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Motricidade

versão impressa ISSN 1646-107X

Motri. vol.10 no.4 Ribeira de Pena dez. 2014

https://doi.org/10.6063/motricidade.10(4).2658 

ARTIGO ORIGINAL

 

Praxiologia motriz e a abordagem crítico-superadora: Aproximações preliminares

 

Motor praxeology and the critical-surpassing approach: Preliminary approximations

 

 

Pablo Aires Araujo1,*; Maristela da Silva Souza2; João Francisco Magno Ribas2

1Instituto Nacional de Educación Física de Cataluña - INEFC/Lleida, Espanha
2Departamento de Desportos Individuais do Centro de Educação Física e Desportos da Universidade Federal de Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil

 

 


RESUMO

O presente estudo tem por objetivo propor uma aproximação dentro do campo teórico-metodológico entre a abordagem crítico-superadora e os elementos conceituais da Praxiologia Motriz no sentido de apresentar as primeiras orientações para a prática pedagógica do professor de Educação Física. Acredita-se que através da apropriação dessas duas temáticas poder-se-á obter uma ferramenta a mais para o ensino dos Jogos e Desportos, mediante o processo metodológico da abordagem crítico-superadora. Desse modo, chega-se a um mais claro entendimento acerca do funcionamento dos jogos e desportos, já que a Praxeologia Motriz possibilita esse aprofundamento na compreensão da lógica interna dessas práticas, contribuindo, portanto, para uma melhor compreensão da lógica dialética que sustenta os pressupostos da proposta crítico-superadora. Para ilustrar tais afirmações utilizou-se como exemplo o jogo de Voleibol. O exercício teórico desenvolvido neste estudo evidenciou que o conhecimento praxiológico poderá instrumentalizar professores e alunos possibilitando o entendimento das relações inerentes a cada modalidade desportiva no sentido de superar os modelos desportivizados.

Palavras-chave: aprendizagem, educação, jogos, prática pedagógica, praxiologia motriz, voleibol


ABSTRACT

The present study aims to propose an approach within the field theoretical and methodological between the approach and critical-surpassing and the conceptual elements of motor praxeology in order to present the preliminary guidelines for the pedagogical practice of teaching physical education teacher. The assumption of this study is that through the appropriation of these two themes, an extra tool for the teaching of Games and Sports will be obtained, based on the methodological process of the critical-surpassing approach. Therefore, a clearer understanding on the functioning of games and sports is reached, since Motor Praxeology enables a deeper and comprehensive understanding on the internal logic of these practices, thus contributing to a better discernment of the dialectical logic that underpins the assumptions of the critical-surpassing proposal. To showcase these claims the volleyball game is taken as an example. The theoretical exercise developed in this study showed that praxeological knowledge can help teachers and students allowing a better understanding of the inherent relationships in each sport to overcome sportified models.

Keywords: education, games, learning, motor praxeology, pedagogical practice, volleyball


 

 

INTRODUÇÃO

A sociedade em que vivemos impõe-nos um modo de vida cujas diferenças se acentuam cada vez mais, sem que isso deixe de parecer “natural” para a maioria das pessoas; uma sociedade discriminatória e excludente, que oprime os que não dispõem das condições necessárias para nela se inserir. Porém, no momento em que se quer mudar essa realidade, deve-se procurar embasamento nos conhecimentos que poderão auxiliar na consecução dessa luta. O Materialismo Histórico Dialético (MHD) apresenta uma perspetiva de compreender o mundo através de outro olhar, i.e., aponta uma forma de se buscar uma mudança dessa cruel realidade que nos assombra, de modo a escapar do conformismo e submissão ao sistema, que está para a maioria como a única saída. Como educadores temos a obrigação de, além de ensinar, também apresentar essa realidade aos nossos alunos. Por isso, entendemos que se faz necessária a utilização de Abordagens Críticas da Educação Física, mais especificamente a Abordagem Crítico-Superadora (ACS). Desse modo, eles poderão entender que todos somos sujeitos da história e que, como tal, podemos modificá-la. “Isso quer dizer que se deve explicar ao aluno que a produção humana, seja intelectual, científica, ética, moral, afetiva etc., expressa um determinado estágio da humanidade e que não foi assim em outros momentos históricos” (Coletivo de Autores, 1992, p. 33).

Dentro dessa perspetiva da sociedade capitalista e de suas necessidades, outra realidade que necessita ser revista é a forma como os jogos e desportos vêm sendo desenvolvidos no meio escolar. Sua prática, seguindo os moldes do desporto de competição, vem acentuar as diferenças existentes na massa heterogénea de alunos, separando-os em dois blocos: o dos aptos e o dos não aptos. Aqueles que apresentam um pouco mais de habilidade vão se tornar os praticantes assíduos; porém, aqueles que têm dificuldades acabarão se afastando e, consequentemente, acentuar a resistência pela prática dos jogos. Nesse sentido, a oportunidade de desenvolvimento, dentro das possibilidades de cada indivíduo, não se concretiza, o que pode frustrar a função do professor formador e penalizar o aluno que, sem a sadia prática do desporto na escola, deixa de alcançar tal objetivo.

O entendimento da realidade em que estão inseridos, por parte dos alunos, também possibilitará uma melhor compreensão das mudanças às quais os desportos vêm sendo obrigados a se adequar, modificações estas que nem sempre estão relacionadas ao âmbito desportivo e, sim, à forma como o desporto vem se tornando uma mercadoria cada vez mais rentável nessa sociedade produtiva e ideologicamente capitalista. Estes são apenas alguns aspetos que poderão ser descritos e mais bem aprofundados dentro das aulas de Educação Física e para os quais a Praxiologia Motriz (PM) poderá explicitar alguns elementos referentes à lógica de funcionamento e à caracterização de distintos âmbitos do mundo dos jogos e desportos.

Justificamos nossa escolha acerca dessas temáticas pela necessidade de um maior embasamento metodológico por parte do professor, destacando que a PM não tem características metodológicas. E, apesar de a PM apresentar elementos sistematizadores de forma consistente em relação aos jogos e desportos, a forma como devem ser tratados esses elementos por parte do professor dependerá das orientações teórico-metodológicas de cada educador.

Os primeiros passos deste estudo foram dados junto ao Projeto de Extensão denominado “Voleibol-CEFD” e ao Projeto de Ensino denominado “Princípios Orientadores para o Ensino do Voleibol”, projetos complementares, já que um surgiu da necessidade do outro. O projeto de ensino aconteceu em decorrência das dificuldades encontradas no tracto com a PM, principalmente no momento de articular a temática com a parte prática, junto ao projeto de extensão Voleibol-CEFD. Detetou-se, então, a necessidade de um maior aprofundamento teórico, o que foi feito através de uma releitura do voleibol a partir do conhecimento praxiológico. No ano de 2005, junto ao grupo de pesquisadores da Linha de Estudos Epistemológicos e Didáticos em Educação Física (LEEDEF), realizamos estudos referentes ao MHD que se constitui no pilar teórico que sustenta as ações dessa linha de pesquisa. A partir do aprofundamento teórico-metodológico dessas temáticas, percebeu-se a necessidade de aproximar esses conhecimentos na busca de uma possibilidade no tracto do ensino junto ao meio escolar, buscando assim conhecer a lógica do processo de apreensão do conhecimento em sua realidade mais pura, a realidade escolar. Como declara Wachowics (1989), citado por Freitas (2000, p. 50): “Há vários métodos de ensino determinados pelo seu objeto, mas há uma lógica que comanda a apreensão da realidade pela inteligência, lógica esta que vai determinar a forma pela qual se dá a mediatização do saber”.

Com base no que se apresentou até aqui, entendemos a necessidade de aproximar essas duas temáticas, conhecimentos tais que até o momento, de forma articulada, não haviam sido objeto de estudo, mas que Parlebas (2001) já vem indicando que os conhecimentos da PM estão situados na ação motriz e estudo da lógica interna, e que a “...pedagogia das práticas corporais implica profundamente os sistemas de valores políticos e ideológicos” (p. 175). A necessidade da realização de estudos que realizem um debate aprofundado dessas relações também foi apontada por Ribas (2005) que, nesse trabalho, apresentou as contribuições didáticas da PM para a Educação Física Escolar. Em outro estudo, Ribas e Oliveira (2010) realizam uma análise teórica onde debatem as relações conceituais da abordagem crítico emancipatória proposta por Elenor Kunz com a PM. Sendo assim, o âmbito académico da Educação Física necessita de respostas científicas que evidenciem como se dá a relação entre a ACS e a PM.

Neste estudo, inicialmente apresentaremos algumas considerações referentes aos Jogos e Desportos buscando situá-los conceitualmente. Na sequência, trataremos de dissertar sobre os elementos essenciais da PM, no sentido de apresentar um pouco de sua história e de sua conceituação. Em seguida, serão apresentados também os elementos relativos à ACS. A seguir ilustraremos essa aproximação a partir do esboço da proposta metodológica que trata de acercar os conceitos da PM na perspetiva teórica do materialismo histórico. Finalizamos o texto com algumas considerações sobre o estudo no sentido de mostrar as limitações e a possibilidade de continuidade deste trabalho.

 

MÉTODO

Além de todos esses aspetos que são aqui levados em consideração, o processo metodológico seguiu a lógica proposta por Saviani (1997), que utiliza o método proposto por Marx para a compreensão da Economia Política, relacionando e sistematizando-o para o contexto da Educação. Saviani (1997) propõe o tracto do conhecimento em cinco passos ou momentos que estão articulados, nem sempre se apresentando na mesma ordem cronológica, mas que, dependendo das circunstâncias das aulas, podem acontecer ao mesmo tempo. Os passos são os seguintes:

1º PASSO - Prática Social: é o ponto de partida e, ao mesmo tempo, o ponto de chegada. No entanto, o conhecimento no ponto de chegada não será mais o mesmo do ponto de partida, pois passará pelos outros passos, a fazer com que se torne um conhecimento mais elaborado e a torná-lo um novo ponto de partida.

2º PASSO - Problematização: neste ponto, são elencados problemas referentes ao conhecimento que seria necessário dominar, buscando, com isso, detetar questões que precisam ser resolvidas no âmbito da prática social. Pela interação professor/aluno, feita durante ou depois da prática social, o professor indagará os alunos acerca da prática social, no momento em que os problemas são discutidos.

3º PASSO - Instrumentalização: neste mo-mento, o professor será responsável pela transmissão de forma direta ou indireta dos conteúdos. Sempre partindo dos problemas apresentados e do objetivo, o professor irá fornecer aos alunos possibilidades e instrumentos para solução e apreensão de determinado conhecimento.

4º PASSO - Catarse: forma elaborada do pensamento, instância em que os conteúdos passam a ser elementos ativos da transformação social.

5º PASSO - Prática Social: Através de todo esse processo descrito, a compreensão da prática social passa por uma alteração qualitativa. Com isso, conclui-se que a prática social no ponto de partida (primeiro passo) e no ponto de chegada (quinto passo) é e não é a mesma. Pode-se perceber com isso que a alteração objetiva da prática só pode se dar a partir da nossa condição de agentes sociais ativos, reais.

É importante destacar que os cinco passos não são etapas a serem seguidas e que nem sempre os objetivos para cada aula serão alcançados naquele momento em que são propostos. Por exemplo, a catarse ou o entendimento/compreensão por parte do aluno pode se dar apenas algumas aulas à frente, e isso vai depender das capacidades de cada aluno. Nesse sentido, Souza (2009) acrescenta que:

"Este método, proposto para a sala de aula apresenta, enquanto ponto de partida e ponto de chegada, no processo de ensino, a prática social. É também um método do abstrato ao concreto, porque o ponto de partida (no caso específico da educação, o conteúdo), no qual inicia a análise (processo de ensino) é constituído de determinações encontradas na representação do real. O pensamento do aluno inicia sobre um todo constituído de relações gerais e determinações simples, percorre com a atividade de seu pensamento o processo de ensino, que juntamente com o professor completa a aprendizagem ao elaborar o concreto pensado. O concreto pensado (ainda o conteúdo) constitui-se de relações múltiplas e determinações complexas" (pp. 149-150).

Categorias de Análise

Praxiologia Motriz (PM)

A PM foi idealizada pelo francês Pierre Parlebas, que tem vindo a construir e sistematizar suas ideias acerca dos jogos e desportos há mais de 40 anos, tempo em que vem escrevendo inúmeros artigos e obras sobre tal temática. A mais importante delas, denominada “Juegos, Deporte y Sociedad”, foi publicada em 2001, reunindo as principais ideias da área em forma de léxico. Essa obra é também conhecida como Teoria da Ação Motriz. Nela, a definição de PM é a seguinte: “Ciência da ação motriz e especialmente das condições, modos de funcionamento e resultados de seu desenvolvimento” (Parlebas, 2001, p. 354).

Seus pilares estão localizados no campo da Sociologia e da Antropologia. Com isso, entende-se que Parlebas considera jogos e desportos como sendo manifestações sociais e, assim, deverão ser compreendidos a partir dessa perspetiva. Os princípios das Ciências Sociais e Humanas contribuem já há algum tempo para um melhor entendimento do mundo da Educação Física. A diferença é que Parlebas situa os jogos e desportos no campo da Sociologia, com modelos, instrumentos próprios de investigação e conteúdo coerentes.

Para Lagardera e Lavega (2003) a PM é a disciplina que estuda a lógica interna dos jogos e desportos a partir de suas regras ou normas de funcionamento. A PM, através dos seus elementos, tem a função de mostrar o mundo dos jogos e desportos a partir da compreensão da essência da lógica interna, representada pelas ações motrizes. As Ações Motrizes estão inscritas nas normas, e aí é que Parlebas diferencia a Ação Motriz de qualquer outro movimento. E são estas ações, as que emergem do sistema praxiológico, relativas às suas normas, que interessam à PM.

A outra grande influência da Teoria da Ação Motriz está no Estruturalismo, principalmente nas ideias de Lévi-Strauss. O Estruturalismo vincula-se a aspetos essenciais de questões da Sociologia e da Antropologia. Um exemplo que pode fundamentar essa afirmação é o de que, ao associar os elementos básicos de uma sociedade à estrutura de um prédio ou casa, devemos considerar as características elementares, presentes na estrutura da construção, e que se repetem de um exemplo construtivo para outro. Na PM essa mesma relação foi feita por Parlebas com o mundo dos jogos e desportos, ou seja, os eventos e elementos centrais da lógica de funcionamento poderão se repetir em distintas modalidades.

A PM não se constitui numa abordagem da Educação Física, não se caracteriza como uma metodologia de ensino, mas, sim, como um conhecimento, criterioso e consistente, sobre a lógica de funcionamento de jogos e desportos. Este estudo busca apresentar um dos modos como esse conhecimento poderá ser inserido em distintos âmbitos de discussão da Educação Física, particularmente na prática pedagógica dos professores de Educação Física.

Assim, a Praxiologia Motriz vem nos trazer novas formas de pensar o conhecimento dos jogos e desportos, principalmente no entendimento da lógica interna dessas atividades, assim como na construção de uma gramática dessas práticas (Parlebas, 2003). Neste estudo mostram-se as primeiras relações que conseguimos realizar entre praxiologia motriz, que evidencia lógica de funcionamento de jogos e desportos, e a abordagem crítico-superadora, que constrói uma consistente fundamentação teórica para a prática pedagógica.

Antes, porém, de iniciarmos esta relação é importante que apontemos o primeiro elemento de entendimento referente ao conceito de desporto e jogo proposto por Parlebas. Em relação ao jogo tradicional, Parlebas (2001) faz as seguintes considerações no sentido de caracterizar este contexto: a) está ligado à tradição de uma determinada cultura; b) é regido por um corpo de regras flexíveis que admitem muitas variantes, em função dos interesses dos participantes; c) não depende de instâncias oficiais; e, d) está à margem dos processos socioeconómicos – o jogo; mesmo sofrendo influência desses processos, não depende diretamente deles para acontecer, diferente do que acontece nos desportos, que estão estritamente relacionados aos processos de produção e consumo.

Os desportos, por sua vez, apresentam três traços que os identificam. O primeiro deles se refere ao fato de eles se constituirem numa manifestação cultural institucionalizada mundialmente por confederações, federações e comitês olímpicos. Outra característica do desporto é a competição regulamentada que orienta essa manifestação. As regras são institucionalizadas e orientam as práticas em todo o mundo, com pequenas alterações para algumas realidades. Eles dependem de instâncias oficiais para serem desenvolvidos, ou seja, as federações e confederações ou outras instituições desportivas é que são responsáveis por sua promoção. Por fim, e o mais relevante para nosso estudo, refere-se ao fato de que os desportos se constituem em uma manifestação profundamente relacionada com os processos socioeconómicos de produção e de consumo e, neste caso, têm uma vinculação histórica com o sistema capitalista (Parlebas, 2001). O autor destaca ainda que o conteúdo desportivo tem prevalecido no quotidiano escolar, levando para esse contexto toda a lógica social em que está inserido o desporto, destacando que:

"Tornou-se a referência e o objetivo fundamental proposto pelas instituições oficiais que regem a prática do professor de Educação Física. Como reação tem se desenvolvido uma concepção que denuncia o desporto como atividade “alienante”, porque as práticas estabelecidas não fariam mais que reproduzir os procedimentos de exploração e escravidão do indivíduo (exigências desumanas do treinamento, busca por medalhas, a mais alta politização das provas, etc.). O desporto tem-se convertido em muito na imagem do antijogo" (Parlebas, 2001, p. 313).

Este, portanto, é o contexto do objeto de estudo e análise desta pesquisa, no caso, o voleibol. Assim, a primeira necessária articulação conceitual relativa ao desporto: quando estamos falando em manifestações desportivas referimo-nos às atividades que apresentam os elementos elencados por Parlebas. De forma concreta, consiste dizer que o desporto institucionalizado, do modo como está formatado, pode ser reproduzido na escola sem que seus elementos sejam entendidos, avaliados e transformados. A partir do olhar da conceção crítico-superadora esses conceitos devem ser apropriados pelos alunos e transformados em novas formas de entendimento social, e não simplesmente serem reproduzidos no contexto escolar. Quanto aos elementos da abordagem crítico-superadora que serão considerados para realizar as articulações com a praxiologia motriz é o que trataremos a seguir.

Abordagem Crítico-Superadora (ACS)

O momento atual vivido pela Educação Física, quando se está a perder espaços e credibilidade na prática pedagógica junto ao meio escolar, aponta para a necessidade de uma organização e um maior embasamento teórico-metodológico, pois o Professor de Educação Física vem sendo rotulado desde há muito tempo como aquele que apenas “larga” a bola para os alunos jogarem. Apesar de essa prática ser bastante frequente, entendemos que as novas abordagens da Educação Física vêm apontando para formas pedagógicas que se caracterizam por apresentar consistência e coerência nas suas ações.

A Abordagem Crítico-Superadora apresenta como obra mais importante o Coletivo de Autores (1992), composta por Carmen Lúcia Soares, Celi Nelza Zülke Taffarel, Elizabeth Varjal, Lino Castellani Filho, Micheli Ortega Escobar e Valter Bracht. Essa obra surgiu de um trabalho reunindo seus autores na busca de uma orientação metodológica para os professores de Educação Física da rede escolar, a Coleção Magistério, composta de 25 livros didáticos para o antigo curso de Segundo Grau, atual Ensino Médio (EM). A coleção teve como principal objetivo orientar uma melhoria da qualidade do ensino ministrado na escola, tanto pela formação do professor que exerce suas funções nesta modalidade e nível, quanto para aquele que atuaria nas séries iniciais do ensino fundamental.

A ACS tem o MHD como pressuposto teórico, em cuja base de princípios encontram-se, além da matéria, a dialética e a prática social, como também aspira ser a teoria orientadora da revolução do proletariado. O MHD ressalta a força das ideias, capaz de introduzir mudanças nas bases económicas que as originaram e, por isso, destaca a ação dos partidos políticos e dos agrupamentos humanos, cuja prática social pode produzir transformações importantes nos fundamentos materiais dos grupos sociais (Marx, 1988)

Por sistematizar o conhecimento da Educação Física, o Coletivo de Autores discute aspetos importantes que devem ser analisados, dentre os quais a seleção dos conteúdos, e apresenta quais aspetos devem ser observados para sua escolha: a) a relevância social dos conteúdos, seu sentido/significado para a explicação da realidade na qual o aluno esteja inserido; b) a contemporaneidade dos conteúdos, de modo a que relacionem o conhecimento com o contexto social moderno; c) a adequação às possibilidades sociocognoscitivas do aluno, ou seja, entre o conteúdo para a prática social e as possibilidades desse aluno enquanto sujeito histórico. Segundo o Coletivo de Autores (1992), os princípios da seleção remetem à necessidade de organizá-los e sistematizá-los, fundamentados em alguns princípios metodológicos, vinculados à forma de como serão tratados no currículo, bem como à lógica com que serão apresentados aos alunos.

O conteúdo base para esse estudo piloto foi o desporto coletivo Voleibol, pois como mencionado anteriormente foi onde conseguimos desenvolver a temática de forma consistente e com elementos até então não sistematizados em nenhuma literatura da área acerca desse desporto. Isto foi possível por meio do Projeto de Ensino “Princípios Orientadores para o Ensino do Voleibol”, no qual o olhar praxiológico foi o responsável por esta nossa perspetiva no ensino do voleibol. As bases dessa articulação teórico-metodológica dos Desportos Coletivos já foram discutidas por Ribas (2010) que aponta os processos interativos de leitura do jogo em relação aos companheiros e adversários como um dos elementos centrais que caracterizam os Jogos Desportivos Coletivos.

Como base para organizar e sistematizar o estudo foram utilizados os princípios metodológicos, referenciados na obra do Coletivo de Autores (1992): a) Confronto e contraposição de saberes, que corresponde ao confronto entre o senso comum e o saber científico para a reelaboração do pensamento; b) Simultaneidade dos conteúdos, ou seja, compreensão de que estes são dados da realidade, não podendo, pois, serem isolados; c) Espiralidade, quando o conhecimento não é tratado por etapas, mas sim representação do real no pensamento; d) Provisoriedade do Conteúdo, que vê o aluno enquanto sujeito histórico, rompendo com a terminalidade do conteúdo.

 

APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DE RESULTADOS

A partir dos cinco passos propostos por Saviani, apresentados em nosso método, optou-se por buscar a criação de uma proposta metodológica com a qual a PM poderá contribuir de forma relevante, principalmente no momento da instrumentalização junto aos alunos, pois, com base em sua estrutura, poderemos apresentar-lhes os elementos para que eles possam ter um bom entendimento acerca da lógica interna dos jogos e desportos, ou seja, que entendam os jogos e os desportos no contexto de suas normas e regras, bem como os papéis que são desempenhados por seus protagonistas dentro de cada um deles.

Em nosso entendimento, um jogo, ou uma modalidade desportiva, é único nas relações apresentadas. A escolha pelo desporto coletivo Voleibol foi feita por utilizarmos esta modalidade desportiva para aprofundar nossos conhecimentos em relação à PM. Através disso, buscamos os meios possíveis para que tenhamos um melhor entendimento das relações presentes dentro de tal modalidade. Assim, apresentamos metodologicamente um exemplo de aula, na 6ª série.

Conteúdo: Serviço no Voleibol

Objetivo: Apresentar e desenvolver o serviço no voleibol; caracterizá-lo a partir da PM, situando-o no jogo de voleibol; facilitar a compreensão da dinâmica do jogo de voleibol a partir do serviço.

1° Passo – Prática Social:

O Serviço no Voleibol se caracteriza por ser o Ponto de Partida das ações do jogo. O professor poderá apresentar sua importância, características, situá-lo no jogo de voleibol, bem como evidenciar os objetivos propostos para este tema. Como ponto de partida, no primeiro momento da aula, o professor poderá propor a livre experimentação do serviço, enquanto o aluno, a partir do seu entendimento e experiência, poderá realizar a ação de “rebater a bola para o outro lado do campo utilizando qualquer parte da mão ou antebraço” (zona de serviço ou próximo dela). É importante que seja observada a distância da região do serviço até à rede, já que muitos alunos não irão atingir o objetivo devido às limitações de força e modo de realização. Outro aspeto relevante neste momento é que o professor organize um grupo que deverá ficar recebendo a bola, simulando uma situação mais próxima da realidade de um jogo de voleibol.

2° Passo – Problematização:

Neste momento apresentaremos algumas questões que servirão como base para que se dê o aprofundamento em relação ao tema da aula. Os alunos deverão situar o serviço no jogo de voleibol assim como também entender sua dinâmica, para então compreender as distintas formas de execução e dificuldades dessa aprendizagem.

A seguir citamos alguns exemplos de questionamento:

- “Qual o entendimento dos alunos sobre o jogo de voleibol, e qual a importância do serviço para que o jogo aconteça‌”;

- “Qual o modo mais fácil e o mais difícil de servir e quais suas implicações para o jogo‌”;

- “Onde está situado o serviço no jogo de voleibol e qual a sua importância‌”;

- “Devemos observar algum elemento antes de executarmos o serviço‌”;

- “No momento em que formos detentores da técnica (ação motriz) necessária para se jogar o voleibol, será que teremos todas as respostas para o jogo, ou seja, somente isto é necessário‌”.

3° Passo – Instrumentalização:

1° Momento: investigação referente aos conhecimentos e experiências que os alunos apresentam acerca do voleibol e tema da aula; atividade durante a qual os alunos poderão executar o serviço segundo suas possibilidades, sem preocupação com o modo de como fazê-lo.

2° Momento: apresentaremos o serviço segundo a técnica “correta” de execução, bem como suas variações. Neste momento, aprofundaremos os elementos da Praxiologia Motriz para que os alunos tenham um bom entendimento acerca do sentido de suas ações no jogo, por exemplo, que, antes de executar o serviço, devemos observar a disposição da outra equipe e buscar os espaços vazios. Claro que, nesse momento, a maioria não terá ainda a capacidade de direcionar a bola para onde deseja, mas nada impede que os alunos desenvolvam essa consciência e compreendam a necessidade do aprimoramento do modo de execução da ação motriz e, aos poucos, consigam se valer desse recurso. Neste momento o professor poderá realizar um resgate histórico do serviço mostrando que, no início, o sentido dessa ação motriz se limitava a dar início ao jogo, inicialmente denominado de Mintonette (Barroso & Darido, 2010; Bojikian, 2003; Da Silva Matias & Greco, 2012; Marchi Junior, 2001), quando foi proposto pelo professor Willian Morgan como uma prática voltada para senhores (os comerciantes da época, vinculados à Associação Cristã de Moços), que buscavam uma prática desportiva coletiva em que não estivesse presente o contato físico e a grande quantidade de deslocamentos. Com o passar do tempo, e com a desportivização representada pelo processo de institucionalização (criação de federações e confederações, e sua inclusão nas Olimpíadas, na década de 1960), o serviço no voleibol foi desenvolvido e aprimorado, e hoje, no desporto institucionalizado, tem como principal objetivo dificultar a organização do ataque adversário. Pergunta-se: “Este objetivo do serviço é viável para o voleibol praticado em espaços de lazer‌”.

3° Momento: os alunos executarão o serviço tentando aproximar-se da técnica “correta” de execução e poderão experimentar suas variações (serviço por baixo, serviço por cima, etc.), tentando fazer uma relação entre o serviço executado livremente e o serviço aproximando-se da técnica, identificando as diferenças bem como as dificuldades e buscando meios para superá-las.

4° Momento: buscar despertar nos alunos a importância que o fundamento tem para o jogo de voleibol. Neste caso, por ser o início do jogo, caso não ocorra um bom serviço não haverá um bom jogo. Nesse momento, as dificuldades serão imensas, pois os alunos apresentarão deficiências em relação aos outros fundamentos do jogo. Por isso, o serviço deve ser facilitado; do contrário, a sequência do jogo ficará prejudicada. Outro aspeto que pode ser destacado junto aos alunos é a importância da coletividade na sequência do jogo, que pode ser demonstrada no exemplo da utilização dos três toques a que a equipe tem direito, para que o jogo não se torne um jogo de “pingue-pongue”, explicando aí a importância dos três toques.

5° Momento: desenvolvimento de atividades que tenham como objetivo principal o serviço, mas já inserindo outros elementos do jogo que serão tratados na sequência das aulas. Construção de atividades junto aos alunos, fazendo com que possam criar um jogo dentro das características únicas daquele ambiente no qual estão inseridos, possibilitando com isso que se tornem sujeitos daquela ação e não meros participantes.

4° Passo – Catarse:

É o momento da compreensão dos elementos propostos no início da aula, e amplia-se todo o conhecimento que o aluno já trazia acerca do tema, fazendo com que seu conhecimento se torne mais elaborado, quando, segundo Souza (2009), este passa a ser um elemento cultural capaz de transformação. Significa compreender que a transformação histórica é humana, i.e., que as mudanças do significado e dos modos de realização do serviço no voleibol são produções humanas e foram transformadas nas últimas décadas em função de interesses do Desporto institucionalizado, de alto rendimento, ao contrário da suposta origem histórica do voleibol, que era um jogo com fins de exercício físico e de convivência social. O mais interessante é que, muitas vezes, na prática livre do voleibol, quando realizado pelos alunos do Curso de Educação Física da UFSM, antes ou após as aulas de voleibol, quando o serviço passa a ser um elemento que dificulta a dinâmica do jogo, acontece uma alteração na regra (pactuada pelos próprios participantes): o serviço com objetivo de dificultar a organização do ataque adversário é substituído por um serviço que dê condições ao adversário de organizar a ação de receber e organizar o ataque, privilegiando a continuidade do jogo.

5° Passo – Prática Social:

Por fim, voltamos ao ponto de partida, o serviço, só que agora, detentores de um maior conhecimento acerca tanto das ações motrizes quanto de suas implicações na dinâmica do jogo de voleibol. Com isso já evidenciámos novos conhecimentos relativos ao serviço e aos fundamentos que deverão ser desenvolvidos na sequência desse conteúdo, destacando a importância da relação entre os momentos do jogo, de modo a que o aluno tenha uma melhor compreensão do processo.

Ao apresentarmos esta proposta, temos em mente a formação de alunos que, por sua consciência, possam perceber a importância de serem agentes reais na construção de seu caminho na sociedade, na qual poderão intervir para modificá-la se entenderem que a realidade em que vivem necessita de mudanças.

Essa relação também deve se dar dentro do âmbito escolar. Ilustramos tal afirmação através de um exemplo: partindo da hipótese de termos um aluno habilidoso que mostra facilidade na execução dos fundamentos e que, por isso, ele acredita ser o dono das ações, e procura intervir em quase todos os momentos do jogo, não deixando que seus colegas participem em nível de igualdade. Digamos que esse aluno estivesse presente neste exemplo de aula que propusemos anteriormente: acreditamos ser possível que ele compreenda, através dos elementos que serão apresentadas na aula, que por mais recursos que tenha individualmente, ele nunca poderá jogar sozinho. Haverá sempre a necessidade de seus colegas participarem ativamente das ações. No entanto, por ser o mais habilidoso, ele pode fazer com que os seus colegas participem ou pode negar essa participação a eles, no momento em que vai para o serviço e não possibilita a sequência do jogo, por exemplo. Acreditamos que esse entendimento só se dará no momento em que este aluno consiga compreender a importância do coletivo para a dinâmica do jogo em qualquer tipo de atividade, tanto na escola quanto na sociedade em que vive. A técnica (ou ação motriz) consiste num importante elemento de ensino em toda modalidade desportiva, pois passou por um processo de construção e evolução comprovada. O que destacamos é que, além da parte técnica, devemos aprofundar o conhecimento teórico e demonstrar ao aluno que ele, além de dominar a técnica, deve saber onde e quando utilizá-la da melhor forma possível, atendendo não só às suas necessidades como também às do grupo, situando-a e ressignificando-a historicamente. Assim, para Souza (2007), o entendimento da técnica é a de que:

"Não deverá restringir-se à simples prática motora e sim enquanto conhecimento elaborado no processo de desenvolvimento humano, científico e tecnológico. A apropriação da técnica, nesse sentido, significa o domínio do instrumental teórico-prático que os homens e as mulheres produziram na caminhada civilizatória para entender e transformar a natureza, a história, a sociedade e a si mesmo" (p. 196).

A PM vem apresentando importantes contribuições, principalmente nas interações presentes nos jogos e desportos (cooperação e oposição). Essas relações deverão ser apresentadas de forma mais clara no processo de ensino. Podemos citar o exemplo dos desportos coletivos em que a prática pedagógica consiste na ênfase do gestual técnico, geralmente fragmentado (ensino da técnica fora das interações de jogo). Temos ainda o exemplo das lutas, em que a ênfase também está centrada na repetição de gestos e golpes, sem situar essas técnicas nas interações de oposição e sem destacar a importância do processo de tomada de decisão e da leitura do adversário. Um exemplo muito bom é o apresentado por Collard: “[...] no tênis, durante muito tempo, imaginava-se que o êxito de um jogador passava pelas suas qualidades físicas ou técnicas... porém, como em todas as outras atividades sociomotrizes, é na interação com o outro que se decide a vitória” (Collard, 2008, p. 112).

Esses são apenas alguns exemplos de como o ensino dos jogos e desportos vem sendo desenvolvido de forma fragmentada, e que, desse modo, dificilmente teremos o entendimento das ações que estamos desenvolvendo e, principalmente, o entendimento do jogo ou desporto praticado. Estes aspetos são aprofundados por Ribas (2008) onde apresenta os principais argumentos teóricos que sustentam o conhecimento da Praxiologia Motriz.

Outro aspeto que devemos destacar é o fato de fazermos críticas à forma como o desporto vem sendo trabalhado no meio escolar e, em vez de utilizar meios para modificar essa realidade, utilizamos atividades que têm o mesmo caráter competitivo, excludente, discriminatório, etc. Por isso, a importância de entendermos a lógica interna das atividades que estamos propondo. É o que referenda Ribas quando se refere à ideia de jogo e desporto:

"Assim, não garantimos nossos objetivos simplesmente substituindo jogos por desportos e vice-versa. O jogo, por si só, não garante a construção de uma boa proposta pedagógica. Existem jogos competitivos, violentos e preconceituosos. Essas leituras é que devemos fazer também, assim como normalmente é feito com o desporto" (Ribas, 2005, p. 116).

Para isso a PM apresenta os conceitos de forma clara e consistente. Alguns desses conceitos foram desenvolvidos ao longo de texto e vários outros poderíamos aprofundar em outro momento. O importante é o entendimento de que, cada vez mais, se vem tornando um importante pólo de compreensão dos jogos e desportos e um consequente facilitador do ensino.

A articulação entre esses dois temas vem nos dar a possibilidade de modificação da forma como os jogos e desportos vêm sendo apresentados na escola. Se pretendêssemos somente isto, talvez não fosse necessária a utilização da ACS. Porém, entendemos que essa forma de trabalho só será modificada no momento em que os alunos tiverem consciência da sociedade na qual eles estão inseridos, sociedade esta que os submete a suas constantes modificações, visando atender a suas necessidades capitalistas. Por esse motivo, estão ocorrendo tantas modificações nas regras de funcionamento de diferentes desportos. O próprio voleibol foi adaptado para que pudesse oferecer maior previsibilidade de início e fim, podendo ser inserido em programações. Referimo-nos ao fato de no voleibol ter sido incluída a regra referente ao sistema de pontuação no ano de 2000 (Rally Point System), em que todo erro é ponto (Da Silva Matias & Greco, 2012).

Por outra via, está havendo “promoção e incentivo” de diversas modalidades que até há pouco tempo nem sequer eram consideradas modalidades desportivas, mas sempre tendo como foco a possibilidade de vendê-las ou de torná-las mercadoria. Por esse motivo, a “comercialização” cada vez maior de atletas que vendem todo tipo de material referente à sua modalidade. Estamos diante da banalização de algumas atividades que anteriormente tinham um significado diferente desse caráter mercadológico que vai se embrenhando no meio desportivo e tomando conta de todos os espaços, fazendo com que o desporto cada vez mais se torne uma mercadoria para ser consumida pelo maior número de pessoas, para que a “insaciável” sociedade capitalista continue se alimentando e possa ampliar ainda mais suas ações de cooptação de modalidades possivelmente rentáveis.

Por outra via, tais práticas desportivas institucionalizadas apresentam: a) características de lógica interna (meio padrão estável); b) comparações regulamentares objetivas, em sua maioria; c) lógica exacerbada da vitória, fomentando a competição; d) estruturas estáveis de funcionamento, destacando ainda mais a competição; e) impossibilidade de os participantes (atletas) interferirem nos rumos das regras, estando apenas sujeitos a elas; f) impossibilidade de os adversários passarem à função de companheiros da mesma equipa; g) a busca pela vitória a qualquer preço, mesmo que esteja em jogo conceitos como saúde, bem-estar social, ética, dentre outros. Enfim, através do olhar praxiológico é possível aprofundar as críticas aos desportos institucionalizados, na forma como eles estão sendo trabalhados na escola, pois toda e qualquer crítica deve ser bem fundamentada. Esta fundamentação, entretanto, somente a teremos no momento em que tivermos uma melhor compreensão daquilo que pretendemos ensinar.

A PM, portanto, poderá nos ajudar a entender as lógicas de apreensão do saber que se apresentam, de maneira a possibilitar que possamos tomar posição frente a elas em nosso processo de ensino. Souza (2007) citando Kopnin (1978) declara que o dispositivo formal do pensamento elaborado através da lógica formal, e que se encontra presente nas práticas tradicionais e tecnicistas da Educação Física, torna-se incapaz de explicar, em sua totalidade, o desenvolvimento da apreensão do conhecimento. Por outro lado, o dispositivo da lógica dialética nos possibilita revelar o conhecimento em seu próprio processo, apreendendo, no pensamento, a dinâmica contraditória da realidade.

 

CONCLUSÕES

A Abordagem Crítico-Superadora caracteriza-se por ser uma leitura crítica da Educação Física em que, com base em seus pilares, aponta para a necessidade de mudanças em nossa sociedade. Acreditando que a sociedade capitalista não possibilitará essa mudança, a ACS defende a criação de uma sociedade socialista, cujas diferenças atualmente existentes entre os indivíduos poderiam ser minimizadas. Reconhecemos que uma mudança conjuntural é hoje muito difícil de acontecer, porém as mudanças que estão ao nosso alcance e nas quais acreditamos devem ser buscadas constantemente.

A necessidade de modificação da Educação Física dentro do meio escolar está posta. No entanto, da forma como ela vem sendo trabalhada, pode-se prever que é uma questão de tempo até que ela seja declarada sem utilidade para a escola. Será que a disciplina poderá ser eliminada do currículo escolar‌

Os fatores que contribuem para que isto se realize são vários; alguns já foram aqui citados, mas é evidente a necessidade cada vez maior de que preparemos os alunos para o mercado de trabalho. Este tem sido um importante fator para justificar a isenção de alunos às aulas de Educação Física. Essa justificativa tem funcionado muito bem para o esvaziamento das aulas, principalmente junto ao ensino médio, e como essa preparação está começando cada vez mais cedo, não se deve estranhar que, em pouco tempo, ela também atinja o ensino fundamental, nas séries finais.

Estamos perdendo força, pois não nos articulamos para lutar contra essa realidade; não percebemos que as transformações que almejamos somente serão alcançadas no momento em que nosso coletivo se mobilizar para que as mudanças ocorram. Se de fato pretendemos fazer a diferença, isso acontecerá apenas quando conseguirmos nos mobilizar e lutar pela mudança da realidade em que vivemos, onde a competição e o individualismo são supervalorizados, fazendo com que cada vez mais nos isolemos do mundo e pensemos somente em nossas necessidades. Dessa forma, as mudanças dificilmente acontecerão e cujas tentativas serão facilmente controladas e contornadas pelo sistema, isto porque o modo capitalista que nos rege direciona os desejos e as ações de modo hegemónico.

A utilização da Praxiologia Motriz neste estudo parte do princípio de que, ao acreditarmos na necessidade de mudança, partindo do modo como o desporto vem sendo tratado dentro da escola, poder-se-á tomá-la como ferramenta estratégica no processo de alteração da realidade. Com ela, o desporto é transferido da esfera competitiva para aquela em que ele pode e deve ser utilizado como forma de ampliação do conhecimento da cultura corporal, já que os alunos poderão experienciar e aprimorar os mais variados gestos técnicos, aproximando-se dos, até então, empregados nas diferentes modalidades desportivas. Além disso, conseguirão ter um melhor entendimento das dinâmicas de funcionamento de cada um, bem como do porquê de algumas ações específicas de cada modalidade. O aprofundamento junto ao conhecimento praxiológico pode dar subsídios para que possamos desenvolver o desporto de outra forma junto aos alunos, enfatizando as relações exigidas dentro de cada modalidade desportiva, bem como da criação de jogos que possibilitem a superação dos modelos desportivizados para tornar mais elaboradas tais práticas. Esta é, portanto, apenas uma das possibilidades de aproximação a que chegamos neste estudo.

O entendimento e a compreensão da lógica interna dos jogos e desportos indicam formas de superarmos o modo como os alunos veem o jogo, pois deixamos de lado o conhecimento do senso comum já que a praxiologia propõe critérios concretos e consistentes em relação aos desportos.

Esperamos que este estudo possa, como proposta, vir a se tornar mais uma possibilidade de ensino na Educação Física junto ao meio escolar. O ideal seria que tivéssemos conseguido ampliá-lo, inserindo um período prático; porém, como isso não foi possível, fica aqui uma proposta de continuidade do estudo, partindo para essa nova etapa, a qual carece de mais embasamento. Assim, a continuidade da pesquisa possibilita averiguar se o que estamos teorizando neste momento realmente é relevante ou se nossas ideias se perderiam junto à prática docente como algo de difícil compreensão junto aos professores, e consequentemente para os alunos. Entretanto, acreditamos que nessa nova etapa, que fica em aberto, será possível demonstrar nossos argumentos e reafirmar a possibilidade de aproximação das duas temáticas com o intuito de um melhor embasamento no ensino dos jogos e desportos.

 

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Agradecimentos:
Os autores agradecem a Josefina Neves Mello pela revisão ortográfica do artigo segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Conflito de Interesses:
Nada a declarar.
Financiamento:
Nada a declarar.

Artigo recebido a 22.04.2013; 1ª Revisão 05.09.2013; 2ª Revisão 07.02.2014; Aceite 28.03.2014

 

 

*Autor correspondente: Laboratorio de Praxiologia Motriz, Instituto Nacional de Educación Física de Cataluña; Pda. Caparrella, s/nº, CP 25191 - Lleida, Espanha; E-mail: pab_aires@yahoo.com.br

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