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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.66 Lisboa jun. 2020

https://doi.org/10.23906/ri2020.66r02 

RECENSÃO

Como o fator humano contribuiu para o final da Guerra Fria

 

ARCHIE BROWN

The Human Factor: Gorbachev, Reagan and Thatcher, and the End of the Cold War

Oxford, Oxford University Press, 2020, 512 páginas, ISBN 9780198748700

 

Daniela Pereira Nunes

IEP-UCP | Palma de Cima, 1649-023 Lisboa | daniela_pn12@hotmail.com

 

Em 2019, os desentendimentos de Donald Trump e Vladimir Putin conduziram ao fim do primeiro tratado para a eliminação de uma completa categoria de armas nucleares – o Tratado INF, assinado em dezembro de 1987 por Mikhail Gorbatchov e Ronald Reagan. Em 2020, ironicamente, a mais recente obra da autoria de Archie Brown recorda-nos do peso e importância históricos que carregam momentos como o da assinatura deste tratado para a eliminação das forças nucleares de alcance intermédio.

Autor de obras de referência como The Gorbachev Factor e The Rise and Fall of Communism, vencedoras dos prémios Alec Nove e W. J. M. Mackenzie, ou Perestroika: Seven Years that Changed the World, Archie Brown é internacionalmente reconhecido como um dos mais conceituados especialistas na Guerra Fria, comunismo e pós-comunismo, assuntos russos e soviéticos. Formado pela London School of Economics, depois pela Universidade de Glasgow e pela Universidade Estatal de Moscovo, o cientista político e historiador é atualmente professor emérito de Politics na Universidade de Oxford e membro emérito do St. Antony’s College, onde lecionou por mais de trinta anos, passando ainda pelas universidades de Yale, Connecticut, Columbia, Texas e Notre Dame. São incontáveis as conferências em que participou, as palestras que proferiu e os artigos científicos que publicou sobre as suas áreas de investigação.

Comparativamente com outras obras como aquelas acima citadas, a novidade associada a The Human Factor reside fundamentalmente na lente interpretativa do autor, desta vez centrada no papel de três líderes políticos: Gorbatchov, Reagan e Thatcher. A obra, de 512 páginas, distingue-se precisamente pela explicação brilhante e meticulosa que nos oferece sobre a influência da personalidade no desenrolar dos processos políticos e, em particular, sobre a influência destes três seres humanos para aquele que foi o saldo final da Guerra Fria. Na introdução, o autor esclarece desde logo que «este livro não oferece uma descrição detalhada do final da Guerra Fria. Também não fornece uma história abrangente das relações internacionais desses anos»1. Antes, trata-se de um trabalho sobre liderança política, maioritariamente focado no significado relativo de três líderes políticos e nos seus esforços pela construção de um clima internacional cordial e inspirador na segunda metade da década de 1980. A obra parte de uma questão fundamental, à qual muitos especialistas tentam responder e de formas distintas: por que razão a Guerra Fria terminou quando terminou e da forma como terminou? Não ignorando outros fatores igualmente importantes, a análise de Archie Brown sugere que são incontornáveis as implicações do fator humano para dar resposta a estas questões. O que isto significa é que, certamente, tudo teria sido diferente se os protagonistas da história não tivessem sido Gorbatchov, Reagan e Thatcher. Não obstante, a importância do fator humano não se esgota nestes três líderes: ao fazer jus ao próprio título, The Human Factor é uma obra especialmente valiosa pela relevância que atribui a outras figuras políticas sem as quais a história também não teria sido a mesma. O autor destaca enfaticamente o papel dos conselheiros destes líderes, em particular os de Gorbatchov e Reagan, e a sua influência nas lideranças dos seus respetivos países – é o caso de Eduard Shevardnadze, ministro dos Negócios Estrangeiros da União Soviética entre 1985 e 1990, e de George Shultz, secretário de Estado dos Estados Unidos entre 1982 e 1989. A narrativa de Archie Brown constrói-se em grande medida sobre uma rejeição constante da leitura simplista que alguns autores fazem ao subestimar profundamente o valor das pessoas e das ideias nos últimos anos da Guerra Fria.

 

OS TRÊS GIGANTES DA GUERRA FRIA E A IMPORTÂNCIA DO SEU ENVOLVIMENTO

É fácil e quase intuitivo compreender os fundamentos do protagonismo de Gorbatchov e Reagan nesta obra: o primeiro, pelas reformas cruciais que implementou, quer na sua vertente doméstica, quer ao nível da política externa soviética e do seu impacto na política internacional; o segundo, pelo papel que desempenhou na aproximação à União Soviética de Gorbatchov e na melhoria das relações americano-soviéticas a partir de 1985. Quanto a Thatcher, porém, podem surgir dúvidas: e François Mitterrand? Ou George Bush? Ou Helmut Kohl? O autor admite que as motivações que conduziram à escolha da Dama de Ferro não são tão óbvias quanto as anteriores. Mas elucida-nos, interrogando: que outro primeiro-ministro britânico, à exceção de Winston Churchill, revelou um envolvimento tão profundo em conversações com um líder soviético? Neste contexto, vale a pena sublinhar também a relevância da relação especial de Thatcher e Reagan e, mais tarde, a influência da conexão igualmente especial que viria a surgir com Gorbatchov. Como afirma Brown, «a história das suas interconexões é uma contribuição não apenas para uma explicação do fim da Guerra Fria, mas também para um debate muito mais antigo sobre o papel que um indivíduo pode desempenhar na construção da história»2.

A divisão da obra em três partes contribui para a distinção de três grandes momentos na linha argumentativa do autor. Principalmente dedicada ao fator personalidade, a primeira parte confronta-nos com indicadores da maior relevância para compreender as metodologias e as escolhas de cada líder político: uma introdução às suas origens e contextos de ascensão política. É também na parte i que encontramos uma primeira análise das relações Reagan-Thatcher (evidentemente mais antigas do que as relações Reagan-Gorbatchov) e, mais tarde, Gorbatchov-Thatcher. A primeira-ministra conheceu Gorbatchov praticamente um ano antes de Reagan, ainda antes da sua eleição para o cargo de secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética (PCUS). Antes desse primeiro encontro, em Londres, em dezembro de 1984, foi o próprio Archie Brown quem falou à Dama de Ferro sobre o novo e simpático jovem em ascensão no Kremlin. Este timing concedeu a Thatcher um estatuto como que de intermediária entre Washington e Moscovo, pelo menos até que os líderes das duas superpotências se conhecessem. Brown sublinha o quão importante foi para o futuro das relações americano-soviéticas que Gorbatchov tivesse deixado em Chequers a impressão de que se poderia negociar com ele – como afirmou a própria primeira-ministra.

O segundo dos três grandes momentos da obra trata precisamente do caminho para o fim da Guerra Fria, focando-se nos encontros de Gorbatchov e Reagan e no modo como os dois homens de origens humildes semelhantes conseguiram juntos transformar a relação Ocidente-Leste. Desde a primeira reunião, escreveu Gorbatchov na Perestroika em 1987, «verificámos que tínhamos aquilo que eu considero um trampolim no sentido de trabalharmos para o melhoramento das relações sovie´tico-americanas»3. A parte II é também a mais densa de toda a obra, ao interpretar não apenas a realidade internacional das negociações Estados Unidos-União Soviética entre 1985 e 1991, mas também ao articulá-la com a situação doméstica destes países durante esse período. No caso da União Soviética, este exercício é particularmente útil para compreender a indissociabilidade das vertentes interna e externa do plano reformista implementado por Gorbatchov, que começou com a Perestroika e a Glasnost, e terminou com a revolução europeia de 1989 e a implosão da União Soviética em 1991.

Mas, se não fosse Gorbatchov? Se não fossem Reagan e Thatcher? Uma das questões centrais em toda a obra de Archie Brown – «algum dos líderes realmente alternativos nos seus países na década de 1980 teria adotado as mesmas políticas, ou parecidas, conduzindo a resultados semelhantes?»4 – encontra resposta nas reflexões conclusivas da parte III. Ao chamar a atenção para a importância do envolvimento dos Três Gigantes, o autor argumenta que não é pelas capacidades políticas destes líderes que a Guerra Fria acabou quando e como acabou – outros possíveis líderes estariam certamente aptos para alguma negociação –, mas antes pelo seu compromisso e pelo impacto humano invulgar que tiveram uns nos outros.

 

O FIM DA ERA DE GELO E DA IDEIA DE UM «IMPÉRIO DO MAL»

No contexto da melhoria gradual das relações americano-soviéticas durante a segunda metade da década de 1980, a análise de Archie Brown sugere ainda que a condição-chave para entender como foi possível «quebrar o gelo» é precisamente o fator humano. Esta interpretação está fundamentalmente ligada aos contributos (indispensáveis) de Gorbatchov e Reagan na desconstrução de um ambiente internacional hostil e da ameaça de um conflito nuclear, do qual ninguém poderia sair vencedor. No seu entendimento, a chegada de Gorbatchov ao poder em março de 1985 foi o primeiro grande estímulo para o fim daquela a que o próprio secretário-geral do PCUS chamou «a era de gelo» entre as duas superpotências. Brown relembra que, para além de um otimista nato, Gorbatchov era um reformador. As reformas que implementou na URSS reorientaram a política externa soviética para um sentido completamente revigorado, agora assente num novo olhar sobre as relações internacionais e sobre o papel da União Soviética no mundo. Esta reorientação é crucial para compreender por que motivo foi possível quebrar o gelo. Foi possível, em primeiro lugar, porque a Política do Pensamento Novo contribuiu de forma determinante para provar que Moscovo e Washington não tinham necessariamente interesses opostos. Esta revisão doutrinal, em simultâneo com o processo gradual de democratização da sociedade e instituições soviéticas, criaram oportunidade para refutar a teoria estalinista de uma hostilidade obrigatória e inevitável entre «os dois mundos».

Conforme sugere Carlos Gaspar n’O Pós-Guerra Fria, «a União Soviética do “Novo Pensamento Político” desiste de ser a “vanguarda socialista”, para passar a ser um país “normal” – o leitmotiv dos reformadores – e um parceiro responsável na política internacional»5. Muito por conta desta reforma de nível sistémico, sobretudo a partir de 1987, Archie Brown conclui que, entre os Três Gigantes, Gorbatchov foi quem fez a maior das diferenças para as transformações ocorridas no mundo dos últimos sete anos da Guerra Fria. Esta é, aliás, a lógica por detrás de toda a narrativa do autor: não se pode considerar que os líderes políticos são a explicação para tudo o que acontece na política; muitos deles fazem apenas uma diferença marginal, outros nem sequer fazem diferença. Mas alguns líderes são a diferença que explica por que razão a História acontece de uma forma ou de outra, quer pelos seus feitos domésticos, quer pelos seus feitos internacionais. The Human Factor é a referência majestosa que nos ensina que não é possível interpretar o fim da Guerra Fria sem ter em conta o valor das pessoas, das suas ideias e dos seus princípios.

 

BIBLIOGRAFIA

BROWN, Archie – The Human Factor: Gorbachev, Reagan, and Thatcher, and the End of the Cold War. Oxford: Oxford University Press, 2020.

GASPAR, Carlos – O Pós-Guerra Fria. Lisboa: Tinta da China, 2016.

GORBATCHOV, Mikhail – Perestroika: Anos de Transformação e de Esperança para o Meu País e para o Mundo. Mem-Martins: Publicações Europa-América, 1987.

 

NOTAS

1 BROWN, Archie – The Human Factor: Gorbachev, Reagan, and Thatcher, and the End of the Cold War. Oxford: Oxford University Press, 2020. Tradução da autora.

2 Ibidem. Tradução da autora.

3 GORBATCHOV, Mikhail – Perestroika: Anos de Transformação e de Esperança para o Meu País e para o Mundo. Mem-Martins: Publicações Europa-América, 1987, p. 251. Tradução da autora.

4 BROWN, Archie – The Human Factor… . Tradução da autora.

5 GASPAR, Carlos – O Pós-Guerra Fria. Lisboa: Tinta da China, 2016.

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