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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.65 Lisboa mar. 2020

https://doi.org/10.23906/ri2020.65r02 

RECENSÃO

 

RECENSÃO

 

A «bolha» que originou Trump e marca o declínio dos Estados Unidos

 

Rui Henrique Santos

IPRI-NOVA | Colégio Almada Negreiros, 1099-032 Lisboa | ruihenriquesantos@fcsh.unl.pt

 

STEPHEN M. WALT

The Hell of Good Intentions: America’s Foreign Policy Elite and the Decline of U.S. Primacy Nova York: Farrar, Straus & Giroux 2018, 384 páginas

Stephen Walt, professor de Relações Internacionais na Universidade de Harvard e colunista na Foreign Policy, planeou a publicação de The Hell of Good Intentions para coincidir com o fim do primeiro ano do mandato do sucessor de Barack Obama, que tudo faria antever (inclusive para o autor) ser Hillary Clinton.

Dentro deste contexto, esta obra merece e deve ser lida num continuum do trabalho de vários autores realistas, como Andrew Bacevich, Barry Posen, Christopher Layne, John Mearsheimer ou Patrick Porter, que relacionam a crescente instabilidade internacional e o aparente declínio dos Estados Unidos com o exercício de uma grande estratégia de hegemonia liberal.

A originalidade que Walt nos proporciona é a conseguida escalpelização não só do projeto hegemónico enquanto constructo e ação política, mas também do intrincado edifício de interesses, pessoas, instituições e ligações que atravessa a conceptualização, promoção e realização da política externa norte-americana.

Esta estrutura que perpassa por todo o volume é a chamada «bolha» – termo emprestado de Ben Rhodes, conselheiro-adjunto de Segurança Nacional de Obama – e será sobre ela que o autor incide o exercício de dissecação e crítica nas administrações de Bill Clinton, George W. Bush e Barack Obama.

Os sete capítulos da obra de Stephen Walt podem ser divididos em três grandes enquadramentos: o que é a hegemonia liberal e como se exerce; quem a executa, promove e como se mantém; a avaliação inicial de Trump e qual a alternativa credível desenvolvida pelo autor.

 

O ARGUMENTO

Os primeiro e segundo capítulos dedicam-se à historiografia e ao diagnóstico do desempenho das administrações Clinton, Bush e Obama.

No pós-Guerra Fria e no ápice do seu poderio económico e militar, os Estados Unidos prosseguiram uma grande estratégia de hegemonia liberal suportada num consenso bipartidário.

Para Walt, esse desiderato não só arruinou o momento unipolar da hiperpotência, como ampliou os problemas globais: crescimento do poderio da China, envolvimento dos Estados Unidos em guerras intermináveis delapidando prestígio e poder, manutenção de rogue states e indicadores globais que demonstram declínio democrático e rejeição da globalização. Conceptualmente, Walt estabelece esta grande estratégia como liberal por ser caracterizada pelo livre comércio, instituições internacionais e democracia liberal, e como hegemónica por caber aos Estados Unidos um desígnio excecional de executar e garantir essa ordem.

Teoricamente, a hegemonia liberal agrega prosélitos da teoria da paz democrática, liberalismo económico e institucionalismo liberal, a que Walt junta os neo-cons da Administração George W. Bush.

Esta grande estratégia visa a expansão da primazia norte-americana e a promoção dos seus valores, numa tentação de transformar o mundo à sua imagem.

Numa evidente linha realista, Walt conclui que a hegemonia liberal e as suas parcas realizações – que nos parecem negligenciadas de forma algo redutora pelo autor – estavam condenadas ao fracasso por sobrestimarem benefícios e subestimarem resistências, ignorando desequilíbrios de poder, menorizando a prática diplomática e estimulando a engenharia social.

 

A «BOLHA»

Se Walt apontou de forma inexorável nos dois primeiros capítulos os erros de três administrações, o terceiro capítulo detalha o crescimento posterior a 1945 de um complexo gigantesco que reúne milhares de funcionários civis e militares em instituições do governo federal com enormes recursos, face à expansão da presença global norte-americana.

Mas a «bolha» ramifica-se e a sua plasticidade atravessa indivíduos, organizações privadas e think tanks, grupos de interesse e lóbis, média e academia.

Todas estas vidas da «bolha» constituem o que Walt caracteriza como a comunidade de política externa com dinâmicas de alta permeabilidade, consenso bipartidário e escassa accountability.

Os seus integrantes visam garantir a conceptualização e produção de uma política externa que coloque os Estados Unidos como indispensáveis, criando um círculo vicioso que origina e força a presença global norte-americana, assegurando influência, maior investimento e uma contínua relevância à comunidade.

Há, contudo, uma dissonância entre a elite que promove esta agenda e a opinião pública, reticente nos impulsos intervencionistas, o que conduz Walt a indagar sobre como a elite «vende» a sua estratégia, tema presente no quarto capítulo. Walt relembra como Truman «vendeu» o programa de apoio à Grécia e à Turquia, como se conduziu a Guerra Fria, como se derrotou Saddam e como se combate o terrorismo.

O público – através da manipulação da informação e da inflação das ameaças, que alertam para a necessidade de respostas imediatas e decisivas a perigos onde se exageram intenções, recursos e capacidades dos adversários – é convencido de que a hegemonia liberal não só é necessária e desejável, como um justificável «bom investimento». No quinto capítulo, Walt convoca-nos para a incompreensão sobre a tolerância dos consecutivos fracassos desta estratégia. O seu diagnóstico é uma estocada fatal a todo o establishment e para a qual os capítulos anteriores serviram de antecâmara. A ausência e aversão a responsabilizar indivíduos ou organizações, a vida na comunidade, a incapacidade de aprender lições com os erros cometidos combinados com a segurança e poder excecionais que os Estados Unidos detêm, permitem o relapso de desastres.

 

E TRUMP?

Walt não tem dúvidas que Hillary Clinton desenvolveria os eixos centrais da grande estratégia de hegemonia liberal dos Estados Unidos.

A eleição de Trump – para Walt fruto da rejeição do eleitorado à expansão internacionalista da hegemonia liberal e às guerras intermináveis – poderia marcar uma oportunidade única de corrigir o trilho hegemónico liberal. Mas a somar à falta de preparação do milionário nova-iorquino, a resistência da «bolha» constituiu-se peça essencial para impedir essa modificação, como é analisado no sexto capítulo.

Com o novo presidente, e apesar do seu nacionalismo de soma zero, não existe uma rutura com o passado recente, apesar da introdução de maior ruído e menor competência.

Se, por um lado, Trump promove uma diplomacia incoerente – vocifera aliados, rasga acordos internacionais, admira regimes autoritários e homens-fortes –, por outro, Washington continua com compromissos militares à escala global, exaurindo os seus cofres e abrindo oportunidades estratégicas à China.

A agência ímpar que se antevia em Trump parece simultaneamente desafiar e ser cooptada pela estrutura, até pela inexistência de uma alternativa credível à hegemonia liberal por parte desta administração.

 

O OFFSHORE BALANCING

O sétimo e último capítulo propõe uma mudança de paradigma que permita aos Estados Unidos manter uma posição de liderança, ou refrear o seu declínio, sem comprometer recursos e prestígio. O offshore balancing, cunhado por Christopher Layne em 1997, é considerado como a grande estratégia tradicional dos Estados Unidos, seguida durante a Guerra Fria.

Passa por reconhecer três regiões estrategicamente vitais para a segurança e interesses económicos norte-americanos – Europa, Nordeste Asiático e golfo Pérsico –, onde o principal objetivo é travar o aparecimento de qualquer potencial hegemon regional, que, a existir, deve ser inicialmente confrontado por aliados locais.

Para Walt, as vantagens do offshore balancing resultam evidentes.

Os Estados Unidos diminuiriam a sua pegada militarista, reduzindo o free riding de aliados, bem como ressentimentos e insurgências em regiões intervencionadas, permitindo recuperar o valor da diplomacia e promover o nation building doméstico. Uma maior estabilidade e paz e consequentes interdependência e crescimento económico globais constituiriam um bálsamo para a costumeira anarquia internacional.

Contudo, se na Europa e Médio Oriente a presença norte-americana pode ser reduzida ou reformulada, na Ásia parece indispensável devido ao crescimento do poder e assertividade de Pequim em se constituir como «a» potência regional com pretensões de rever o seu papel na ordem internacional.

O autor confessa-nos que esta almejada mudança de paradigma é quase quimérica, dadas as resistências e a escassa audiência que os proponentes de alternativas detêm nas cúpulas de decisão.

Compreendendo isso, propõe-se a constituição de um movimento suficientemente robusto que paulatinamente impulsione uma mudança estratégica significativa, algo que acreditamos ter-se concretizado em 2019 com o Quincy Institute (onde Walt é fellow) e que junta esforços e fortunas progressistas (Soros) e conservadores (irmãos Koch).

 

OS CONTRA-ARGUMENTOS

Walt não se furta a responder a contra-argumentos, seja na avaliação do passado de sucesso do offshore balancing, com erros como a Guerra do Vietname, ou na indiciação de que a sua análise se centra num pequeno número de eventos (Iraque e Afeganistão). A resposta a estes quesitos passa essencialmente pelo cenário de rivalidade bipo-lar da Guerra Fria e pelas metástases que o intervencionismo causou.

Apesar da aturada e exaustiva tarefa na identificação da «bolha» e na dissecação da hegemonia liberal e que geram uma obra sólida, existem aspetos que merecem reflexão e que, a nosso ver, enriqueceriam este volume.

Os dois primeiros capítulos beneficiariam com a inclusão de uma significativa literatura existente sobre as vantagens recolhidas pelo engagement norte-americano na definição e condução da ordem internacional, bem como a ponderação (como fez Layne, dividindo o campo dos restrainers) sobre a cronologia da ambição de global dominance (1945 ou pós-Guerra Fria). Adicionalmente, se a caracterização hegemónica mereceria a inclusão de elementos da Teoria Crítica, a inflação de ameaças ganharia com referência ao trabalho da Escola de Copenhaga.

Sendo dois tipos de abordagens distantes do realismo, cumpre relembrar que no magnífico Taming the American Power (2006) este autor não se fez rogado em utilizar contributos teóricos liberais e construtivistas. Salvo estes pequenos sobressaltos, Stephen Walt não se coibiu de seguir o preceito de Morgenthau de «falar a verdade ao poder», num volume original e desafiante.

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