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Tékhne - Revista de Estudos Politécnicos

Print version ISSN 1645-9911

Tékhne  no.12 Barcelos Dec. 2009

 

O desenho como ferramenta universal.

O contributo do processo do desenho na metodologia projectual.[*]

Paula Tavares**

ptavares@ipca.pt

 

Resumo. Neste trabalho apresentamos o exercício do desenho como instrumento fundamental e fundacional na metodologia projectual do design, das artes visuais e também da arquitectura, dissecando-o como processo mental e físico. Da tradição da manualidade ao digital, da aquisição de competências às suas aplicações, abordaremos a contribuição do desenho na concepção e desenvolvimento de obras e produtos, da ideia ao desenho, da análise ao objecto (solução). Analisamos, também, a relevância estruturante do desenho ao longo do sistema de ensino, com base na sua “universalidade”.

Palavras-chave: desenho, projecto, design, arte, ensino superior.

 

Abstract. This paper aims to present the exercise of drawing as basic and functional tool in the design methodology, visual arts, and also architecture, analysing it as a thinking and physical process. From sketching (free hand) tradition until digital, from the acquisition of drawing skills and its applications, we will approach its contribution in the conception and development of products and art, from the idea to concept sketches, from the analysis to object (solution). We also analyse the structural importance of drawing during education, based on its universality.

Keywords: drawing, project, design, art, higher education.

 

 

 

Ricardo Freitas, desenho de representação / esboço, 2007.

 

“O desenho é provavelmente a forma de expressão que sintetiza melhor a nossa relação com o mundo. Ele permite-nos, com a elaboração mental, o desenvolvimento de ideias e a descoberta do que ainda desconhecemos de nós mesmos.”                                                              

Alberto Carneiro, escultor e professor (2001)

 

Sendo este um trabalho sobre a área científica do desenho, não pretende ser especificamente destinado aos que, de uma maneira ou de outra, estão relacionados com o desenho, teoria ou prática. Este texto tem como objectivo ser, também, acessível a um público não especializado, uma vez que defendemos o desenho como linguagem universal e forma de comunicação privilegiada.

Apresentamos a seguinte estrutura: 1 – Desenho para todos, onde discorremos sobre a possibilidades de universalidade do desenho, baseando-nos nas seminais propostas de Ramalho Ortigão, que de forma visionária e especulativa enunciava o desenho e a educação visual como principio de todas as formas de comunicação e linguagem na aprendizagem, inclusive precedendo a leitura; 2 – Desenho aplicado, onde reflectimos sobre os desenhos do desenho, passado, presente e futuro, tipos e tipologias, géneros e aplicações, desde a tradição da manualidade às possibilidades do digital, enunciando o desenho (mais uma vez) como fundamental na metodologia projectual das artes visuais e do design entre outras actividades, assim como reflectimos sobre as possibilidades de um desenho autónomo.

1. Desenho para todos.

2. Desenho aplicado.

2.1. Desenho projecto. O lugar do desenho na metodologia projectual.

2.1.1. O contributo da tecnologia.

2.2. Desenho autónomo. O desenho como lugar.

 

1. Desenho para todos.

Começamos com a utilização de uma frase comum: o desenho está em todo o lado. Todos os objectos e edifícios que nos rodeiam foram desenhados, os utensílios do dia-a-dia, as roupas, os jardins, as estradas, o urbanismo, tudo em suma. E se pensar na arquitectura, no design e nas artes plásticas no geral nos ilumina de imediato a mente, se o universo imagético comum nos faz visualizar o Partenon, Santa Maria del Fiori, o Guggenheim de Bilbao, ou entre nós a Casa da Música, e nos faz “sentir grandes” com as gloriosas capacidades da inteligência humana no desenho arquitectónico, igualmente nos emocionamos perante as formas de Miguel Ângelo, as gravuras de Rembrandt, ou a memória de Walt Disney; assim como vibramos na contemporaneidade com os Sagmeisters gravados na carne, o carvão de William Kentridge e as aguadas de Marlene Dumas, aspirando ao descanso numa chaise long dos Eames[1]. No entanto, e sem querer entrar em campos que não dominamos, desde o senso comum, também podemos, ainda, afirmar que muitos dos animais que temos por companhia em casa ou que utilizamos na alimentação foram “desenhados”, isto é, foram geneticamente alterados até ao ‘desenho’ pretendido. Desde que existimos como ser humano não conseguimos parar de desenhar, faz parte de nós.

Desenhamos desde a infância, a infância da humanidade, com os desenhos rupestres que “iluminaram” as cavernas e desde a infância propriamente dita. A tentativa de representação, antes da consciência da interpretação ou invenção faz parte da vontade humana. São, aliás, conhecidos os estudos sobre as vastas capacidades expressivas e comunicativas dos desenhos das crianças, que de uma ou outra forma vão sendo “controladas” ao longo do crescimento pelas convenções, nem sempre pedagógicas, dos adultos. Qualquer um de nós que se lembre da infância, ou que na idade adulta lide habitualmente com crianças, sabe que há o impulso de riscar, de ver deslizar pela folha de papel o lápis, a ânsia pela cor, mas sobretudo pela identificação do resultado com "um algo", ainda que no suporte nada se reconheça.

 

Bruno Albuquerque, desenho de figura, 2009.

 

O desenho de representação do mundo natural teve expressão como actividade tanto na Grécia como em Roma, segundo descrições de autores da antiguidade clássica, como Plínio, por exemplo. No entanto, a relevância do desenho como processo indiscutível para a representação propriamente dita, visível ou não visível, foi, efectivamente, reconhecida a partir do Renascimento, a sua tratadística serve-nos de testemunho. Lorenzo Ghiberti, na esteira da antiguidade clássica, nos seus Commentari (Venturi, s.d.) afirmava: “O desenho é o fundamento e a teoria” (p. 80). A teorização e registo dos processos tornou-se instituição; arte e ciência passaram a ter relação directa através do desenho. É com a "invenção" da perspectiva cónica linear e a sua capacidade de representação do real a partir da regra da geometria, que com os seus códigos, o desenho se torna instrumento essencial na comunicação dos objectos, nas palavras de Loos (1982): "Sem a geométrica reconsideração do espaço, que torna mensurável as três dimensões do cubo de perspectiva construído por Filipo Brunellesschi, Paolo Uccelo e Piero de la Francesca, não teria sido possível a sucessiva matematização do espaço circunstante que, com Galileu, daria origem ao pensamento científico moderno." (p. 7)

Para Leonardo o desenho era cosa mentale, processo intelectual que serve todas as disciplinas, que comunica e desenvolve, que é processo e gestão. Sendo conotado numas áreas com o simbólico e a subjectividade e noutras com a cientificidade inerente à geometria e matemática. Também Francisco da Holanda entendeu o desenho como fonte de conhecimento, assim como dom divino, forma de Deus se manifestar através do executante.

Em Portugal, no século XVIII, o escultor Joaquim Machado de Castro, a pedido de Pina Manique, elabora o “Discurso sobre as utilidades do Desenho”[2] onde considera ser da maior utilidade para todos os cidadãos a prática e o conhecimento do desenho, e que ambos devem ser dirigidos com bom gosto e na imitação da natureza. Salientando as suas aplicações nas diversas áreas do saber, como a medicina através da anatomia, a geografia e a história natural, entre outras. Referindo, também, que para o desenvolvimento do Estado eram necessários a instrução e protecção desta actividade. Mas, a conturbada política portuguesa - sucessivos governos que implicaram sucessivas reformas na educação - e apesar da reforma de 1836 decretada por Passos Manuel levar ao estabelecimento em Lisboa e Porto das Academias de Belas Artes, reunindo todas as “aulas de desenho” existentes nas duas cidades, apenas em 1860 foi criada uma disciplina com a designação desenho nos planos de estudos liceais. Segundo Cidália Henriques (2001) “O ensino do desenho no século XIX dividia-se em duas categorias: o artístico e o industrial. Era evidente, contudo, alguma ambiguidade nesta dicotomia uma vez que encontramos nas academias de belas artes, vocacionadas para a formação de artistas, aulas de desenho dirigidas à preparação de operários industriais orientadas na mesma perspectiva da formação de artistas.” (p. 44)

É perante as novas necessidades da sociedade, com a revolução industrial, que surge, a necessidade de repensar o ensino do desenho. A partir de 1884, António Augusto Aguiar e o seu sucessor Emídio Navarro, do Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria, impulsionam a criação de escolas industriais e do desenho industrial, no complexo sistema educativo português que começava a reconhecer a urgência de um ensino do desenho sistematizado e rigoroso, tal como já acontecia noutros países europeus.

Em 1880 Ramalho Ortigão (Henriques, 2001) escrevia: “O desenho é a base de todo o ensino escolar e de toda a educação do homem. A fonte de todos os conhecimentos humanos é a observação. Toda a noção que não se baseie na observação dos fenómenos tem o carácter anedótico, não tem o carácter científico. Por isso todos os pedagogos, desde Froebel, exigem que a educação da criança principie pela adestração dos sentidos no exame directo de todas as propriedades dos corpos, a cor, a forma, o volume, o peso, etc. ..., é pelo estudo do desenho que logicamente deve começar qualquer instrução. O exame da forma convencional das letras, que serve de base à leitura, deve vir depois do exame da forma das coisas que serve de base ao desenho.” (p. 47)

Passados 130 anos continuamos a advogar pela disseminação do desenho no ensino, pela sua universalidade como elemento estruturador e de comunicação do pensamento dos cidadãos, perdendo o preconceito de ser (apenas) do domínio da arte e tornando-se muito mais operativo aos mais variados níveis.

 

2. Desenho aplicado.

O desenho é uma área do conhecimento transversal a várias actividades – artísticas ou técnicas, simbólicas ou objectivas. A história do desenho acompanha a história da arte, a história da arquitectura e a história do design (se as entendermos separadas), mas também dentro do âmbito normativo, a história das engenharias (que sempre o usaram); no entanto, e pese a sua relevância, o seu reconhecimento como actividade autónoma é relativamente recente. O desenho foi considerado, desde sempre, como veículo e projecto.

Se considerarmos que o início do projecto no design e na arquitectura, assim como nas artes plásticas, são substancialmente dominados por preocupações conceptuais, podemos afirmar o desenho como ‘deriva’, reflexiva ou compulsiva, instrumento organizacional do fluir da ideia, processo de adição e subtracção simultâneas, de função operativa para a construção da forma.

Faremos aqui a exposição, ainda que breve, do que julgamos serem as duas “versões” predominantes da aplicação do desenho tal como o entendemos na representação e/ou apresentação – o desenho do projecto e o desenho autónomo, sendo o primeiro ambivalente e de “serventia” a várias áreas do conhecimento, como as artes visuais (no geral), a arquitectura e o design, e o segundo exclusivo das artes plásticas.

 

Miguel Gonçalves, desenho de diagramático, 2009.

 

2.1. Desenho projecto. O lugar do desenho na metodologia projectual.

“No urbanismo, na arquitectura e no design, onde a interacção com o público é imediata quando inevitável, a importância da consciência de uma necessária participação na transformação da sociedade é evidentemente determinante. Em tais disciplinas, a diferença do que acontece na pintura ou na escultura, o desenho não pode exprimir a afirmação individual do artista devendo antes de mais ser um testemunho da sua responsabilidade social e devendo, ao mesmo tempo, exprimir a coexistência e a convergência de necessidades interiores e de necessidades exteriores (o lugar, o cliente,...).”

Guido Giangregorio, arquitecto e professor (2001)

 

Desenho, projecto e objecto. Termos, conceitos, inerentes às artes plásticas, ao design e à arquitectura. Intimamente ligados, são também subsequentes. Primeiro a ideia, o primeiro desenho sob a forma de esquisso, quase inteligível, imediato, muitas vezes inquieto, hesitante...; depois, as primeiras certezas, o projecto no papel, a procura até à consolidação; por fim, a realização, o objecto, a concretização. O desenho manual ou computacional é ferramenta essencial na metodologia projectual das artes visuais e da concepção de objectos de maior ou menor escala (arquitectónicos ou pequenos utilitários ao nível do design industrial).

Segundo Alan Pipes (Pipes, 2007), pertence ao desenho o momento Eureka, Pipes considera o impulso do registo como inevitável, intenso e imediato. São os registos e acções que não se mostram, são os ‘desenhos pensamento’, de elevado grau de intimidade, pois são monólogo para quem inventa. Do domínio conceptual, são os primeiros desenhos projectuais, inscritos numa metodologia que se quer aberta, onde o desenho é ferramenta essencial.

A chamada metodologia projectual, o projecto com método, é sobretudo utilizada no design e na arquitectura; quanto às artes plásticas, e apesar de alguma regra auto-imposta por parte dos artistas, podemos afirmar a utilização de um ‘não método’ ao longo da história da arte. Sendo que entendemos este ‘não método’, a recusa de regra, como referente à procura implicada na função poética da arte, o não compromisso com a resposta social, ao colectivo, ao cliente do produto. A arte não tem de racionalizar o processo, responde a si própria. A excepção verificou-se a partir de Duchamp e das vanguardas que o rodeavam na tendência conceptualista. Utilizamos as palavras de Joaquim Vieira (Vieira, 1995), num texto sobre desenho e projecto (da arquitectura): “O projecto ocupa espaço nas artes plásticas através do exacerbamento da vertente intelectualista, pela ilusória racionalização do acto artístico e dos fenómenos de comunicação da obra.” (p. 27)

A metodologia projectual, no design e na arquitectura, é garante de regra no desenvolvimento do projecto. É a abordagem científica que estrutura e direcciona, objectivando a ideia na resposta à proposta, na procura da solução.

Por oposição ao desenvolvimento do projecto baseado na intuição, o designer e professor alemão Gui Bonsiepi (Bonsiepi, 1975), por exemplo, tal como Christopher Alexander, entende que se esperam duas coisas da metodologia:”...oferecer uma série de directivas e clarificar a estrutura do processo projectual. Tem portanto, em si uma componente praxiológica e uma componente hermenêutica. A metodologia do design baseia-se na hipótese de que, subjacente ao processo projectual, mesmo na variedade de situações problemáticas, existe uma estrutura comum, isto é, constantes que formam, por assim dizer, a armação, fazendo uma abstracção do conteúdo particular de cada um dos problemas projectuais.” (p. 205) No entanto, os mesmos autores censuram essa mesma noção de metodologia perante a ideia de uma metodologia fechada, grelha impositiva, motivo apenas de estudo e não de desenho: “...Na realidade, aqueles que estudam a metodologia projectual sem praticar o design, são, em geral, designers frustrados, enfraquecidos, que perderam, ou jamais tiveram, a exigência de dar forma às coisas.” (p. 204)

 

Samuel Monte, desenho projectual, 2009.

 

Muitos são os autores que trabalharam sobre a metodologia projectual, destacamos aqui, o anteriormente citado, Bonsiepi e o artista e designer italiano Bruno Munari (1907-1998) na clarificação do processo e do seu faseamento, o primeiro pelo enfoque sistémico com ênfase na problematização e pesquisa e o segundo pela sua visão mais voltada para o processo criativo com o seu eficaz ‘arroz verde’[3].

Independentemente do método proposto, é na divisão por etapas, que os teóricos da metodologia projectual, neste caso do design, concordam, são elas: 1ª - estruturação do problema projectual; 2ª - projecto; 3ª - realização do projecto. Sendo que a primeira contempla toda a recolha de dados relativos ao “problema existente” e sua avaliação; já a segunda contempla a procura da solução, o desenvolvimento do projecto propriamente dito. É aqui que o desenho dá a sua contribuição, como elemento de especulação que é; assim como no domínio do rigor computacional, propondo o protótipo para construção, a terceira etapa.

Relevante é a clarificação, neste momento, do tipo de desenho que estamos a enunciar quando o relacionamos com projecto - o desenho projectual, ideacional e operativo. Para o Professor Joaquim Vieira o desenho é uma arte, o projecto é uma técnica. No entanto, um “cabe” no outro, complementando-se. Apesar da sua relevância artística ser secundária, enquanto instrumento, não podemos deixar de referir que entendemos a intervenção do desenho manual no desenvolvimento do projecto como o momento criativo por excelência, a componente gráfica explorada pelo individuo que usa o lápis (caneta, marcador, ou outro) confere ‘poesia’ ao projecto, uma vez que quem desenha, quem regista e investe contra o papel dando forma às coisas, imprime o seu cunho. Transporta consigo as suas experiências, as suas hesitações e certezas. O desenho dá ao projecto a oportunidade de transgressão e crescimento.

Em 1975, Bonsiepi afirmava que: “Pode ser oportuno recordar que o designer industrial é essencialmente alguém que “faz objectos” e, bem ou mal, por vezes tem de utilizar o lápis e desenhar – uma actividade que não pode ser substituída fantasiando programas para as calculadoras electrónicas.” Hoje, em 2009, sabemos que a realidade é “ligeiramente” diferente, também Bonsiepi, em várias oportunidades aposteriori, já afirmou a contribuição dos meios digitais no desenvolvimento do projecto, principalmente ao nível da comunicação. Mas é com o trabalho de Steve Garner (Garner, 1992) que prosseguimos, neste caso ao nível do design industrial / produto: “Para as profissões do design de produto houve uma diminuição no uso de modelos físicos tais como equipamentos de teste e modelos de argila ou espuma em favor de modelos digitais permitindo um maior controle do desenvolvimento do produto e suporte de técnicas de avaliação, tais como a avaliação visual, a simulação de condições e a análise final do produto.”

 

2.1.1 O contributo da tecnologia.

Ingénuo parece o pensamento ou mesmo a afirmação da obsolescência do desenho perante o desenvolvimento técnico e computacional, não se trata aqui de fazer prevalecer uma forma de fazer sobre a outra, mas de compreender a sua complementaridade.

Com a introdução da tecnologia, primeiro com a fotografia e depois com o computador e o software de desenvolvimento e apoio à concepção de imagens e objectos, o ensino do desenho e do seu uso no projecto, aparentou perder algum terreno nas escolas de arte e design e arquitectura. As soluções gráficas pareciam mais eficazes quando produzidas mecanicamente. No entanto, todas as questões colocadas em redor das novas abordagens do desenho (provenientes da era digital), e das suas possibilidades, vieram consolidar a importância de uma base rigorosa e tradicional no ensino / aprendizagem do desenho como forma de consolidar a ‘manipulação’ e apresentação da ‘primeira ideia’ no projecto. Comprovando a plena convivência nos planos de estudos actuais do avanço tecnológico e da tradição, revelando o desenho mais uma vez como processo não só manual, mas também intelectual.

Desde a década de oitenta (do século XX) até hoje que a chamada democratização do da tecnologia (computadores mais acessíveis, laptops,...) possibilitou que o trabalho de projecto tivesse uma componente computacional muito mais elevada. Surgiram e evoluíram programas de apoio que se tornaram essenciais para o design, a arquitectura e a engenharia. Assim como para outras variantes e cúmplices do desenho como o são a ilustração e a animação, ou o desenho de jogos.

Contemporaneamente, as tecnologias como o CAD/CAE/CAM tornaram possível para o design e engenharia do produto, por exemplo, um maior controlo das últimas fases do projecto, o modelo computacional do objecto proporciona a representação computacional quase total do objecto, apresentando um número infinito de visualizações / representações.

É essencial o desenvolvimento de competências ao nível do uso das tecnologias nas áreas aqui tratadas que se relacionam directamente com o desenho, no entanto, terminamos este breve apontamento com as palavras do Professor Vasco Branco (2001): “Mas bastará substituir o lápis por um “mouse”, na litografia “Desenhar” de Escher, para se escrever um pensamento sobre a relação entre design e as tecnologias da informação/comunicação? Quem desenha, desenha-se a si próprio; quem não tem de si desenha nada, e se tiver um computador exponencia/disfarça a sua incompetência.” (p. 123)

 

2.2 Desenho autónomo. O desenho como lugar.

Nunca como nos últimos anos se fizeram tantas exposições de desenho. Se no ponto anterior analisamos a função mais comum do desenho, ou melhor, o desenho função - o desenho ao serviço do projecto, aqui vamos derivar sobre o desenho como lugar. O desenho como fim em si mesmo. O desenho como obra.

Os desenhos não se expõem - dirão os mais conservadores, ou modernos, se preferirem. Não se expõe o registo do pensamento, não se expõe o processo. O desenho é processo, tanto em definição, como pela natureza dos materiais em que se desenvolve e apresenta.

Quem desenha desenha-se, isto é “dá o corpo ao desenho”, introduz no desenho as suas experiências, gestos, vida. Nas palavras de Le Corbusier (Vieira, 1995), é necessário desenhar para levar ao nosso interior aquilo que foi visto e que ficará então inscrito na nossa memória para toda a vida. Temos com o desenho uma relação de simbiose: damos e ele dá-nos. (p. 39)

Ao desenho pertence também a subjectividade e a especulação, não só a especulação do processo inerente ao projecto, mas a especulação artística exponível, domínio do gesto “solto” ou “contido”, intencional ou do acaso (bem vindo quando reconhecido e controlado).

 

Miguel Gonçalves,desenho autónomo, 2009.

 

A conquista da autonomia do desenho, como disciplina / forma de expressão não subordinada, deu-se no século XX, especialmente desde os anos sessenta. Como as reflexões do artista plástico Bruce Nauman sugerem, esta valorização, reconhecimento e legitimação, deveu-se principalmente ao vínculo do desenho com o processo mental e energia criativa que são a génese da obra de arte. Para Nauman o desenho é pensamento (Molina, 1995): “O primeiro tipo de desenhos poderia chamar-se conceptual: fixam uma ideia. Chega-se então a um certo ponto em que já não pertencem a este tipo, e ao fazê-los o objectivo já não reside na representação de peças mas em ‘agarrar a energia’ das ideias. Deve considerar-se que o desenho está terminado quando se atinge o ponto em que a ideia se define como necessária. Os desenhos podem descrever-se como modelos para uma concepção mental à qual se ‘dá corpo’ através do desenho.” (p. 33) Apesar do paralelo que aqui podemos estabelecer com o desenho projectual de outras áreas, nas artes plásticas (onde Nauman nos serve de exemplo) este momento da criação passou a ser exposto, apresentado ao público, publicado e comercializado. Havendo uma inversão da tradicional função do desenho, sendo valorizado o processo criativo, da experimentação e da espontaneidade. Os surrealistas, nos anos vinte, já haviam “acreditado” estas características do desenho, considerando-o “eco” das pulsões e sonhos, como verificamos nos desenhos automáticos ou nos cadavre exquis.

No entanto, segundo o Professor Juan José Gomez Molina (1995), qualquer intenção de isolar o desenho na obra de um artista, caracterizando-o como autónomo, é uma situação enganosa, para o autor: “o desenho, a necessidade de desenhar, atende sempre a uma intenção específica (...) A valorização do dese­nho não vai depender tanto do seu valor autónomo como obra de arte, mas da sua vinculação ao processo pelo qual o artista o transforma numa parte significativa de si mesmo.” (p. 34)

 

Marcelo Santos, desenho de figura, 2009.

 

Aqui, relatamos a contradição, assumindo o desenho nas suas inúmeras possibilidades, terminamos citando uma definição de 1992 do escultor Richard Serra que nos parece sintetizar e harmonizar a discussão (Serota & Silvester, 1992): “O desenho é sempre indicativo do modo como os artistas pensam. Não consigo referir imediatamente nenhuma obra digna desse nome, na qual o desenho não seja um elemento chave. Quando falo em desenhar, não me refiro ao desenho como uma disciplina diferente da pintura ou da escultura. Há o desenho do desenho e há o desenho na pintura, assim como há desenho na escultura.” (pp. 21-22)

 

Apêndice: como se ensina desenho?

Começamos este “apêndice” do texto, “em cima” do tradicional lamento (português e não só) sobre a falta de preparação ao nível do desenho (entre tantas outras coisas) dos alunos que nos “chegam às mãos”. Os professores do ensino secundário queixam-se dos professores do ensino básico, e os professores do ensino superior (primeiro ciclo) queixam-se dos professores do ensino secundário. Entenda-se, queixamo-nos constantemente, quase por tradição e fado, dos ensinamentos que precederam o nível de ensino em que trabalhamos. No entanto, devemos aqui referir, e por conhecimento de causa, que, na realidade, os programas, tanto do ensino básico como do ensino secundário são o suficientemente extensos e completos para preparar os jovens para o ensino superior no geral e para o ensino superior especializado nas áreas directamente dependentes do desenho. Agora, a questão que se coloca é: mas, esses programas são integralmente cumpridos? Se a oferta é boa, o que falha? Não sendo este o lugar ideal para responder a estas questões, deixamos apenas dois apontamentos – a massificação do ensino e a “tolerância” instituída em alguns níveis de ensino, como forma de garantia de uma escolarização mais elevada, levou a que disciplinas relacionadas com as artes e a prática física/desportiva (as chamadas expressões, que incluem a educação visual, musical e física) fossem relegadas para um segundo plano, no primeiro ciclo foram remetidas para actividades extracurriculares, e no ensino básico, no geral, a componente lectiva das disciplinas artísticas foi reduzida. Importante é reflectir sobre a contradição da relação destas medidas com a relevância dada às artes e tecnologias na actualidade.

Em analepse, voltamos a Ramalho Ortigão e à sua proposta estruturante – o desenho como base; retomamos também (de forma romântica, se quiserem) o ideário renascentista de Leonardo e a compreensão do mundo material e imaterial, físico e simbólico, através do desenho e da experimentação que este possibilita.

Então, qual deverá ser a estrutura das disciplinas de desenho[4] no ensino superior? Além das questões enunciadas anteriormente no corpo de texto, que entendemos como essenciais, queremos aqui acrescentar, de forma breve, uma possível abordagem para adquirir competências base ao nível do desenho, de forma a promover uma evolução sapiente dentro desta área científica e na transversalidade que a mesma permite:

a) Da teoria à prática – a história do desenho.

Como vimos, a história do desenho acompanha a história da arte, incluindo a história do design e a história da arquitectura, se quisermos ser mais específicos. Na tradição e nas rupturas o desenho foi rede infinita das imagens e dos objectos. Consideramos fundamental a exposição teórica de conteúdos nas disciplinas de desenho, preferencialmente numa análise especulativa da sua história. De forma amplamente ilustrada, através de um universo imagético variado, dando visibilidade aos seus instrumentos, materiais, procedimentos, autores e funções.

b) Desenho à mão livre, mimesis e invenção.

“O senhor Palomar decidiu que daqui para a frente redobrará as suas atenções: em primeiro lugar, para não deixar fugir os apelos que lhe chegam das coisas; em segundo lugar, para atribuir à operação de observar a importância que ela merece. Nesta altura sobrevém um primeiro momento de crise: seguro de que a partir de agora o mundo lhe revelará uma riqueza infinita de coisas para olhar, o senhor Palomar experimenta fixar tudo aquilo que lhe vem à mão: não obtém nisso qualquer prazer e deixa de o fazer. Segue-se uma segunda fase na qual está convencido de que as coisas a observar são apenas algumas e não outras e que deve ir à procura delas; para isso tem de enfrentar problemas de escolha, exclusões, hierarquias de preferências; cedo se apercebe de que está a estragar tudo, como sempre acontece quando põe de permeio o seu próprio eu e todos os problemas que tem com o seu próprio eu.”

Italo Calvino em Palomar (1985)

 

Desenhar, desenhar, desenhar e desenhar. Através de escolhas, enfatismos e exclusões. Quem desenha aprende e reaprende a ver todos os dias. A experiência, tanto a nível pedagógico como da prática efectiva do desenho, traduz que se observa melhor, observando e que se desenha melhor desenhando. Aqui a fórmula do – “é como andar de bicicleta”, nem sempre funciona. A mão que descansa demasiado perde a destreza, o cérebro precisa de ser treinado e a mão obediente. Principalmente nos primeiro anos, até a resposta ser imediata e a linguagem madura. A compreensão do desenho como procedimento do intelecto, anteriormente referido, isto é como execução e demonstração do pensamento, faz-nos afirmar o ensino do desenho a partir da observação e representação do real, num processo gradual e intenso, que é expressão e razão, antecipador do projecto, da autonomia ou outra qualquer forma de fazer sob a qual o desenho se possa apresentar.

No desenho de observação podemos considerar géneros do desenho, tipos de desenho e tipologias processuais do desenho. Nestas poderiam inscrever-se tantas e tantas outras subdivisões, mediante o autor ou a época estudada – da prática ou da teoria. Academicamente, consideram-se géneros do desenho: a figura humana, o objecto (ou natureza morta) e o espaço (ou paisagem, urbana ou rural). Dentro destes géneros fundamentais, é iniciática a abordagem diagramática - educadora e disciplinadora do olhar e da mão. Isto é, um olhar participativo, selectivo e ordenador, conjugado com a mão obediente e controlada na transposição da tridimensionalidade para o suporte bidimensional. Com consciência da dificuldade que supõe a abstracção necessária a este processo, o diagrama é âncora e rede, sistema métrico estruturador que permite ao observador compreender a “tradução” da tridimensionalidade, do volume ocupado pelos objectos, para o plano do papel. Dominada esta fase, integrado o conceito e transformado em representação, servirá ainda como base para as mais variadas soluções gráficas. O conhecimento do diagrama serve o esquisso, serve o esboço e o estudo, o seu conhecimento e domínio permite ao gesto afirmar-se de forma rápida ou lenta mediante as intenções e as necessidades de quem desenha. Permite uma mais eficaz abordagem ao 'desenho de massas', por exemplo; Forma de fazer que se desenvolve através de um envolvente e continuado movimento da linha (ou mancha), veículo de demonstração da tridimensionalidade do objecto. Fórmula gráfica antecedente, ou antepassada do desenho de modelação 3D, hoje apresentada em softwares como o Blender, Discreet Maya, ou Solid Works, entre outros.

E se até aqui abordamos o desenho de representação através da manualidade, aproveitamos a última frase do parágrafo anterior para consolidar o nosso entendimento da estrutura das disciplinas de desenho no ensino superior – primeiro uma abordagem pela representação tradicional, garantia da compreensão do real, para, e em sequência, a introdução de outros procedimentos que permitam a invenção – o projecto e a autonomia (anteriormente abordados). Isto é, os programas das disciplinas de desenho devem ser abrangentes, os conteúdos devem permitir a aquisição das competências básicas para um exercício efectivo do desenho, mas devem deixar espaço ao desenvolvimento de uma linguagem própria, expressão da intenção.

Em conclusão, a aprendizagem do desenho é um processo evolutivo que requer as doses certas de rigor e disciplina, equilibradas com a “liberdade” e expressividade, para o conhecimento, desenvolvimento e afirmação de uma competência e/ou linguagem que tanto pode ser meio como fim nas várias áreas onde é utilizado.

 

Ana Sousa, desenho de figura, 2009.

 

Referências

Carneiro, António, (2001), “O Desenho, projecto da pessoa”, in Os Desenhos do Desenho, na Novas Perspectivas sobre Ensino Artístico, Edição da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação – Universidade do Porto, p. 34.

Venturi, Lionello, s.d., História da Critica de Arte, Edições 70, Lisboa, p. 80.

Loos, Sérgio, (1982), Prefácio, in Ver pelo Desenho, aspectos técnicos, cognitivos, comunicativos, Manfredo Massironi, Edições 70, Lisboa, p. 7.

Henriques, Cidália, (2001), “Contributos para a história do ensino do desenho em Portugal no Sé. XIX e princípios do Séc. XX”, in Os Desenhos do Desenho, na Novas Perspectivas sobre Ensino Artístico, Edição da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação – Universidade do Porto, p. 44.

Ramalho Ortigão citado por Cidália Henriques in ibidem, p. 47.

Giangregorio, Guido, (2001), “Desenho, história e processo”, in Os Desenhos do Desenho, na Novas Perspectivas sobre Ensino Artístico, Edição da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação – Universidade do Porto, p.152.

Pipes, Alan, (2007), Drawing for designers, Laurence King Publishing Ltd, London, p. 12.

Vieira, Joaquim, (1995), O Desenho e o Projecto São o Mesmo?, Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, p. 27.

Bonsiepi, Gui, (1975), Teoria e Prática do Design Industrial, Ed. Centro Potuguês do Design, 1ª ed. portuguesa 1992, Lisboa, p. 205.

Christopher Alexander citado por Bonsiepi, in ibidem, p. 204.

Garner, Steve, (1992), Digital Product Design, in http://www.lboro.ac.uk/departments/ac/tracey/dat/garner.html [Tradução livre]

Branco, Vasco, (2001), (resumo da comunicação) “Desenho, design e representações computacionais, in Os Desenhos do Desenho, na Novas Perspectivas sobre Ensino Artístico, Edição da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação – Universidade do Porto, p. 123.

Le Corbusier citado por Joaquim Vieira, in Vieira, Joaquim, (1995), O Desenho e o Projecto São o Mesmo?, Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, p.39.

Bruce Nauman citado por Juan José Gomez Molina (1995), “El concepto de dibujo”, in Molina, Juan José Gómez (org.), Las lecciones del dibujo, Ed. Cátedra, Madrid, p. 33. [Tradução livre]

Juan José Gomez Molina in ibidem, p. 34. [Tradução livre]

Richard Serra, (1992), entrevistado por Nicholas Serota e David Silvester, in Richard Serra: Weight and Mesure, London, Tate Galery, pp.21-22.

Calvino, Italo, (1985), Palomar, Editorial Teorema, Lisboa, pp. 117-118        [ Links ]

 

Notas

[*]O texto que se segue foi apresentado, numa primeira versão (menos extensa) no Congresso Internacional em Artes, Novas Tecnologias e Comunicação, a 12 de Outubro de 2009, em Aveiro - a convite do Professor Doutor Marcos Rizoli (Universidade Mackenzie), da organização do CIANTEC III, evento realizado em parceria com as Universidades Mackenzie e Universidade de São Paulo (USP) ambas do Brasil e a Universidade de Aveiro (UA) de Portugal.

[1] Poderíamos citar uma infinidade de autores/arquitectos/artistas/designers, os nomes aqui colocados são da nossa escolha por serem facilmente reconhecidos, isto é, por pertencerem ao que entendemos como universo imagético comum.

[2] Pina Manique, intendente geral da Polícia, empregou todos os esforços para desenvolver em Portugal o gosto pelas artes plásticas, e para isso criou na Casa Pia uma aula de desenho (aula do nú). Procurou os melhores artistas para a academia, Joaquim Machado de Castro, Joaquim Carneiro e Pedro Alexandrino. Em 24 de Dezembro de 1787, na casa Pia, numa sessão académica, a que assistiu toda a corte, Manique quis que se mostrasse ao público as vantagens do desenho. Foi Machado de Castro o encarregado de apresentar o “Discurso sobre as utilidades do Desenho”.

[3] Apesar de apenas destacarmos dois autores/designers, não podemos deixar aqui de referir nomes como Baxter, Pugh, Moraes e Mont´Alvão, Pahl e Beitz e Meister na contribuição de propostas de metodologia do design.

[4] Neste apêndice concentramos a nossa atenção no ensino do desenho tradicional, que é dizer – o desenho da manualidade, analógico e sem “renderização”.

 

Nota Curricular

**Paula Tavares exerce como Professora Adjunta (equiparada) Escola Superior Tecnologia do Instituto Politécnico do Cávado e do Ave, onde é Directora do Departamento de Design. Formada em Desenho (ESAP) e em Artes Plásticas-Pintura (FBAUP), doutorou-se em Belas Artes (FBAP_UVigo) com a dissertação “As complexas relações entre a arte e a política na cultura ocidental. A arte política como contradição institucional”.

Lecciona desde 1999 disciplinas / unidades curriculares de Desenho, desenvolvendo investigação, também, nesta área. Foi Assistente Convidada na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (99/04) e Assistente na Escola Superior Artística do Porto, instituição com a qual mantém colaboração (ESAP_Guimarães).

Como artista expõe e participa em eventos desde os anos noventa, estando representada em várias publicações, assim como em várias colecções de arte contemporânea.