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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.63 Lisboa set. 2019

https://doi.org/10.23906/ri2019.63r03 

RECENSÃO

Cem anos que se esperavam sem confrontos

 

Rosa Ana Pato

ISCTE-IUL | Av. das Forças Armadas, 1649-026 Lisboa | rasrp@iscte-iul.pt

 

ALAN SHARP, Versailles 1919: A Centennial Perspective, Londres, Haus Publishing, 2018, 320 páginas

 

Com a assinatura do Tratado de Versalhes em 1919, o esperado era que a Primeira Guerra Mundial fosse a última grande guerra; porém, não foi isso que veio a ocorrer.

Versailles 1919: A Centennial Perspective é uma obra da autoria de Alan Sharp que foi novamente reeditada em 2018. Sharp é professor emérito de História Internacional e autor de várias obras, de entre as quais The Versailles Settlement: Peacemaking after the First World War 1919-1923.

A obra que aqui se analisa remete-nos para alguns dos legados e contribuições do tratado que terminou com a Primeira Guerra Mundial, o Tratado de Versalhes. A obra começa com uma visão global do tratado, uma vez que as consequências da Primeira Guerra Mundial foram muito mais profundas do que aquilo que se podia esperar quando se iniciou em 1914. Segundo Sharp, não existe qualquer dúvida de que a Primeira Guerra Mundial foi o evento decisivo do século XX. Em 1919, no Pós-Guerra, a Alemanha já não era um império naval rival e quatro grandes impérios tinham colapsado, deixando a Europa de Leste e Central sem governo e fazendo aumentar o medo de que o bolchevismo preenchesse o vácuo de poder se os mediadores das conferências de Paris não agissem rapidamente. Por seu lado, a Alemanha não via este tratado como um sucesso, interpretando-o antes como injusto devido aos altos custos económicos, territoriais e populacionais que acarretava.

 

A QUESTÃO ALEMÃ, O PODER DOS ESTADOS UNIDOS E A FIGURA DE WILSON

Os mediadores das conferências de Paris no final da Primeira Guerra Mundial preocuparam-se em incorporar o Estado alemão no sistema europeu. O futuro da Europa dependia da resolução desta questão, que ocupou os primeiros seis meses de negociações. Woodrow Wilson, Presidente americano, e David Lloyd George, primeiro-ministro inglês, reconheciam que a Alemanha tinha de ser parte da solução e não o problema. Era necessário encontrar meios que permitissem à Alemanha reconfigurar as suas indústrias e contribuir para o desenvolvimento europeu, assim como transformá-la num «good european neighbour» (p. 37).

Sharp explora, também, a ascensão de Hitler ao poder e a Segunda Guerra Mundial. O autor investiga as questões do imediato Pós-Guerra, com a divisão da Alemanha em zonas de ocupação militar que se tornaram na República Federal da Alemanha e na República Democrática Alemã, duas partes desiguais, com a Alemanha Ocidental a constituir perto de dois terços do território. O surgimento de instituições como a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, criada em 1951, e a Comunidade Económica Europeia, em 1957, são temas igualmente abordados.

Alan Sharp dedica um capítulo ao poder dos Estados Unidos. Este país emergiu como líder mundial ao entrar no conflito europeu com a declaração de guerra à Alemanha e ao Império Austro-Húngaro, em 1917. Desta forma, os Estados Unidos envolveram-se em assuntos internacionais e ganharam influência na Europa, principalmente no período entre as duas guerras mundiais. Influências americanas, como a música, os filmes, os métodos industriais e marcas como a Coca-Cola, penetravam no mercado europeu.

Sharp aborda diversos episódios da Guerra Fria no decorrer da sua obra, dos quais se evidenciam o discurso de Churchill sobre a Cortina de Ferro, a Doutrina Truman ou o Plano Marshall. Explora ainda o estabelecimento da nato, a 4 de abril de 1949, cujo objetivo seria a proteção da Europa Ocidental de uma ameaça soviética.

É ainda destacada a figura do Presidente norte-americano, Woodrow Wilson, que deu visibilidade à autodeterminação nacional colocando-a na agenda da ordem internacional. Wilson indicou a falta de oportunidades para vários nacionalismos europeus como a causa principal da guerra em 1914. Esta guerra trouxe o colapso de quatro impérios multinacionais que tinham a autodeterminação como princípio alternativo. A autodeterminação nacional colocou grandes problemas aos mediadores de 1919, impostos pela raça, linguagem ou religião. Fatores linguísticos, administrativos, económicos e comunicacionais tornaram claro que, mais importante que um tratamento de igualdade, era um tratamento baseado na equidade e que as populações locais deveriam ser chamadas a decidir situações-limite. Mesmo assim, surgiram minorias descontentes abrindo a porta ao poder de Hitler e à Segunda Guerra Mundial. Desde essa época, as questões da autodeterminação têm vindo a ser discutidas, pois as suas respostas não são simples. O mérito da introdução e consciencialização da importância destas questões é de Woodrow Wilson, considerado incontornável na obra de Sharp.

 

A LIGA DAS NAÇÕES E AS NAÇÕES UNIDAS

A Liga das Nações, criada após a Primeira Guerra Mundial, e as Nações Unidas, criadas depois da Segunda Guerra Mundial, foram tentativas para constituir uma nova ordem internacional e deveriam impedir a humanidade de entrar num novo conflito. Ambas representam uma evolução na diplomacia anterior a 1914.

A Liga das Nações foi a mais ambiciosa tentativa que os mediadores fizeram para garantir que a Primeira Guerra Mundial não se repetiria. A paz e a segurança eram responsabilidade de todos. No entanto, a proposta de Woodrow Wilson nos chamados «14 Pontos», em 1918, não convenceu os seus aliados. Para além disto, a rejeição por parte do Senado americano fez com que os Estados Unidos ficassem fora da organização, significando que a França e a Grã-Bretanha ficariam como defensoras dos ideais de Wilson. Apesar de ter sido a primeira organização verdadeiramente internacional, a Liga das Nações não cumpriu o seu objetivo – a inibição da guerra –,e a sua dissolução veio a ocorrer em 18 de abril de 1946.

Também as Nações Unidas, organização internacional sucessora da Liga das Nações, foram criadas com o patrocínio de um presidente americano, Franklin D. Roosevelt. A Assembleia Geral das Nações Unidas, antiga Assembleia da Liga das Nações, conta com cinco membros permanentes: China, França, Grã-Bretanha, Estados Unidos e Rússia, cada qual com poder de veto. Se, por seu lado, a Liga das Nações foi projetada para impedir o conflito que precedeu a Primeira Guerra Mundial, as Nações Unidas procuraram desencorajar o engrandecimento territorial que desencadeou a Segunda Guerra Mundial e fornecer uma resposta efetiva à política agressiva, proibindo o uso da força nas relações internacionais.

A Organização das Nações Unidas serviu como um importante auxílio humanitário, de alimentação e ajuda médica em áreas atingidas por conflitos. Muitos destes locais onde as Nações Unidas trabalham nos dias de hoje, são locais reconhecidos pelos mediadores das conferências de Paris de 1919.

Apesar da pretensão da promoção dos direitos humanos e da lei internacional, bem como o incentivo ao desarmamento, as Nações Unidas, assim como anteriormente a Liga das Nações, desapontaram os seus aliados. Contudo, estas organizações permanecem associadas aos conceitos de proteção minoritária, desarmamento e lei internacional, explorados por Sharp ao longo da sua obra. Pretendiam evitar conflitos e distúrbios que impedissem a paz, que são trabalhos em progresso ainda nos dias de hoje.

Os pontos fortes da obra de Sharp não se esgotam naqueles aqui mencionados. É uma obra imprescindível para quem deseja saber mais sobre o desenrolar dos acontecimentos após a Primeira Guerra Mundial, e obrigatória para quem deseja compreender os acontecimentos do século XXI, uma vez que o autor vai para além do que acontece imediatamente após a Primeira Guerra e explora acontecimentos mais recentes fazendo referência ao ataque ao World Trade Center em 2001, aos referendos da Escócia em 2014 e da Catalunha em 2017, bem como ao Brexit. Questões tão atuais como estas são alguns episódios da guerra civil da Síria e da Presidência de Donald Trump, a partir de novembro de 2018.

Esta é uma obra que demonstra as dificuldades nas negociações de paz nas conferências de Paris de 1919 e reflete sobre a reputação e o legado do Tratado de Versalhes. Tal como o autor afirma, a perceção existente é a de uma oportunidade desperdiçada e este tratado é visto como responsável pelo estabelecimento de ditaduras no deflagrar da Segunda Guerra Mundial, em 1939, e nos acontecimentos decorrentes do período da Guerra Fria, ou seja, «the legacy of 1919 would continue beyond 1945» (p. 32).

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