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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.66 Lisboa jun. 2020

https://doi.org/10.23906/ri2020.66r01 

RECENSÃO

Um Ocidente ao sabor do vento

 

VALENTIM ALEXANDRE

Contra o Vento: Portugal, o Império e a Maré Anticolonial (1945-1960)

Lisboa, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2017, 839 páginas

 

Diogo Roque

NOVA FCSH | Avenida Berna 26C, 1069-061 Lisboa | Avenida Berna 26 C, 1069-061 Lisboa

 

O livro de Valentim Alexandre, investigador jubilado do Instituto de Ciências Sociais (ics) e autor de obras de referência sobre o colonialismo português, aborda o tempo histórico de um período que se pode considerar ser o início da descolonização; ou, se assim se entender, do processo que vai conduzir à descolonização. Na década e meia em questão, Valentim Alexandre analisa, debate e descreve primorosamente a temática.

O «vento» referido no título da obra e alusivo aos famosos «Winds of Change» mencionados pelo primeiro-ministro britânico Harold Macmillan em 1960, primeiro num discurso em Acra e mais tarde na Cidade do Cabo, remete para as mudanças que se fizeram sentir nos velhos novos territórios do Ocidente. Os quinze anos antecedentes ao discurso de Macmillan correspondem a um tempo em que as soberanias dos territórios coloniais já estavam ameaçadas. Como Valentim Alexandre deixa evidente, as potências europeias não foram apanhadas de surpresa. Ou seja, de certa forma e ironicamente, Macmillan não inaugura nem profetiza coisa alguma, pois o vento há muito que já se fazia sentir, primeiro na Ásia e depois em África.

Por sua vez o «contra» presente no título representa a posição que o regime vigente adotou e na qual era acompanhado. Portugal não estava só, nem ignorava o novo tempo. Salazar, num discurso de 1957, falava nas «inclemências do nosso tempo» que «impediriam de realizar o nosso programa em África», demonstrando saber o que aí vinha. Também as principais potências coloniais europeias – França, Reino Unido e Bélgica–, como Valentim Alexandre demonstra, procuraram manter as suas posses no curto e médio prazo e construir sociedades multirraciais; o desenrolar dos acontecimentos é que foi mais rápido que o tempo programado, obrigando as potências coloniais a saltar etapas, processo a que o Estado Novo resistiu (p. 763). O autor acompanha e problematiza as mudanças que se fizeram sentir. Logo nos anos após a Segunda Guerra Mundial as atenções do Governo «centraram-se sobretudo no povoamento branco e no fomento da economia, que tinha finalmente condições para arrancar» (p. 78). A questão da industrialização do Ultramar não é esquecida (pp. 434-436), apesar de não ter tido seguimento e só a partir do plano de fomento de 1959 se começar a fazer algum desenvolvimento das colónias. Jurídica e constitucionalmente evoluiu-se, primeiro com a revisão constitucional de 1951 e a sua adaptação legislativa de províncias ultramarinas, tentando-se esquivar à ONU e às suas observações sobre «territórios não autónomos», e ainda com a lei orgânica do Ultramar em 1953. O sistema de controlo e repressão acompanhou este processo, com a implementação gradual da PIDE nas colónias a partir de 1946. E ideologicamente iniciou-se a mitificação do luso-tropicalismo. Também os militares começaram a preparar-se para as mudanças, como nos conta Valentim Alexandre, naquelas que eram províncias praticamente desguarnecidas até finais dos anos 1950. Tímida e hesitantemente com Santos Costa, mais resolutamente com Botelho Moniz, mas especialmente a partir de 1958-1960 com reorganizações dos dispositivos adequando-os às realidades dos territórios.

O problema do trabalho obrigatório ou forçado e das culturas obrigatórias, que, tal como o regime do indigenato, todas as outras potências coloniais europeias trataram de eliminar nos anos após a Segunda Guerra Mundial, é praticamente transversal a toda a obra. A Convenção da OIT sobre o Trabalho Forçado ou Obrigatório de 1930 não foi respeitada (embora tivesse sido assinada por Portugal, e apenas ratificada em 1956, o mesmo ano em que se publicou o Código do Trabalho Indígena), como demonstram os relatórios de Henrique Galvão citados ao longo do livro, onde se denunciavam os abusos das autoridades coloniais que, apoiadas nos poderes tradicionais, recrutavam coercivamente indígenas a quem chamavam «voluntários» ou «contratados», a troco de salários reduzidos ou inexistentes. Valentim Alexandre apresenta algumas tentativas que existiram para alterar a situação, mas que, no entanto, não chegam a passar de intenções ou decretos no papel sem efetivação no terreno, demonstrando grande resistência à abolição do indigenato. Na realidade, os excessos existentes levaram a situações de abusos humanos que pouco se diferenciam de situações de escravatura moderna, em especial em São Tomé e Príncipe e em Timor. Nos restantes casos, os abusos seriam ainda assim inferiores à condição encontrada no serviço militar obrigatório, como exemplifica a queixa do Gana em que os «contratados» eram ameaçados pelo serviço militar – o que demonstra, regra geral, que o trabalho obrigatório seria mais leve que aquele1. As exceções seriam, obviamente, São Tomé e Príncipe ou Timor.

O livro, já recenseado por Diogo Ramada Curto, Augusto Nascimento e Cláudia Castelo, caminha por vários trilhos. No essencial segue uma análise profunda e fina da cúpula do regime, fortemente documentada, em especial no arquivo António Oliveira Salazar, existente no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT). Outras fontes, como legislação promulgada, debates parlamentares ou memórias, são utilizadas. Mas podemos dizer que é quase sempre na correspondência e anotações de Salazar que o autor deambula, escrutina e reflete. Uma obra de pesquisa e análise exaustiva, porventura demasiado focado na visão de um arquivo e nas notas de Salazar, em que o autor, consciente da utilização excessiva do referido arquivo, cedo adverte dizendo «que este não é um trabalho sobre Salazar e a sua política» (p. 25). Paralelamente decorre uma perspetiva comparativa do quadro colonial português e de outras potências (França, Inglaterra e Bélgica) que muito enriquece a obra e a sua leitura.

 

REMOINHOS

A relação de Portugal com países do bloco afro-asiático presentes na Conferência de Bandung com os quais Portugal mantinha boas relações ou alianças, casos do Paquistão (visita de Mirza em 1957), da Indonésia (visita de Sukarno em 1960) ou da Etiópia (visita de Selassié em 1959) é esquecida. Também pouco se aprofunda sobre as outras potências que nasciam com ambições expansionistas e neocoloniais. Africanas, europeias e asiáticas. Porventura reflexo de um campo de estudo pós-colonial ainda demasiado agarrado a uma visão do colonialismo como sendo apenas proveniente da Europa Ocidental. A análise do expansionismo e ambição da URSS, da China ou da Índia podia começar a ser incluída nestas realidades para se conseguir uma melhor compreensão de sistemas de dominação emergentes, numa perspetiva menos eurocêntrica e mais global. A consideração que o autor faz de que a «esmagadora maioria da população africana de Angola, Moçambique e Guiné» indígena estaria sujeita ao trabalho forçado e a culturas obrigatórias (p. 752) parece algo exagerada, pois apenas uma parte da população considerada «primitiva» era utilizada, e normalmente em zonas de cultivo de algodão, cacau, exploração de diamantes ou obras públicas.

A possibilidade de um referendo aventada por Salazar para resolver a questão de Goa, e que Valentim Alexandre considera como a procura para «um caminho de solução» que não passará, contudo, de um «apalpar de terreno» (pp. 694-695), levanta interpretações que merecem ser exploradas. Genuína intenção de avançar com um plebiscito inconstitucional ou teste à firmeza da cúpula do Estado? Puro calculismo e sinal de fraqueza do estadista? Ou até, mais remotamente, eventual perspetivação de uma futura alteração constitucional? Qual seria o objetivo de levantar a lebre?

Uma analogia entre os planos de povoamento em colonatos em Angola e Moçambique com os «planos de colonização da Alemanha nazi no Leste europeu» (p. 435) é, porventura, o ponto menos conseguido da obra. A descrição avançada por Valentim Alexandre de um «precedente de que nenhum observador estava consciente em Portugal, nesta época», é uma comparação, no mínimo, pouco académica. Por que não confrontar com outros projetos de povoamento como um kibbutz ou um moshav na Palestina? Ou um outro projeto de povoamento fundado por uma qualquer potência colonial em África? A similitude entre o colonialismo português e nazi que o autor levanta parece ser um debate truncado. A ausência de análise ao massacre de Batepá em 1953, na colónia de São Tomé e Príncipe, também se faz notar.

 

A FRAGILIDADE DO EXCESSIONALISMO PORTUGUÊS

Valentim Alexandre expõe as tensões criadas pelas novas vagas de colonos europeus com as elites luso-africanas e assimilados, parte importante da administração e burguesia colonial (p. 752). O equilíbrio da sociedade colonial alterou-se com os novos povoadores a ocuparem os melhores cargos e a dominem a economia. A pressão da imigração em massa de mulheres europeias colocou em causa o mito da miscigenação. E surgiram novos abusos sobre os indígenas, como criticava o etnólogo Jorge Dias num parecer citado pelo autor, denunciando o «comportamento recente dos colonos, que se desviam da nossa política indígena tradicional, dando lugar a abusos» (p. 43) e apelando à reeducação do colono «ensinando-o a respeitar o indígena» e a reprimir a «utilização da diferença de cores de pele» (p. 401). Estas relações, apesar de mencionadas abundantemente ao longo da obra, merecem maior reflexão, especialmente no que diz respeito às tensões entre poder central e colonos por mais autonomia e menos integração nacional, e na questão dos assimilados que, apesar de se depararem com a concorrência dos colonos europeus a partir dos anos 1940, continuaram a aumentar em número e influência na medida em que o desenvolvimento do território aumentava as oportunidades. Os próprios líderes nacionalistas nascem de assimilados que não veem as tensões amenizadas apenas com ensino e oportunidades de trabalho.

A tentativa de construção de sociedades multirraciais nas novas colónias promovida por governos europeus e pelo americano, falhou. Neste projeto, as colónias portuguesas, ao contrário das outras, não eclipsaram por fatores internos, mas sim por razões externas. Os ventos que surtiram efeito noutras colónias tiveram diferente resultado em Portugal. Como Valentim Alexandre escreve, tal acontecia em parte «por se não ter plena consciência, no exterior, do papel central do Império na imagem que a nação fazia de si própria» (p. 23). A diferença na ida contra o vento de Portugal e das potências europeias foi a resistência. Enquanto democracias liberais acabaram por saltar etapas e sacrificar interesses de comunidades coloniais, passando diretamente ao paradigma neocolonial em que o «exercício informal da influência política e econômica era mais relevante do que a soberania até então exercida sobre os territórios coloniais» (p. 764), Portugal, autoritário no debate público e na repressão, pequeno em influência internacional, pobre e agarrado à consciência histórica da «herança sagrada», não o podia – ou queria – fazer.

Esta investigação original e profundamente documentada, pertence a um tipo de trabalho cada vez mais raro, infelizmente. Ao longo da sua leitura surge como notória a consciência das autoridades portuguesas e de Salazar para as rápidas mudanças que se fazem sentir nos impérios coloniais, e de que seria apenas uma questão de tempo até chegarem a Portugal. Enquanto isso, o país adotava uma postura resiliente, e mantinha-se impreterível na sua pax lusitana alicerçada numa política de repressão e reforma, conclui o autor. Com a segunda a ser genuína e não apenas instrumental. «Duas faces da mesma moeda política, tendentes a preservar a soberania nacional sobre o Império» (p. 774).

Um exemplo de como conduzir uma investigação, com método e distanciamento, que fazem do autor e da sua obra um marco. E, sem dúvida, ficamos a aguardar ansiosamente pelos novos capítulos desta magistral obra de referência para o estudo da temática colonial.

 

BIBLIOGRAFIA

ALEXANDRE, Valentim - Contra o Vento: Portugal, o Império e a Maré Anticolonial (1945-1960). Lisboa: Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2017.         [ Links ]

CASTELO, Cláudia - «Para a compreensão do império colonial português na era da descolonização». In Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre. Vol. 45, N.º 1, janeiro-abril de 2019, pp. 177-180,         [ Links ]

CURTO, Diogo Ramada - «Contra o vento: Portugal, o Império e a maré anticolonial (1945-1960), de Valentim Alexandre (Recensão)». In Análise Social. Lisboa. Vol. LIII (3.º), N.º 228, 2018, pp. 813-821.         [ Links ]

MONTEIRO, José Pedro - A Internacionalização das Políticas Laborais «Indígenas» no Império Colonial Português (1944-1962). Tese de doutoramento, Universidade de Lisboa, 2017.

NASCIMENTO, Augusto - «Valentim Alexandre, contra o vento. Portugal, o império e a maré anticolonial (1945-1960)». In Ler História. Lisboa. Vol. 73, 2018, pp. 257-261.         [ Links ]

 

NOTAS

1 MONTEIRO, José Pedro - A Internacionalização das Políticas Laborais «Indígenas» no Império Colonial Português (1944-1962). Tese de doutoramento, Universidade de Lisboa, 2017, p. 267.

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