapassar algumas destas dificuldades, os entrevistados propuseram certas sugestões de melhoria, relacionadas sobretudo com a avaliação do desempenho e com a necessidade de formação dos diversos agentes desportivos.

“A valorização do desempenho pelos responsáveis pela arbitragem seria tanto ou mais sentida, com observações não só realizadas pelos observadores mas também pelos árbitros entre si, com registo vídeo e com critérios bem definidos ao olhar de todos”. E19

“Seria bom a realização de formação a nível de clubes, para que os dirigentes, treinadores e atletas tivessem mais conhecimento das leis, para haver menos problemas”. E11

Um dado importante a reter prendeu-se com o fato de um número significativo de árbitros ter, em algum momento da carreira, pensado em abandonar a atividade, motivado sobretudo por injustiças na avaliação de desempenho e agressões de que tinham sido vítimas.

“Já pensei! Porque não consegui alcançar os meus objetivos. De forma injusta na altura e pensei seriamente em abandonar”. E12

“Já. Há 5 anos, quando desci de forma injusta, depois de uma época muito boa, quando saí do último jogo quase desisti”. E17

“Uma das vezes que pensei nisso foi quando fui agredido,” E2

 

Figura 3

 

 

DISCUSSÃO

O presente trabalho teve por objetivo o estudo das representações, estímulos e constrangimentos de árbitros portugueses de futebol de 11. Os resultados obtidos permitiram constatar que, de forma semelhante ao verificado com árbitros franceses (Philippe et al., 2009), brasileiros (Ferreira & Brandão, 2012) e portugueses (Brandão et al., 2011), também os árbitros inquiridos neste estudo pareciam assumiram que a paixão pela arbitragem se revela como uma grande linha orientadora que marca a sua forma de sentir, facto que é apontado na literatura como determinante na promoção da excelência no desporto (Orlick, 2008). A expressão de uma das maiores referências da arbitragem de todos os tempos, Pierluigi Collina, surge na linha destes resultados: “É a paixão pelo futebol, porque gosta e porque se diverte a entrar num campo com o apito na boca” (Collina, 2004, p. 107). Tal facto permite-nos concluir que, na generalidade, os árbitros se encontram intrinsecamente motivados para o desempenho desta atividade, o que se revela como um fator positivo, tendo em conta a relação que tem sido estabelecida entre a motivação intrínseca e a persistência na atividade (Deci & Ryan, 1985).

Por outro lado, os valores éticos e deontológicos surgem também como uma importante representação do significado de arbitragem. Lima (2005) considera que estas são qualidades que ninguém dispensa a qualquer árbitro. No mesmo sentido, Vitor Pereira, ex-árbitro internacional constata que “…o que faz falta à arbitragem são árbitros comprometidos com a atividade” (Pereira & Araújo, 2007, p. 151), tornando-se imperiosa a necessidade da consciencialização de que ser árbitro não implica apenas o conhecimentos das regras do jogo, mas também o assumir, de forma séria, a responsabilidade que ultrapassa o momento do próprio jogo e até das relações que se estabelecem no seu desenvolvimento (Marivoet, 2005).

Um aspeto importante prende-se com o facto de apenas um reduzido número de árbitros ter referido as questões monetárias como uma representação do que é ser árbitro. Também Ferreira e Brandão (2012), no estudo que realizaram com árbitros brasileiros, obtiveram resultados semelhantes, tendo os autores sugerido que tal situação deveria ser resultado dos árbitros pertencentes à amostra do seu estudo estarem no mais elevado escalão competitivo e possuírem ainda outra atividade profissional. Ora, no nosso estudo, os árbitros não se encontram no patamar mais elevado da arbitragem, e independentemente do nível em que se encontravam, pareciam mais motivados por questões relacionadas com o prazer, divertimento e participação nesta atividade.

Relativamente às características consideradas essenciais para ser um bom árbitro, os inquiridos realçaram os aspetos físicos, psicológicos e o conhecimento das leis do jogo, características estas que são amplamente reconhecidas pela literatura e sobre as quais tem incidido grande parte da investigação científica (Bradley & Noakes, 2013; Costa et al., 2013; da Silva, de los Santos, & Cabrera, 2012; da Silva, Oliveira, Brandão, Agreta, & Neto, 2013; Slack et al., 2013; Weston & Batterham, 2012). Ademais, atribuíram também significativa importância ao saber estar dentro e fora do futebol. Lima (2005) atribui grande importância a este aspeto, realçando a importância da formação humana do árbitro que, certamente, se irá refletir na sua prestação competitiva. As expressões proferidas por Collina permitem perceber não só a importância que atribui a este aspeto, “não há diferença entre o homem e o árbitro: cada qual manifesta em campo aquilo que é na vida de todos os dias, com as mesmas características, os mesmos defeitos e as mesmas virtudes” (Collina, 2004, p. 59), mas também à necessidade de existir um bom relacionamento com os diversos intervenientes do jogo, referindo que “uma das características do árbitro dos nossos dias é a de saber comunicar” (Collina, 2004, p. 58).

Quando se referiram ao que os estimulava para a prática da arbitragem, os inquiridos mencionaram sobretudo as questões relacionadas com o gosto pela arbitragem, mas também as possibilidades de progressão na carreira e a compensação monetária. Também os árbitros profissionais ingleses entrevistados por Slack, Maynard, Butt, e Olusoga (2013) consideraram que a perspetiva de poderem progredir é uma importante força motivacional que carateriza os bons árbitros. Na grande maioria das situações, os árbitros obtêm e acolhem, sobretudo, estímulos de si próprios e com menos frequência dos colegas e amigos, da família e dos próprios núcleos de árbitros. Todavia, existe um conjunto de árbitros (n=6) que não se sentia estimulado para a atividade, referindo sobretudo o reduzido acompanhamento dos dirigentes da arbitragem, nomeadamente das Associações Distritais de Futebol e do Conselho de Arbitragem, mas também o reduzido apoio financeiro. Este grupo de árbitros representava uma população que deverá ser alvo de uma atenção especial, dado que procuravam motivação sobretudo em questões extrínsecas que poderão revelar-se menos vantajosas em termos motivacionais (Deci & Ryan, 1985), podendo levar ao abandono da atividade.

No que concerne aos principais constrangimentos, os árbitros referiram-se sobretudo aos comportamentos agressivos dos diversos agentes desportivos. Apesar de terem sido obtidos resultados similares em investigações realizadas anteriormente (Fruchart & Carton, 2012), será de referenciar que os árbitros salientaram que nunca usam tal facto como argumento para destabilizar um jogo. Todavia, consideraram que tal situação poderia ser minorada se existisse uma formação mais adequada ao nível dos dirigentes, jogadores e público, mostrando-se, inclusivamente, disponíveis para ministrarem essa formação. Por outro lado, referiram ainda que punições mais severas para os infratores poderiam ajudar a combater esta situação, bem como o policiamento obrigatório em todos os jogos.

Ademais, alguns comportamentos verbais agressivos referidos pelos árbitros poderão ser punidos com um cartão vermelho, de acordo com a lei 12. Todavia, esta é uma lei que nem sempre é aplicada de forma rígida, sendo esta atitude transversal a árbitros de outros países, nomeadamente Austríacos, como constatado no estudo de Praschinger, Pomikal e Stieger (2011).

Por outro lado, consideraram ainda que a arbitragem se torna difícil de conciliar com a vida familiar e profissional. Vítor Pereira, lamentava-se do mesmo ao referir que “…esta minha vida dedicada à arbitragem que lhes tem roubado tanto da minha companhia” (Pereira & Araújo, 2007, p. 216). A solução sugerida pelos inquiridos centra-se sobretudo no alargamento da profissionalização da arbitragem mas, reconhecendo que é uma medida difícil de implementar, sugerem a realização de menos jogos ao fim de semana, por forma a disporem de mais tempo para estar com a família. Todavia, admitiram que apenas seria possível se existisse um maior número de árbitros.

As dificuldades de progressão na carreira da arbitragem, as injustiças na avaliação de desempenho e a ausência de acompanhamento por parte dos dirigentes da arbitragem, são outros dos aspetos que estes árbitros consideraram constrangedores para o desenvolvimento da atividade. Sobretudo os aspetos relacionados com as questões da avaliação de desempenho parecem ser merecedores de especial atenção, uma vez que mais de metade dos árbitros revelou ter pensado abandonar a atividade, motivado sobretudo por aquilo que consideram ser as injustiças na avaliação. Desta forma, apesar de considerarem uma medida de difícil implementação, sugeriram que o ideal seria realizar uma gravação em vídeo de todos os jogos, para posteriormente ser complementada com a avaliação realizada pelo observador in loco, tornando, desta forma, o processo mais objetivo.

 

CONCLUSÕES

A realização do presente estudo permitiu compreender quais as representações, os estímulos e os constrangimentos dos árbitros das categorias C2,C3 e C4 de futebol de 11 em Portugal. As representações do significado da arbitragem consubstanciam-se em aspetos positivos que valorizam e dignificam esta atividade no nosso país. Os inquiridos revelaram grande preocupação com o aspeto físico, psicológico e com a forma como têm de “saber estar” dentro e fora do futebol. Esta postura tem contribuído decisivamente não só para o aumento da qualidade da arbitragem, mas também para uma mudança da opinião pública acerca da mesma. Por sua vez, o conjunto de constrangimentos e dificuldades referidos revelaram que existem aspetos que poderão ser trabalhados de forma progressiva (alteração de comportamento de público, jogadores, dirigentes desportivos), enquanto outros poderão ser alvo de uma atenção mais eficaz por parte dos responsáveis pelo dirigismo da arbitragem, dado que um número significativo de inquiridos revelou ter tido em algum momento da sua carreira intenções de abandonar a prática da modalidade por não se sentir acarinhado pelos dirigentes da arbitragem ou por injustiças da avaliação.

Apesar de os aspetos físicos e do conhecimento das leis de jogo serem aspetos extremamente valorizados nos cursos de formação de árbitros de futebol, a importância atribuída aos fatores psicológicos reclama uma maior atenção neste aspeto por parte das estruturas responsáveis pela arbitragem, sendo de repensar a necessidade de um acompanhamento mais frequente e eficaz por parte dos profissionais da psicologia do desporto a estes agentes desportivos.

Esta investigação permitiu-nos constar que o estudo da arbitragem no futebol em Portugal ainda é escasso. A análise de múltiplas questões representa um trabalho de reflexão a desenvolver acerca da arbitragem no contexto da competição e abordar um conjunto de problemas de fundo que permanecem escondidos ou que são desvalorizados. Por outro lado, esta investigação motiva-nos para a realização de futuras investigações acerca de um agente desportivo, muitas vezes esquecido e considerado como inimigo, que se escutado muito pode contribuir para o desenvolvimento da arbitragem no nosso país.

 

REFERÊNCIAS

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Agradecimentos:
Nada a declarar.
Conflito de Interesses:
Nada a declarar.
Financiamento:
Nada a declarar

Artigo recebido a 13.02.2014; Aceite a 11.12.2014

 

 

*Autor correspondente: Escola Superior de Educação de Viseu, Rua Maximiano Aragão, 3504 – 501, Viseu, Portugal. E-mail: hg.sarmento@gmail.com

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