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Tékhne - Revista de Estudos Politécnicos

versão impressa ISSN 1645-9911

Tékhne  n.13 Barcelos jun. 2010

 

Vida indevida?

As acções por wrongful life e a dignidade da vida humana.

 

Fernando Dias Simões[1]*

Instituto Politécnico do Cavado e de Ave

fsimoes@ipca.pt

 

Resumo

No presente artigo analisamos o problema de saber se uma pessoa que encare a sua própria vida como um dano pode apresentar uma pretensão indemnizatória contra o profissional médico que permitiu o seu nascimento (wrongful life). A doutrina maioritária defende que a atribuição de uma indemnização pressuporia reconhecer à pessoa um “direito a não nascer”, entendendo que tal direito não existe. No entanto, neste tipo de acções não é a vida, em si mesma, que consubstancia o dano, mas sim a vida com deficiência. Entendemos que as acções de wrongful life não contendem com a indisponibilidade da vida humana, sendo justamente o respeito pela dignidade da vida humana a impor a atribuição de uma indemnização que assegure uma vida com um mínimo de condições.

Palavras-chave: Vida errada, nascimento indevido, responsabilidade médica.

 

Abstract

In this article we analyze the problem of whether a person who considers his own life as damage may file a complaint against who allowed his birth (wrongful life). The dominant doctrine argues that the award of such compensation would recognize the person a “right not to be born”, defending that such right does not exist. However, in this type of claims life is not the damage itself, but living with disability. We sustain that wrongful life actions do not contend with the inalienability of human life, and that the respect for the dignity of human life enforces the award of compensation to ensure life with a minimum of conditions.

Keywords: wrongful life, wrongful birth, medical liability.

 

1.  O problema: as wrongful life claims

A fabulosa evolução da ciência médica nas últimas décadas tem propiciado campo fértil para o surgimento de complexos e intrigantes problemas. O desenvolvimento de novos métodos de diagnóstico pré-natal permitiu estender a intervenção médica até aos confins do início da vida. O progresso da ciência jurídica, lado a lado com o aperfeiçoamento da ciência médica, fomentou o surgimento de novas facti-species lesivas em que se procura a adequada tutela dos dois centros de imputação de interesses em causa: os progenitores e o nascituro (TEIXEIRA PEDRO, 2008: 272 s). Colocou-se a possibilidade de configurar o acto do nascimento ou a própria vida enquanto “dano”. Põe-se a questão de saber se uma pessoa que sinta a sua própria vida como um prejuízo pode deduzir uma pretensão indemnizatória contra quem permitiu o seu nascimento.

A questão foi suscitada pela primeira vez nos Estados Unidos, sendo designada pela expressão wrongful life, traduzível à letra por “vida indevida ou vida errada”. A figura assenta tipicamente no nascimento de uma criança portadora de graves malformações, passíveis de serem detectadas na fase pré-natal, de acordo com o estado da arte médica. Nestes casos, a pessoa com deficiência pretende agir judicialmente[2] contra os médicos, outros profissionais ou instituições de saúde acusando-os de, com dolo ou negligência, não terem detectado tais anomalias no âmbito do diagnóstico pré-natal, ou não terem informado devidamente os pais, impedindo-os, assim, de interromper licitamente a gravidez[3].

A expressão wrongful life foi utilizada pela primeira vez em 1963, no caso Zepeda vs. Zepeda, por um tribunal do Illinois. O uso desta nomenclatura gene­ralizou-se por contraposição ao ilícito da “morte indevida” (wrongful death), pretendendo significar qualquer acção em que se invocasse a vida como dano. Enquanto nas acções por wrongful death se reclama que foi posto termo a uma vida que deveria ter continuado, nas acções por wrongful life alega-se que uma vida continuou quando deveria ter terminado (COHEN, 1978: 212). Estamos, deste modo, perante uma questão diametralmente oposta à pergunta de saber se alguém, representado pelos seus sucessores, pode invocar a sua própria morte como dano. Neste tipo de casos não nos deparamos com o “dano morte” mas com o que pode chamar-se o “dano vida” (CARNEIRO DA FRADA, 2009: 260). A terminologia acabou por ser refinada, distinguindo consoante a identi­dade do demandante, reservando a expressão wrongful life para as acções propostas pela própria criança. Com efeito, neste tipo de acções quem demanda o médico ou instituição hospitalar é a própria criança, ainda que através de representantes legais, e os danos que se invocam são os emergentes do próprio nascimento: a vida com a deficiência, que não existiria caso o médico tivesse sido diligente.

No âmbito das acções por wrongful life, podemos distinguir dois tipos de acções, consoante a identidade do demandado.

Por um lado, as acções instauradas pela criança contra um ou ambos os progenitores com fundamento numa procriação levada a cabo contra indicação médica, contra o “aconselhamento genético”. Em resultado deste comportamento, a criança nasceu fortemente diminuída física e/ou intelectual­mente. É o que sucede, por exemplo, nas acções propostas por filhos de mães toxicodependentes, que decidem continuar com a gravidez contra a indica­ção médica, ou nos casos de mães que recusam tratamen­tos médicos indispensáveis.

Por outro lado, as acções propostas pela criança contra os médicos por estes não terem fornecido aos pais as informações necessárias que teriam levado, em princípio, à interrupção da gravidez, evitando o seu nascimento. Esta é a típica wrongful life claim, o tipo de acção mais frequente. Ainda que os pais intervenham como representantes legais do filho, pedem uma indemnização por danos sofridos pelo filho. O que se pretende indemnizar é o dano sofrido pela própria criança, por ter nascido com graves deficiências físicas ou mentais, deficiências que os médicos não detectaram ou sobre as quais não informaram convenientemente os progenitores.

Deve salientar-se que não estamos perante malformações causadas pelos médicos, antes perante deficiências que não foram comunicadas aos pais, sendo que estes, se tivessem sido devidamente esclarecidos, teriam optado por abortar. Não se pode afirmar que a malformação resulte da conduta reprovável do médico – ela deriva de um facto natural. O médico não causa a má-formação, antes não informa a mãe da sua existência. O médico não se apresenta responsável pela implantação da deficiência, que surge normalmente logo desde o início da vida pré-natal. No entanto, a omissão do esclarecimento sobre essa deficiência é tida como ilícita. O comportamento alternativo lícito do médico teria evitado o nascimento e, deste modo, a vida gravemente deficiente (CARNEIRO DA FRADA, 2009: 260). De acordo com DIAS PEREIRA (2004: 376 s) isto pode acontecer de três modos distintos: primeiro, quando o médico não informa (ou informa insuficientemente) os progenitores da possibilidade de a criança vir a padecer de uma doença congénita grave; segundo, quando há negligência na selecção de um embrião para implantação no processo de procriação assistida (diagnóstico pré-implantatório negligente); e terceiro, quando o médico não avisa a mãe de que o feto sofre de uma malformação grave.

É necessário, por outro lado, que a ciência médica não disponha de remédio ou cura para a malformação presente no feto. Caso contrário, não estaremos perante uma situação em que a negligência do médico tenha privado os pais de exercerem a faculdade de abortar mas antes perante um cenário diferente, em que o comportamento do médico impediu que a criança nascesse saudável. Nos casos típicos de wrongful life, não existe a opção de que a criança nascesse saudável: ou nascia com deficiência, ou não nascia (MACÍA MORILLO, 2007: 20).

O impulso decisivo para a difusão e discussão mediática deste problema no contexto europeu foi dado pelo célebre arrêt Perruche, da Cour de Cassation francesa, de 17 de Novembro de 2000). Nicolas Perruche nasceu com gravíssimas mal­formações, por força da rubéola contraída pela mãe. O Tribunal da Cassação, reunido em assembleia plenária, deci­diu que a criança tinha direito a uma indemnização porque as faltas cometidas pelo médico e pelo laboratório tinham impedido a possibilidade de a mãe interromper a gravidez e assim evitar o nascimento do filho. Pela primeira vez, um tribunal superior concedia uma indem­nização à criança deficiente pelo simples facto de esta ter nascido.

Este caso desencadeou uma viva discussão no seio da sociedade francesa e europeia. As associações de deficientes encararam esta decisão como uma afronta aos seus direitos, pondo em causa o estatuto das pessoas com deficiência e incentivando a prática do aborto. Estalou o debate em volta da questão do aborto, do eugenismo, da função e limites do diagnóstico pré-natal. Os médicos obstetras e especialistas em diagnóstico pré-natal começaram a enfrentar dificuldades acrescidas para segurar a sua responsabilidade civil. Em consequência do clima de agitação, os ecografistas decidiram suspender a sua actividade até que o legislador regulasse a sua responsabilidade (DIAS PEREIRA, 2004: 382).

Em reacção ao alvoroço jurídico e social provocado por este affaire, o legislador francês aprovou a Lei n.º 2002-303, de 4 de Março de 2002, sobre os direitos dos doentes e qualidade da saúde, que determina no artigo 1º a regra base de que “nin­guém pode tirar partido de um prejuízo pelo facto de ter nascido”. No artigo 2º estipula-se que “a pessoa que nasceu com um defeito devido a um erro médico pode obter a reparação do seu dano quando o autor faltoso provocou directamente o defeito ou o agravou ou não permitiu tomar as medidas susceptíveis de atenuação”. Distingue-se assim o chamado “dano pré-natal” (pre-natal injury, segundo a doutrina inglesa) que merece tutela delitual, do “dano da vida inde­vida” (wrongful life) cuja tutela é legalmente afastada (DIAS PEREIRA, 2004: 385). Deixou, deste modo, de poder ser indemnizado o “prejuízo de viver”. O legislador francês pretendeu estancar as acções de wrongful life e remeter para o Direito social e para a solidariedade nacional o apoio aos cidadãos deficientes.

O problema da wrongful life é digno de uma reflexão aprofundada por uma série de motivos.

Em primeiro lugar, pela sua importância prática, pois este tipo de reclamações surge com cada vez maior frequência. A proposição deste género de acções é crescentemente potenciada pelo desenvolvimento das potencialidades de escrutínio em diagnóstico pré-natal e pelas mudanças sociais e legais ocorridas nas últimas décadas. Tornou-se cada vez maior a possibilidade de prever problemas antes da própria concepção (através da análise da história genética dos pais) ou de determinar com precisão adequada depois da concepção (exames in utero). Em segundo lugar, esta questão é relevante pois, tocando a sensível temática dos direitos de personalidade, está intimamente ligada à tutela da dignidade da pessoa humana, ao direito de procriar enquanto densificação do direito ao livre desenvolvimento da personalidade, suscitando acesa discussão sobre eventuais intuitos eugénicos. Por último, trata-se de um tipo de acção que permite apreciar a capacidade do instituto da responsabilidade civil para lidar com todo um novo conjunto de dilemas ético-jurídicos, cujas fronteiras nem sempre são claramente perceptíveis (NUNES VICENTE, 2009: 117 s).

Em Portugal esta questão ainda não foi objecto de apreciação pelo Tribunal Constitucional. Talvez por isso, ainda não mereceu entre nós um tratamento aprofundado do ponto de vista do Direito Constitucional e da doutrina dos direitos fundamentais, excepção feita ao trabalho de CARNEIRO DA FRADA (2009). Atendendo à profunda ligação entre o Direito Civil e o Direito Constitucional, consideramos que a ponderação da figura não pode ser apartada da dogmática dos “direitos fundamentais”. O problema da wrongful life é, no seu cerne, de natureza jurídico-privada, mas não é imune à Constituição, uma vez que os dados jurídico-constitucionais têm relevância normativa na avaliação e decisão de litígios jurídico-privados (CARNEIRO DA FRADA, 2009: 283 s).

Do quadro normativo constitucional resulta, desde logo, no seu primeiro preceito, que “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”. O n.º 1 do art. 24º da Constituição dispõe que “a vida humana é inviolável”. Para além disso, o n.º 1 do art. 25º estabelece que “a integridade moral e física das pessoas é inviolável”. Estes direitos, guindados à natureza de direitos fundamentais, possuem eficácia imediata, seja qual for o tipo de relação jurídica em causa, nos termos do art. 18º da lei fundamental (“os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas”). O direito à vida, como direito fundamental da pessoa, radica na personalidade. Os direitos fundamentais e os direitos de personalidade que lhe correspondem não são, no seu núcleo, renunciáveis. A disponibilidade do direito à vida não seria compatível com a dignidade da pessoa humana (GOMES CANOTILHO, 2002: 464).

Suscitando a ponderação e aplicação das regras do instituto da responsabilidade civil, a questão em análise levanta sérios problemas de difícil solução, não só ao nível do apuramento do nexo de causalidade mas também da identificação e determinação do dano sofrido e da definição do conteúdo das leges artis, à luz dos progressos e limitações da ciência médica. A responsabilidade civil é frequentemente utilizada como forma de protecção da vida e da sua qualidade contra lesões físicas. O problema em presença passa por saber se o Direito tutela um (eventual) interesse na morte. O “dano da vida” é distinto do problema das lesões que podem atingir a criança na fase pré-natal e das suas consequências. Neste último caso coloca-se o problema de saber se uma deficiência resultante dessa lesão pode constituir um dano indemnizável. No caso de que nos ocupamos, diversamente, é a própria vida que é tida como dano. A pergunta que se coloca é a seguinte: será admissível a existência de “um direito à não existência” e de uma indemnização pela sua violação?

 

2. Wrongful life e wrongful birth

Próximo da figura da wrongful life, por identidade das circunstâncias que estão na sua origem (erro ou negligência profissional, que a não existir poderia ter possibilitado uma interrupção voluntária da gravidez) situa-se um outro, conhecido como wrongful birth. Também nas acções de wrongful birth, traduzíveis à letra por expressões como “nascimento indevido” ou “nascimento errado”, releva o facto de o evento lesivo ter conduzido a um nascimento indesejado. Os dois tipos de acções enquadram-se naquilo que os Autores anglo-saxónicos apelidam de birth torts (ilícitos civis resultantes do nascimento). De acordo com a doutrina norte-americana, as acções de wrongful life e de wrongful birth distinguem-se essencialmente em dois aspectos: quanto à legitimidade activa e quanto à sua virtual procedência (ÁLVARO DIAS, 1996: 380 s).

A primeira grande diferença entre os dois tipos de acções prende-se com a identidade do demandante (MOTA PINTO, 2005: 217 s) (NUNES VICENTE, 2009: 120). Nas wrongful birth actions a acção é intentada pelos pais da criança, não enquanto seus representantes legais, mas em nome próprio. Estas acções são propostas pelos progenitores contra os profissionais médicos em virtude do nascimento de uma criança não desejada, exigindo uma indemnização pelos danos resultantes da gravidez e da educação da criança. Neste tipo de acções os pais invocam os danos por eles sofridos, sejam danos patrimoniais ou morais. Estamos perante uma lesão do direito às informações necessárias para decidir sobre a procriação. Desde que são oferecidos serviços de diagnóstico pré-natal e a lei considera a interrupção da gravidez não punível em certos casos, a grávida tem direito ao funcionamento normal e eficaz desses serviços para obter as informações relevantes sobre o andamento da gestação, de tal modo que possa beneficiar do regime da interrupção voluntária da gravidez quando for caso disso. Mesmo antes do nascimento e da verificação de outros danos no feto, a grávida já sofreu uma diminuição do seu direito à autodeterminação informada – uma lesão provocada pela má prática do médico (GUILHERME DE OLIVEIRA, 2005: 231).

O segundo aspecto que distingue claramente as acções por wrongful life das acções por wrongful birth prende-se com o seu êxito prático: enquanto as primeiras têm sido geralmente julgadas improcedentes, as segundas têm registado um assinalável êxito junto dos tribunais.

A quase totalidade da doutrina e da jurisprudência europeia admite esta acção, concedendo aos pais o direito a uma indemnização por violação do seu direito à autodeterminação (em especial da mãe), concretamente no que toca ao planeamento familiar. O direito à autodeterminação é um direito de personalidade, cuja tutela é abrangida pelo direito geral de perso¬nalidade reconhecido no art. 70º do nosso Código Civil, para além de ter acolhimento no texto constitucio¬nal (art. 26º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa).

De uma análise das decisões jurisprudenciais dos tribunais europeus e norte-americanos resulta que, quando confrontados com estas inquietantes demandas, os tribunais tendem a conceder indemnizações pelas des¬pesas excepcionais de sustento de uma criança deficiente, e uma indemnização pelos danos morais dos pais, mas rejeitam a pre¬tensão indemnizatória apresentada pela criança, pelo dano pessoal de ter nascido (DIAS PEREIRA, 2004: 378 ss).

No quadro do Direito português vigente estão reunidos os pressupostos legais para responsabilizar civilmente os médicos que, na área da medicina pré-natal, violem negligentemente as leges artis ou não cumpram o seu dever de esclarecimento e informação. Essa responsabilidade deverá abranger os danos patrimoniais (especialmente, os custos adicionais resul¬tantes da deficiência) causados aos pais e à criança nascida, bem como os danos não patrimoniais, resultantes da privação da possibilidade de praticar licitamente a interrupção da gravidez. Os progenitores podem também reclamar uma indemnização pelo desgosto e sacrifício que pode representar o nascimento de uma criança deficiente (DIAS PEREIRA, 2004: 391).

Entre nós, apenas SOARES PEREIRA (2009: 298) formula dúvidas sobre a possibilidade de intentar acções por wrongful birth. No seu entender, “se é indubitável que o nascimento de uma criança comporta alterações no equilíbrio e no estilo de vida dos progenitores, também o normal é que tal nascimento consubstancie uma ocasião de alegria na própria família. É certo que os progenitores têm direito a uma paternidade consciente e responsável. Mas repugna a consideração do nascimento de um filho como dano, especialmente como não patrimonial”. O Autor lembra, citando FAVILLI, que “não se encontra fundada e motivada a «crismação» da inviolabilidade de um tal direito no sentido de uma freedom of choice, reconhecida nos EUA como garante do direito ao aborto”.

 

3. Contra: a indisponibilidade do direito à vida

Como vimos, nos casos de wrongful life a pessoa com deficiência pretende agir judicialmente contra os médicos acusando-os de, com dolo ou negligência, não terem detectado anomalias detectáveis no âmbito do diagnóstico pré-natal, ou não terem informado devidamente os pais, impedindo-os, assim, de interromper licitamente a gravidez.

A primeira reacção de quem é confrontado com uma acção em que se reclama contra o nascimento ou contra a vida não pode deixar de ser a estranheza. Há quem sustente que não é possível haver unanimidade nesta matéria, porque, para além da questão jurídica, estão em causa concepções morais, filosóficas, reli­giosas, económicas e políticas (PINTO MONTEIRO, 2006: 132). Algumas decisões entenderam mesmo que os tribunais não eram as instituições adequadas para resolver a questão, pois esta levantava problemas morais e não jurídicos. O problema era mais teológico e filosófico que legal (assim, por exemplo, um tribunal da Califórnia no caso Stills vs Gratton, em 1976). Outros defendiam que a admissibilidade deste tipo de acções deveria ser deixada ao cuidado do legislador, por a noção de wrongful life ser um “conceito radical” (caso Zepeda vs. Zepeda, já referido).

É evidente que os tribunais têm legitimidade e competência para se pronunciarem sobre este problema. A moral, a ordem pública e a lei estão constantemente entrelaçadas. Cabe ao legislador reflectir as mudanças de perspectiva da sociedade. No caso Superintendent of Belchertown State School vs. Saikewicz, de 1977, o Supreme Court do Massachusetts reconheceu que quando estamos perante problemas de vida e morte, a lei não pode separar-se da moralidade.

Embora este problema levante questões de vária ordem, vamos debruçar-nos apenas sobre o plano jurídico. Esgrimem-se argumentos contra e a favor, todos eles de grande pertinência. Pois bem: iremos dirigir a nossa atenção apenas para um dos pontos que se localiza no centro da discussão – a contrariedade (ou não) deste tipo de acções com o valor da vida e com a dignidade do ser humano.

Um dos principais argumentos invocados contra a admissibilidade das acções de wrongful life é o de que a reparação de danos próprios da criança pressuporia reconhecer-lhe um “direito a não nascer” ou um “direito à não existência”, direito que não tem qualquer consagração legal (MOTA PINTO, 2005: 220), (PINTO MONTEIRO, 2002: 383 ss). Esta posição encara o dano sofrido pela criança como o “dano por ter nascido”, assentando no pressuposto de que a criança reclama, com o pedido indemnizatório, que “teria sido preferível a não existência à existência em tais circunstâncias” (ÁLVARO DIAS, 1996: 380). De acordo com a doutrina dominante, pedir essa reparação seria pedir ao Direito que considerasse a morte preferível à vida deficiente, o que seria de todo impossível, por contrariedade aos pilares de um sistema jurídico civilizado. Seria ilógico um indivíduo reclamar que não deveria existir uma vez que a public policy favoreceria sempre a vida sobre a não-existência. Os Autores que defendem que estas acções são contrárias aos princípios da ordem pública citam frequentemente filósofos gregos, a Bíblia ou os ditames da providência e do destino. Outros referem que o direito à vida é inalienável (COHEN, 1978: 223).

A maioria dos Autores que centra o problema na identificação da “vida como dano” rejeita frontalmente este tipo de acções. Defende-se que tal identificação é contrária ao próprio conceito de dano e que é impossível considerar como dano aquilo que é um benefício. Defender que a própria vida é um prejuízo corresponderia a um acto de disposição da própria vida. Pretender que a própria vida é, sem si mesma, um dano para com base nisso aceder a uma indemnização seria juridicamente inconcebível, porque inconciliável (CARNEIRO DA FRADA, 2009: 271).

Por outro lado, as regras da responsabilidade civil obrigam-nos a comparar a situação em que o lesado se encontra com a situação em que estaria se não tivesse existido o facto danoso, de acordo com a teoria da diferença. Se alguém alega um dano para obter uma indemnização, quer sempre prevalecer-se da situação que existiria se não tivesse ocorrido o evento conducente à reparação (veja-se o art. 562º do Código Civil). Deste modo, somos obrigados a ter em conta a alternativa, que neste caso corresponde a um não-ser. Como refere STOLKER, “in wrongful life claim the child is forced by the rules of the game to compare its handicapped existence with non-existence” (apud NUNES VICENTE, 2009: 133). Ora, nos casos em análise não existiria um dano, pois não se pode comparar a existência com deficiência com a não existência. Seria inacei­tável a invocação de um dano consubstanciado na própria vida: a criança não poderia afirmar preferir não ter nascido, a nascer com a deficiência, sob pena de a comparação do dano actual ser feita com o da não existência, impossível de quantificar. O Direito não dispõe de critérios para calcular o valor pecuniário do prejuízo de ter nascido.

No caso Gleitman v. Cosgrove, de 1967, o New Jersey Supreme Court negou o direito da criança a uma indemnização por falta de danos reconhecíveis: o demandante estaria a exigir que se medisse a diferença entre a sua vida com deficiência contra “the utter void of non-existence”, sendo impossível determinar tal diferença. Ao alegar que nunca deveria ter nascido, a criança torna logicamente impossível ao tribunal medir os seus alegados danos, uma vez que é impossível efectuar a comparação requerida pelas medidas de reparação de danos. Uma vez que o dano causado à criança é a sua própria vida, os tribunais encaram a sua tarefa como sendo a de medir a diferença entre a não-existência (a posição do demandante se não fora a negligência do médico) e a vida com deficiência (a posição do demandante após a negligência do médico).

A doutrina portuguesa defende maioritariamente a necessidade de distinção entre o pedido indemnizatório que é formulado pelos pais (wrongful birth) e o pedido deduzido pela própria criança (wrongful life), defendendo a rejeição deste último. O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Junho de 2001 foi a primeira (e até à data, única) decisão do nosso tribunal superior sobre a questão da wrongful life. Para além de outras questões, sobre as quais se debruçou, o Supremo concluiu que o que estava verdadeiramente em causa era o direito à não existência, concluindo que este direito não pode ser configurado legalmente[4].

O Supremo Tribunal entendeu que os pais teriam, eventualmente, o direito à interrupção da gravidez, mas não era esse o direito que estava em discussão, uma vez que o Autor era o próprio filho. De acordo com o aresto, a questão, tal como colocada, partia do pressuposto de que a criança afirmava não querer existir, reclamando o direito a uma indemnização por isso acontecer. Nas palavras dos Conselheiros, “tal direito, que não encontra consagrações na nossa lei, mesmo que exista, não poderá ser exercido pelos pais em nome do filho. Só este, quando maior, poderá, eventualmente, concluir se devia ou não existir e só então poderá ser avaliado se tal é merecedor de tutela jurídica e de possível indemnização”. As acções intentadas pelos filhos pelo “dano de ter nascido” só poderão, deste modo, ser intentadas pelos filhos quando a lei vigente lhes conceder o poder de pleitearem por si próprios.

Neste caso estava sob análise um pedido de indemnização por danos patrimoniais e morais sofridos pela própria criança. No entanto, o tribunal referiu que problema seria diferente se os autores da acção fossem os pais, e se o pedido de indemnização dissesse respeito aos danos sofri­dos por estes. Deste modo, embora recusando o pedido indemnizatório tal como formulado, o Supremo Tribunal de Justiça deixou em aberto a hipótese de uma futura wrongful birth action ou de uma acção por wrongful life, quando o Autor atingir a maioridade.

Este acórdão decidiu em conformidade com a doutrina dominante no Direito comparado, sendo aplaudido pela generalidade da doutrina portuguesa que se ocupou do problema. No entender de PINTO MONTEIRO (2006: 137), relator do aresto, o que estava em causa nesta acção era o “direito à não existência; o direito a não nascer (…)”. Ora, no seu entender, “o nosso ordenamento jurídico reconhece e tutela o direito à vida, bem como outros direitos de personalidade, mas não tutela o direito à não existência. Mesmo que, por imposição legislativa, se admita o direito à não vida, como será o caso do suicídio ou da eutanásia, ainda assim, sempre o caso em análise ultrapassaria esses limites”.

SOARES PEREIRA (2009: 299), na esteira de ÁLVARO DIAS (2001: 500 ss) entende que as acções por wrongful life levantam muitas dúvidas quanto à reparação de danos não patrimoniais. No seu entender, “se a invocação ou defesa de um direito a não nascer («the right not to be born»), por se entender que a vida em certos casos não vale a pena ser vivida, poderá por vezes ter uma componente altruísta, não menos verdade é que esse argumento também tem muito de «instinto de sobrevivência dos pais». Por outro lado, não é possível comparar a existência com a não existência. Assim, conclui, com ÁLVARO DIAS, que a “presunção a favor da vida não pode deixar de ser o critério rector”.

Nesta óptica, as acções por wrongful life seriam inaceitáveis, uma vez que a dignidade humana proibiria a degradação da vida a um sem-valor. O titular da vida estaria impedido de reclamar uma indemnização pelo dano da própria vida, uma vez que o direito à vida seria irrenunciável. Embora esta irrenunciabilidade não encontre apoio directo no texto constitucional, o direito à vida, enquanto direito de personalidade máximo, seria absolutamente indisponível, uma vez que qualquer restrição voluntária ao mesmo seria sempre contrária aos princípios da ordem pública, nos termos do art. 81º, n.º 1 do Código Civil.

Alguns Autores, embora rejeitando as acções por “vida indevida”, reconhecem a contrariedade de valorações com a atribuição de uma indemnização aos pais. Com efeito, parece pouco coerente reconhecer o direito de indemnização aos pais pelo nascimento da criança e não o fazer em relação à própria criança que é quem, afinal, sofre todas as consequências da actuação negligente ou dolosa do médico. Assim, por exemplo, MENEZES CORDEIRO (2007: 332) entende que a solução estará no alargamento dos escopos da responsabilidade civil e da tutela da confiança na execução dos contratos, reconhecendo uma indemni­zação aos pais por violação do contrato e do dever de informar.

 

4. A favor: a não contrariedade ao valor da vida

A especial associação entre o dano reclamado e a própria vida nas acções por wrongful life levou a que na sua análise se tenham envolvido de forma expressa ou implícita crenças e concepções de natureza ética, moral ou religiosa, que impedem uma correcta análise do tema desde o ponto de vista da responsabilidade civil. Muitos dos estudos sobre estas acções baralham argumentos de aceitação ou de rejeição que se inspiram apenas em determinadas posições acerca do valor supremo ou absoluto da vida. A resposta a dar a esta questão deve ser uma resposta técnica, deixando de lado, na medida do possível, as crenças próprias de cada um, limitando-se a analisar a ocorrência, nestes casos, dos pressupostos da responsabilidade civil (MACÍA MORILLO, 2007: 21).

Na discussão desta temática é usual o recurso a um “vocabulário dos direitos”, sendo invocada frequentemente a inexistência de um “direito a não nascer” (JECKER, 1987: 150). Em nosso entender, a utilização deste tipo de discurso pode perturbar a compreensão do que verdadeiramente está em causa neste tipo de acções. Neste sentido, MOTA PINTO (2007: 16) defende que “não é útil trabalhar com um pretenso «direito a não nascer», ou com um «direito à não-existência», cuja difícil articulação, pela contradição que encerra em si mesmo, logo remete o julgador para uma atitude negativista. Tal noção, embora corrente, parece-nos mesmo, susceptível de criar confusões, dando a entender que a posição da criança se tem de fundamentar num tal “direito”, e pode obscurecer a problemática substancial, e os resultados práticos que estão em causa – no que não é, aliás, mais do que uma expressão dos inconvenientes da utilização da forte “linguagem dos direitos” quando estão em causa problemas éticos e jurídicos de fronteira”. De igual modo, ARAÚJO (1999: 84 s), embora debruçando-se sobre o problema da conciliação dos interesses da criança com a liberdade dos progenitores, nas acções dirigidas contra estes, desaconselha o recurso, para uma solução, à “linguagem dos direi¬tos”, entendendo que o problema se aproxima antes do dever de informação e consenti¬mento médicos.

Há que reconhecer, desde logo, que o nosso ordenamento jurídico não atribui um valor absoluto e indiscutível à vida, uma vez que a sua protecção sofre algumas relativizações em alguns casos (por exemplo, na legítima defesa e no estado de necessidade). Estas relativizações também se manifestam ao nível da própria disponibilidade do direito por parte do seu próprio titular, por exemplo, com a não punição do suicídio. O surgimento de algumas decisões sobre o direito a morrer com dignidade demonstra, por outro lado, que por vezes os princípios de ordem pública favorecem a não vida sobre a vida. COHEN (1978: 224) questiona se, por analogia, não se pode defender que, em certas circunstâncias, a não-existência seria preferível à vida tal como ela é, e que por isso a pessoa foi prejudicada pelo simples facto de nascer.

Ademais, deve ter-se em conta que neste tipo de acções não é a vida, em si mesma, que consubstancia o dano, mas sim a vida com deficiência. O dano invocado pela criança assenta, não na discussão, como refere ARAÚJO (1999: 96), de “saber se há um limite (e onde está) para lá do qual a vida perde de tal modo o sentido que a sua ocorrência é um dano para quem a experimenta”, mas apenas e tão-somente na necessidade de responsabilizar o profissional negligente que ilegitimamente se substituiu aos pais na tomada de uma decisão que só a eles pertence (CARDOSO CORREIA, 2007: 106). Neste sentido, o acórdão do tribunal de 2ª instância holandês no célebre caso Kelly Molenaar declarou procedente a acção por wrongful life, defendendo que não incumbe ao tribunal decidir sobre a vida ou sobre a morte da criança, pois essa é uma decisão que cabe apenas aos progenitores.

É usual considerar-se que neste género de pleitos a criança deve demonstrar que estaria muito melhor se nunca estivesse nascido (better off dead). Basicamente, a criança pretenderia demonstrar que seria preferível o vazio da não existência à vida tal como a experimenta. Ora, se fossem entendidas desta forma simplista, estas acções deveriam ser tidas como ilógicas, uma vez que esbarrariam no chamado  «problema da não identidade»: “quando o dano que se invoca só poderia ser evitado se se obstasse ao nascimento do indivíduo cuja existência tem um valor absoluto, no sentido de não ser radicalmente posto em causa pela verificação do dano, da deficiência incurável, então trazer esse indivíduo à existência com a deficiência não o coloca numa situação pior do que qualquer outra possível, não podendo apurar-se, pois, aquela ‘diferença negativa’ em que consiste o dano” (ARAÚJO, 1999: 97). Com base neste argumento, uma boa parte da doutrina entende que este tipo de acções será sempre inadmissível pois a criança não pode ter uma pretensão indemnizatória contra aquele sem cujo comportamento errado não teria de todo chegado a nascer.

No entanto, dar relevância a esta contradição é, na verdade, uma forma de ofensa à criança que peticiona a indemnização. Com efeito, se levarmos ao extremo o argumento da “não-identidade” estaremos a dizer que “não só a criança nasceu com uma grave deficiência, como, na medida em que não teria podido existir de outro modo, é-lhe vedado sequer comparar-se a uma pessoa «normal», para o efeito de obter uma reparação pelo erro médico…”. Deste modo, a existência da criança é um dado que não pode estar em causa, para efeitos de fixar a sua legitimidade (MOTA PINTO, 2007: 17 s).

É verdade que a criança não tinha alternativa: ou nascia com deficiência, ou não nascia de todo. É óbvio que é impossível estabelecer uma comparação entre a vida deficiente e a não-vida, estado sobre o qual nenhum ser vivo se pode pronunciar com conhecimento de causa. Nunca poderemos comparar a situação actual da criança (viva, com deficiências graves) com a situação hipotética (nunca ter nascido, nunca tendo portanto chegado a ser vítima de qualquer ofensa ou prejuízo). O requisito do dano continua, reconhecemo-lo, a suscitar muitas dificuldades, uma vez que o nascimento sem a deficiência não teria sido possível. O dano não é a deficiência de per si, nem o próprio nascimento, mas antes o nascimento nessa condição, ou seja, o nascimento deficiente. O problema é saber se este é um dano juridicamente reparável. A dúvida que se nos depara é a de determinar se a atribuição de uma indemnização à pessoa que nasceu deficiente não colide frontalmente com o princípio da dignidade da pessoa humana, por se desqualificar ou valorar desfavoravelmente a vida das crianças deficientes, validando, ainda que implicitamente, o eugenismo (NUNES VICENTE, 2009: 134).

No nosso modesto parecer, as acções de wrongful life não contendem com a dignidade da existência humana e com a indisponibilidade do direito à vida. Com efeito, não está em causa qualquer “reconstituição natural” pela qual se pretenda eliminar a criança, nem se procura auxílio para uma “morte digna” ou autorização para o suicídio. O Autor da acção não pretende auto-limitar nenhum direito de personalidade, concretamente o direito à vida. A criança não pretende abdicar da sua vida, muito pelo contrário, ela pode intentar uma acção justamente porque está viva e é sujeito de direito (NUNES VICENTE: 2009, 136).

A indisponibilidade da vida humana não é posta em causa pelo simples facto de se atribuir uma indemnização à criança. Só estaríamos a pôr em causa o valor da vida se a atribuição da indemnização levasse implícito um “juízo sobre esse valor, sobre o valor da existência humana comparada com a “não existência”, o que afectaria a dignidade humana sendo contrário a qualquer sistema jurídico civilizado” (MOTA PINTO, 2007: 19). Assim, no julgamento dos casos em apreço “ser ou não ser não é a questão”, nem há, sequer, que desempenhar o papel de Hamlet” (MOTA PINTO, 2007: 19).

Na verdade, do que se trata neste tipo de acções não é da vida como valor ou desvalor, mas antes, realmente, dos sofrimentos e das necessidades causadas pela deficiência. A indemnização não deve compensar o dano de ter nascido mas sim a dor e o sofrimento que a criança experienciou após o nascimento (burden of his existence). Neste sentido, como referem DEUTSCH e SPICKHOFF, “o ressarcimento é o equivalente indemnizatório do fundamento da responsabilidade, que está no não reconhecimento da deficiência” (apud MOTA PINTO, 2007: 19.) Não se trata de “apreciar a «qualidade de vida» que é assegurada através do nascimento, o impacto do nas¬cimento na afectação e oneração de recursos escassos, a ponderação do direito a nascer com o direito a viver dos que virão a ver-se obrigados a partilhar meios de sobrevivência escassos com uma nova vida que não se sustenta a ela própria”. Nem se trata de “sustentar a proposição absurda de que a ordem jurídica assegura a alguém o «direito a nascer normal», a ponto de dizer-se que a negação desse direito envolveria ipso facto o mecanismo da indemnização” (ARAÚJO, 1999: 99).

Neste sentido, no acórdão do Supremo Tribunal Holandês, de 18 Março de 2005, no já referido caso Kelly Molenaar, entendeu-se que “a perspectivação implícita do nascimento de uma criança seriamente deficiente como ‘dano’ não leva obviamente pressuposto qualquer juízo sobre a consideração do valor dessa criança, ou da sua existência como pessoa, e ainda menos implica que a própria vida de Kelly seja marcada como um dano”. Concordamos, deste modo, com ARAÚJO (1999: 96), quando refere: “se este tipo de acções pretendessem pôr em causa o respeito tradicional pelo valor intrínseco e absoluto da vida, elas deveriam ser pura e simplesmente banidas”.

Valorando devidamente as circunstâncias típicas que subjazem a este problema, podemos questionar, com PINTO MONTEIRO (2002: 383): “será que se respeita mais a dignidade humana quando se recusa a indemnização, ou, pelo contrário, não será precisamente o respeito pela pessoa humana a exigir que se lhe reconheça esse direito a fim de suportar a vida com um mínimo de condições materiais e de dignidade?”. MOTA PINTO (2007: 20) responde neste último sentido, e também nós. Com efeito, a atribuição de uma indemnização à própria criança não atinge a sua dignidade, uma vez que não tem de assentar na conclusão de que a existência como deficiente é menos valiosa do que a não-existência. Ao atribuir uma indemnização à própria criança está-se justamente a promover a dignidade humana da criança.

Esta solução (a atribuição de uma indemnização à criança pelo facto de ter nascido com uma deficiência que não teria sido possível evitar depois de ter sido detectada) é, reconheça-se, algo contra-intuitiva. Mas estamos com MOTA PINTO (2007: 21, 2008: 750) quando entende que se deve proceder a uma reanálise das intuições em jogo, centrada nos resultados práticos em questão, o que nos leva a uma alteração da conclusão, para além da “cortina de fumo” de problemas como os do valor comparativo da vida e da não-vida ou da dignidade humana.

Dando-se em consequência de erro médico o nascimento de uma criança deficiente, o primeiro e mais directo visado é a própria criança. A forma como a acção é apresentada é irrelevante quando comparada com o facto, incontestável, de que nasceu uma pessoa com deficiências severas, que busca a reparação dos danos sofridos, pessoa essa que está viva e não morta. Não deve ser dada demasiada importância ao facto de a lesão ser apresentada de forma diferente pela criança ou pelos pais: “eu nasci com deficiências, eu não deveria ter nascido, eu sofro, eu quero uma reparação” no primeiro caso; ou “se eu soubesse que o meu filho tinha um grave problema genético, teria posto fim à gravidez e evitado os danos”, no segundo, por o primeiro sublinhar o sofrimento e a dor de uma pessoa e o segundo se centrar na perda de possibilidade de exercício de uma faculdade legalmente reconhecida (CANELLOPOULU BOTTIS, 2004: 55).

Deve ser admitida a indemnização da criança, sendo indiferente que a acção seja intentada pelos pais ou pelo próprio filho (GUILHERME DE OLIVEIRA, 2005: 229). Porque é que há-de repugnar que se conceda a indemnização ao filho, se já não repugna atribuir tal indemnização se forem os pais a peticioná-la (PINTO MONTEIRO, 2002: 383)? Concordamos com aqueles que entendem que é um “truque legal” que as acções por wrongful life, que são apresentadas pelos pais, sejam geralmente recusadas, mas as acções por wrongful birth sejam aceites. Na expressão eloquente de CANELLOPOULU BOTTIS (2004: 55), “aquilo que um advogado astuto não conseguir numa porta, conseguirá abrindo a porta seguinte”.

 

Bibliografia

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Notas

[1] Professor Adjunto da Escola Superior de Gestão do Instituto Politécnico do Cávado e do Ave.

[2] De forma pessoal ou, em caso de incapacidade, por intermédio dos seus representantes legais, que geralmente serão os pais, nos termos do art. 124º do Código Civil.

[3] Veja-se o n.º 1 do art. 142º do Código Penal (interrupção da gravidez não punível), bem como a Portaria n.º 741-A/2007, de 21 de Junho, que estabelece as medidas a adoptar nos estabelecimentos de saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos com vista à realização da interrupção da gravidez.

[4] O texto integral do acórdão pode ser consultado na Revista “Sub Judice”, Janeiro-Março de 2007, pp. 135-142. Da matéria fáctica dada como provada consta o seguinte: o Autor nasceu com graves e irreversíveis malformações nas duas pernas e na mão direita. A mãe do Autor, se tivesse sido devidamente informada da existência de graves malformações no feto, poderia ter abortado, mas os pais do Autor só com o seu nascimento tomaram conhecimento da existência das referidas malformações. Não fosse a má praxis profissional e ter-se-ia evitado o nascimento de uma pessoa marcada e inferiorizada para o resto da sua vida. O menor, representado por seus pais, pedia uma indemnização por danos patrimo­niais e não patrimoniais que a conduta dos Réus – médico e clínica privada que assistiram a sua mãe durante a gravidez – lhe teriam causado. Na primeira instância, os Réus foram absolvidos em saneador-sentença, decisão que a Relação confirmou. O Supremo Tribunal de Justiça concluiu igualmente pela não procedência da acção.

 

Notas Curriculares

*Fernando Dias Simões, Professor Convidado do Instituto Politécnico do Cavado e de Ave. Doutorado Faculdade de Direito da Universidade de Santiago de Compostela com uma tese publicada em 2009 sob o título Marca do distribuidor e responsabilidade por produtos. Publicou vários artigos no campo da sua especialidade em diversas revistas científicas e, presentemente, desenvolve a sua actividade de investigação em torno da temática do seguro de responsabilidade civil professional.

 

(Recebido em 23 de Abril de 2010; Aceite em 30 de Junho de 2010)