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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.64 Lisboa dez. 2019

https://doi.org/10.23906/ri2019.64r02 

RECENSÃO

 

Caminhos para uma democracia parlamentar europeia

 

Pedro Nunes

NOVA FCSH | Avenida de Berna, 26-C, 1069-061 Lisboa | pedromgbgnunes@gmail.com

 

ADRIENNE HÉRITIER, KATHARINA L. MEISSNER, CATHERINE MOURY E MAGNUS G. SCHOELLER

European Parliament Ascendant: Parliamentary Strategies of Self-Empowerment in the EU Londres, Palgrave Macmillan, 2019, 201 páginas, ISBN 978-3-030-16776-9

 

O mais recente volume da colecção «European Admnistrative Governance», editada pela Palgrave Macmillan, escrito por Adrienne Héritier, Katharina L. Meissner, Catherine Moury e Magnus G. Schoeller, tem por objecto de estudo as estratégias de auto-empoderamento institucional (self-empowerment strategies, doravante, estratégias) do Parlamento Europeu (PE) em relação à Comissão Europeia e ao Conselho da União Europeia, no contexto processual da União Europeia (UE). De modo sistemático, os autores começam por criar um modelo teórico que testam ao longo de seis capítulos empíricos. Como proposto pelos editores da colecção, estamos perante um conhecimento profundo das circunstâncias específicas dos casos mobilizados a fim de sustentar um argumento causal e explicativo – é isso que encontramos em European Parliament Ascendant. Este livro não é um manual, é um estudo. Nas primeiras páginas compreendemos como dispomos de um exemplo quase irrepreensível de como levar a cabo um projecto de investigação qualitativo nas mais restritas fronteiras epistemológicas da Ciência Política contemporânea: num discurso que é altamente qualificado, em que é patente o rigor metodológico e a honestidade científica, indiscutível a actualidade do tema e provada a utilidade das questões que levanta, o livro oferece ao leitor, nos seus argumentos e conclusões, uma descrição habilitada reveladora da aplicabilidade de uma tipologia parcimoniosa, oferecendo, ainda, uma sensação propositiva simultânea de incentivo à análise futura ou até à acção política. Um livro de cientistas políticos para cientistas políticos – no máximo, para estudantes especializados ou políticos profissionais –, sem com isso ser, em momento algum, pretensioso ou maçador.

 

CONJECTURAS

O principal contributo teórico da obra para a literatura circundante é a categorização precisa das múltiplas estratégias de parlamentarização dos processos europeus de tomada de decisão adoptadas pelo próprio Parlamento, contrariando os mecanismos de path dependency gerados pela lei escrita e pelos hábitos procedimentais. Um dos pontos de partida do capítulo teórico inicial é o racionalismo neoinstitucional em que, afirmam os autores, a escavação de tais estratégias está por fazer. Das «hipóteses» ou «conjecturas» que ad hoc inserem naquele que é o seu corpo teórico preferencial – a teoria da escolha racional –, validam, em termos abstractos, uma tipologia de estratégias levadas a cabo pelo Parlamento no contexto da política europeia: adiamento propositado de um parecer; ligação temática, trocando concessões políticas por poderes futuros; ligação sectorial, ameaçando prejudicar negociações noutra arena simultânea; alianças com o executivo de Estados-Membros, parlamentos nacionais ou actores não maioritários; acções unilaterais, tornando difícil o regresso ao statu quo ante; e sanções, legais e previstas. O inverso, ou seja, uma edificação teórica não indutiva, ocorre com as restantes estratégias, por sua vez provenientes do pendor normativo do construtivismo social aplicado às relações institucionais. Através de uma breve análise das lógicas de argumentação e retórica construtivistas, como a arquetípica busca da verdade enquanto valor discursivo e a intolerância perante a incoerência consciente, extraem, dedutivamente, as últimas três estratégias: peritagem, facultando e forçando consulta; acusação de vergonha face a retiradas de apoio ao PE; e mobilização de actores externos ou da opinião pública. Entre as hipóteses racionais e normativas está uma lógica de apropriação de valores e um poder negocial relativo. É precisamente desta fricção – como é apresentada pelos autores, entre o racionalismo e o construtivismo – que pode ser apontada a primeira crítica: a base de suporte eleitoral do PE, embora presente nas últimas três estratégias de maneira subentendida, é forte de mais para não constar como fundamento na escala de preferências da tão completa primeira lista, de estratégias racionais. Custa a crer que os actores em causa não acreditem racionalmente na sua legitimidade democrática e dela façam um uso exclusivamente instrumental.

O livro, nos seus capítulos seguintes, limita-se a aplicar – avaliadas as condições necessárias – as conjecturadas estratégias através da congruência teórica comprovada ou falsificada por métodos de process-tracing. Portanto, a testar hipóteses. Em certos contextos, sob dadas condições, determinadas estratégias são mais eficazes do que outras. O processo, no entanto, é invariável. Os autores apresentam o conceito-chave de mudança intersticial como alicerce de um dos seus argumentos cardeais: o de que numa norma escrita o PE procura sempre os seus limites e falhas, não fossem todos os tratados contratos incompletos. É nestes vazios que o PE maximiza a lei a seu favor provocando, por recurso a uma ou mais destas estratégias, mudanças informais no equilíbrio de poder europeu. Com o tempo, o consuetudinário é por pressão do mesmo PE convertido em norma escrita, passível, assim, de ser explorada. É um ciclo vicioso e ininterrupto.

 

ESTE COMBOIO NÃO PÁRA EM ROMA

A segunda parte de European Parliament Ascendant é a mais sólida de todo o livro. De uma maneira sucinta e incisiva, os autores – baseados na sua definição de democracia parlamentar assente no poder legislativo do parlamento, na sua capacidade de eleição do governo e no seu papel determinante nos procedimentos orçamentais – apresentam-nos três narrativas históricas paralelas ao processo global de integração. O propósito é, em todo o caso, demonstrar como os poderes do PE, à altura Assembleia Parlamentar Europeia, não só se sedimentaram como cresceram incessantemente desde a assinatura do Tratado de Roma.

A predilecção pela teoria da escolha racional aplicada ao contexto da UE trespassa uma mensagem de tensão palpável e oficial entre o PE e a Comissão ou o Conselho. E é quase deste modo – com oponentes em lados diferentes da barricada, só em momentos estratégicos colaborantes – que o leitor é convidado a tomar o partido do PE; nessa que se tornou, em boa parte do livro e da história institucional europeia, a luta pela democratização das instâncias de decisão negocial.

Se procurarmos um nível superior de abstracção poderemos afirmar que, no racional dos autores, foram colocados em diálogo analítico dois elementos distintos: os documentos (correspondentes a conjunturas críticas) e os assuntos (questões ou clivagens). Ambos, nos momentos de discussão certos, se apropriados pelas estratégias conjecturadas de forma positiva, conduziram ao fortalecimento do PE. Vale tudo. Declarações, actas, notas, regras, regulamentos, esboços, protocolos, procedimentos, projectos, emendas, adendas, discursos, resoluções, acordos ou tratados. Em todas as ocasiões – por maioria de razão, mormente naquelas que se apresentaram como transfiguradoras da ordem interna da União – o PE procurou inscrever e formalizar poderes que detinha informalmente ou que desejava vir a ter. Da insustentabilidade da Política Agrícola Comum nos anos 1980 à discussão do Quadro Financeiro Plurianual, da criação do Mercado Único às fases de alargamento a novos membros, da queda da Comissão Santer à invenção de um cargo coordenador do Brexit, da definição do Processo Legislativo Ordinário à remodelação forçada da Comissão Barroso, qualquer assunto, sobretudo os dotados de maior visibilidade pública ou especialmente relevantes para a capacidade performativa efectiva ou simbólica do PE – embora esta última de menor importância para os autores –, qualquer matéria considerável, de Roma a Lisboa, foi vista como uma oportunidade.

A terceira parte do livro é a fase de trabalho de campo. Com dois temas gerais, subdivididos em estudos de caso contemporâneos altamente politizados, os autores partem para a aplicação das estratégias a acontecimentos recentes como que para analisarem o ponto actual da situação. Primeiro, motivados pelas consequências da crise financeira, debruçam-se sobre a governação económica da União, relevando os pacotes legislativos (six-pack e two-pack), o Pacto Fiscal Europeu, o Mecanismo Europeu de Estabilidade e a União Bancária. Por fim, seguem para o estudo dos acordos externos no âmbito da Política Comercial Comum, tratando com detalhe o papel do PE no acordo com a cooperativa SWIFT, no Acordo Comercial Anticontrafacção (ACTA), na polémica Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP) e no acordo de comércio livre entre a União e Singapura (EUSFTA). Para cada exemplo, somos confrontados com as estratégias utilizadas – corroboradas amiúde por entrevistas realizadas a actores centrais na decisão – e o seu eventual (in)sucesso em robustecer os poderes formais e informais do pe.

 

DEMOCRACIA?

Os autores propõem, num registo discreto e subliminar, uma alternativa de combate ao défice democrático da UE. Pode não ser a mais eficiente, mas é, sem dúvida, a mais representativa de todas. O caminho é longo e o seu fim não está para breve. Da história de derrotas e vitórias na aplicação de estratégias, conclui-se que há muito por fazer. O plano do Spitzenkandidaten falhou. Se encontramos agora no PE uma iniciativa legislativa de facto em matérias culturais ou que não afectem directamente as economias dos Estados-Membros, está completamente ausente o direito formal à iniciativa legislativa, reservado à Comissão. Situação semelhante se passa com o Conselho e o Orçamento. Os exemplos repetem-se e a sensação é a mesma. Por que parece então, como mencionam os autores en passant na conclusão, que caminhamos mais rapidamente para uma democracia deliberativa legitimada pelo PE do que para uma democracia parlamentar? A grande crítica ao livro, pese embora óbvia e perto de básica, é a de que os autores consideram o PE como um só actor. Contra o individualismo metodológico frequentemente associado à escolha racional, a personagem principal da trama é um actor colectivo, uma instituição. Poderemos sempre discutir a racionalidade de uma instituição, porém, a priori, são os parlamentares, as comissões ou os partidos os verdadeiros interlocutores e aplicadores das estratégias que estão na base deste estudo. Há um favorecimento analítico dos factores estruturais em detrimento dos agentes tangíveis.

Argumenta-se como as «tentativas» de democracia imposta de cima para baixo estão a fracassar por não encontrarem um correspondente de bases – basta observar a abstenção nas eleições de 1979 a 2019. Denunciam-se as listas fechadas ao PE, por castigarem ou recompensarem os partidos atendendo ao seu desempenho nacional. Acusam-se as instâncias deliberativas de se sobreporem às representativas. O problema é que estas críticas certeiras, a par de outras, surgem sem com isso compreender o papel central dos partidos políticos e dos grupos políticos europeus na mediação dos interesses da cidadania e, por conseguinte, da legitimidade popular.

Sob o objectivo de auferir o quão longe no espectro do parlamentarismo está a UE, são inúmeras as comparações do papel estrutural do PE com os seus congéneres nacionais no rumo à democracia parlamentar, acabando os autores por sobrepor categorias partidárias heterogéneas; isto é, os partidos anti-sistema ao nível nacional, embora de peso crescente nos últimos anos e de dimensão variável consoante o país, constituem ainda uma fracção marginal ou, pelo menos, secundária, da representação partidária. Nos restantes partidos, contudo, há um entendimento explícito, constitucional, ou tácito, normativo, sobre os pilares ontológicos da democracia. Ora, o mesmo não acontece à escala europeia. Se, por um lado, temos uma proporcional dilatação da representação eurocéptica e/ou anti-sistémica no PE, por outro, os partidos nacionais, até os mais cartelizados, que enformam os grupos políticos europeus, não concordam entre si quando o assunto se trata de como ou porquê avançar no eixo integrativo na União. Difícil será argumentar que algum deles não defende mais «democracia», no entanto, como se não bastasse esse conceito ser esticado, moldado e revolvido por si só, ao lhe acrescentarmos o adjectivo «europeia» em grau superior será a discordância. O mesmo acontece com os executivos sentados à mesa do Conselho. Os freios e contrapesos da União, apesar de consolidarem os mecanismos de responsabilização mútua, tornaram-se hoje mais densos e opacos. O sistema é tão distinto que mais rapidamente faria sentido observar nos poderes do Conselho um chefe de Estado colectivo, não eleito pelo Parlamento, e nos da Comissão um governo actualmente «eleito» ou «aprovado» pelo PE, intitulando a UE de democracia semipresidencial. Mas nem essa categoria é justa ou sequer válida. Estamos perante um caso único.

 

QUEIRA TERMINAR, SR. DEPUTADO

Não obstante outras eventuais críticas que poderiam ser tecidas ao teor macro do entendimento institucional do PE, terminamos com uma nota positiva. O livro de Adrienne Héritier, Katharina L. Meissner, Catherine Moury e Magnus G. Schoeller é dotado de manifesta elegância na generalidade da sua análise quando falamos da inovação conceptual e da não só possível como preconizada aplicabilidade das suas estratégias a outros casos parlamentares nacionais. Essas, sem dúvida, não são caso único. Recomendamos e aconselhamos a leitura de European Parliament Ascendant a todos os cientistas sociais que se interessem pela política da União de uma maneira geral ou que simplesmente apreciem ler o resultado de uma notável investigação em Ciência Política. A democracia europeia está, num pequeno passo de 200 páginas, mais rica e ampliada.

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