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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.63 Lisboa set. 2019

https://doi.org/10.23906/ri2019.63r02 

RECENSÃO

A aliança entre os níveis internacional e local como solução para a eliminação sustentável da pirataria nas costas da Somália

 

João Almeida Silveira

IPRI-NOVA | Rua de D. Estefânia, 195, 5.º Dt.º, 1000-155 Lisboa | joaosilveira@campus.fcsh.unl.pt

 

GILBERTO CARVALHO OLIVEIRA, «Guerra contra a Pirataria»: Uma Reconstrução Crítica da Intervenção das Nações Unidas contra a Pirataria nas Costas da Somália, Lisboa, ICS – Imprensa de Ciências Sociais, 2018, 333 páginas, ISBN 978-972-671-492-7

 

Em «Guerra contra A Pirataria»: Uma Reconstrução Crítica da Intervenção das Nações Unidas contra a Pirataria nas Costas da Somália, uma publicação da Imprensa de Ciências Sociais, Gilberto Carvalho Oliveira reflete sobre várias intervenções internacionais de combate ao recrudescimento da pirataria somali a partir de 2008.

O livro inclui-se num conjunto alargado de obras que procuram melhorar o entendimento sobre as formas de combate à pirataria. Este combate é apontado como um dever dos estados, por exemplo, pela Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar1.

A execução do dever de ação contra a pirataria não produz uma resposta unívoca. Efetivamente, apesar da antiguidade da prática, os modi operandi, causas, consequências e formas de combate à pirataria evoluíram com as eras. Junta-se a esta evolução, a circunstância de a pirataria assumir características regionais idiossincráticas2.

A resposta à pirataria ao largo das costas da Somália desencadeou uma impressionante mobilização da sociedade internacional, matizada por múltiplas respostas provenientes de estados (individualmente ou em coligação), organizações internacionais (OI), e atores não estatais.

Dada a multiplicidade de respostas e motivos para a mobilização internacional, a obra de Gilberto Oliveira reveste-se de grande interesse e pertinência. É, ainda, uma obra de grande atualidade, visto que, volvida mais de uma década de empenho internacional na região, persistem episódios de ataques ou tentativas de ataques piratas3.

Afora a centralidade do tema da pirataria somali, o livro oferece uma importante reflexão sobre o pensamento subjacente a intervenções internacionais lato sensu. Esta característica torna a obra mais abrangente e de interesse para quem se debruça sobre questões de intervenção e gestão de crises internacionais.

Antes de avançar nesta recensão, é importante clarificar que no âmbito do livro a expressão «intervenção das Nações Unidas (nu)» inclui o conjunto de iniciativas internacionais de combate à pirataria, adotadas na região do Corno de África, nas esferas militar, jurídica e privada (e.g., indústria marítima). Na análise são consideradas iniciativas de agências da Organização das Nações Unidas (ONU), de organizações fora do complexo da ONU – tais como a União Europeia (UE) ou a Organização do Tratado do Atlântico Norte (nato) –, de estados individuais, e de atores privados.

Imbuído de uma visão crítica de cunho construtivista social, o livro faz uma boa articulação entre enquadramento teórico e explicitação empírica. Estruturalmente, está organizado em torno de dois grandes momentos interligados e sequenciais: reconstrução diagnóstica e reconstrução crítica. Esta organização serve bem a obra por ajudar o leitor a compreender os elementos que compõem e justificam os argumentos e conclusões avançados.

 

DICOTOMIA INTERNACIONAL-LOCAL NO ENTENDIMENTO SOBRE O FENÓMENO

O livro defende que as características e efeitos objetivos da pirataria somali eram, em 2008, insuficientes para justificarem uma resposta internacional de caráter coercivo e militar de grande envergadura.

De acordo com o argumento, a pirataria somali foi, durante décadas, submetida a um processo de securitização4 a nível do sistema internacional. É esse processo que justifica uma intervenção da ONU voltada, pelo menos inicialmente, para componentes coercivas nas esferas militar, privada e jurídica.

Recorrendo à teoria da securitização da Escola de Copenhaga, e através de uma análise discursiva exaustiva de atos de comunicação da ONU, indústria marítima, organizações humanitárias e estados, o livro sustenta que a indústria marítima foi o principal agente a desencadear a securitização do dossiê da pirataria.

A indústria investiu na securitização devido aos efeitos negativos da pirataria, nomeadamente, no que respeita a perigos acrescidos para trabalhadores, embarcações e mercadorias, assim como ao aumento dos custos de operação.

Todavia, acrescenta o livro, o processo de securitização foi apenas bem-sucedido quando agências humanitárias o apoiaram (e.g., o Programa Alimentar Mundial). O apoio de agências humanitárias derivou dos efeitos negativos da pirataria para a assistência humanitária às populações da Somália. O elemento humanitário, pelo menos a nível discursivo, foi o principal para atrair o apoio de estados e OI para a intervenção na Somália.

O processo de securitização definiu os piratas como criminosos incomuns (i.e., entre o combatente e o criminoso civil comum). Ademais, enquadrou a pirataria enquanto atividade puramente criminosa, cujos efeitos ameaçam a paz e segurança internacional.

O caráter criminoso da pirataria, bem como os seus efeitos adversos para a paz mundial, justificaram a autorização para o seu combate com recurso a iniciativas de emergência ao abrigo do capítulo VII da Carta da ONU (i.e., uso da força).

A obra contesta a visão inicial sobre o problema. Advoga que a pirataria somali é uma questão eminentemente económica com consequências securitárias, e não o oposto. Utilizando o conceito de «economia política das novas guerras» procede à análise do fenómeno por um prisma local. Encontra na prática pirata elementos de economia paralela (shadow economy), economia de combate (combat economy) e economia de enfrentamento (coping economy). Percebe, assim, que a pirataria está enraizada em vetores socioeconómicos tradicionais do país.

Localmente, a pirataria produz efeitos contraditórios. Se, por um lado, potencia a atividade económica e gera alternativas de subsistência, por outro, impede o desenvolvimento de atividades económicas legais e contribui para a continuidade do conflito interno. A ambiguidade de efeitos origina sentimentos conflituantes na população local. Esta ora apoia a pirataria, ora promove iniciativas eficazes para a conter e eliminar.

Considerando esta forte ligação entre a pirataria e a organização socioeconómica local, o livro defende que a eliminação sustentável da pirataria implica a resolução das suas causas estruturantes (root causes). Ou seja, das condições socioeconómicas que abrigam e potenciam a pirataria. Esta análise encontra grande respaldo na literatura5.

O livro inova na aplicação dos conceitos de economia paralela, de combate e de enfrentamento na caracterização da pirataria somali. O emprego destes conceitos ajuda a melhor entender o fenómeno, por evidenciar com mais clareza a sua complexidade, bem como a sua inextrincável ligação ao contexto social, político e económico do país.

A justaposição entre o entendimento do fenómeno a partir das preocupações internacionais e o entendimento a partir das preocupações locais configura um elemento central na reconstrução diagnóstica. Esta evidencia uma importante dicotomia entre os níveis internacional e local que, para a obra, tem consequências nos resultados da intervenção da ONU.

 

REPENSAR A INTERVENÇÃO DA ONU

Decorrente da reconstrução diagnóstica, o livro procede à reconstrução crítica cuja referência teórico-normativa central é a de paz sustentável.

A reconstrução crítica utiliza a dicotomia internacional-local para expor as características consideradas distorcidas e disformes da intervenção das Nações Unidas. Após a exposição procura esboçar linhas de pensamento alternativas que potenciem intervenções internacionais mais sustentáveis e emancipatórias a nível das vivências políticas, económicas e sociais locais. O objetivo deverá ser, de acordo com a obra, a consolidação de práticas capazes de dirimir conflitos sem recurso à violência.

O livro identifica, a partir de 2010, uma alteração conceptual significativa por parte da ONU, conducente à aplicação de uma abordagem compreensiva6 (comprehensive approach). A nova abordagem denota um novo entendimento sobre a pirataria, visando endereçar as suas causas profundas, e não apenas os seus sintomas. Nesse âmbito, as respostas da ONU passaram a ser articuladas de acordo com o nexo segurança-desenvolvimento, assente em três eixos de ação: dissuasão, segurança e desenvolvimento.

Apesar de promissora, argumenta o livro, a alteração conceptual da abordagem não se traduziu em alterações significativas na intervenção da ONU. Esta manteve-se focada primariamente nos eixos «dissuasão-segurança», e apenas parcialmente no eixo «desenvolvimento».

Acresce que a matriz de intervenção se demonstrou incapaz ou tímida na incorporação de quadros de resposta endógenos à pirataria. A intervenção da ONU optou por seguir modelos e quadros de intervenção próprios.

De acordo com a obra, a população local não se revê nas opções e posturas da intervenção da ONU porque o modelo de intervenção é distante dos modelos tradicionais de organização social, política e económica do país. O parco investimento no eixo «desenvolvimento», associado à utilização de matrizes de intervenção exógenas marcadamente de cunho coercivo, resultou, assim, na desarticulação entre os níveis internacional e local o que, segundo o argumento, impediu a eliminação sustentável das causas estruturantes da pirataria. Para fundamentar o argumento, o livro compara os modelos de intervenção das Nações Unidas com modelos de intervenção sociopolíticos locais.

Salvo algumas exceções, a obra considera a intervenção das Nações Unidas dependente de investimentos técnicos e monetários avultados, desenhada para o curto prazo, e sem capacidade de autorrenovação. Em oposição, considera que as respostas locais exibem um maior grau de eficiência e sustentabilidade por serem oriundas da própria população e integradas nos modelos tradicionais de organização do país. Todavia, falta às respostas locais capacidade de investimento e maiores conhecimentos técnicos para garantir a possibilidade de autorrenovação das suas iniciativas.

Face ao exposto, a obra propõe uma forma híbrida de conceptualizar a resposta à pirataria. Num modelo de resposta híbrida, os recursos e conhecimentos técnicos internacionais devem ser aplicados para potenciar e promover respostas locais. Deste modo, os recursos internacionais auxiliam na emancipação das populações e estabelecem as bases para um combate sustentável à pirataria.

A proposta da obra tem o grande mérito de alertar para a necessidade de adaptação e de diálogo entre modelos e quadros de intervenção internacionais e locais. No entanto, a forma como a obra baliza o termo «intervenção das NU» impede uma análise verdadeiramente holística das intervenções internacionais.

Efetivamente, a abordagem compreensiva, bem como a articulação do nexo «segurança-desenvolvimento», extravasam as esferas militar, jurídica e privada. Ao cingir-se a estas três esferas a obra descorou iniciativas de apoio técnico-diplomático, de desenvolvimento económico, de ajuda ao desenvolvimento, entre outros.

Por exemplo, no âmbito da sua abordagem compreensiva a UE desenvolve ou apoia iniciativas de promoção da economia local, entre as quais se destacam o apoio à regulação do setor das pescas, o combate à pesca ilegal e iniciativas de desenvolvimento de pesca tradicional (e.g., instalação de fishing aggregating devices). Contribui, ainda, para a construção de infraestruturas sociais (e.g., infraestruturas sanitárias). A própria operação militar naval da UE presta assistência médica a locais. Acresce a estas práticas o apoio diplomático e técnico-científico, fulcral, por exemplo, para a definição da zona económica exclusiva da Somália em 20147. Estas tipologias de iniciativas são, grosso modo, ignoradas no livro.

Por não equacionar um leque mais alargado de iniciativas o livro apresenta uma perspetiva parcial da intervenção internacional, o que enfraquece o argumento. Tal não retira valor e mérito científico ao trabalho. Ao contrário, deve acicatar a realização de investigações futuras que o possam complementar.

Com efeito, um dos pontos de grande relevo da obra é o de estimular novas formas de analisar a pirataria, tendo em consideração a forma como as populações locais a percebem, e a necessidade de a sociedade internacional equacionar as realidades e formas de organização tradicionais das zonas recetáculos de intervenções internacionais.

 

BIBLIOGRAFIA

BLANC, Jean-Baptiste; KRUSE, Aurélien; DANG LE, Trung; LEVCHENKO, Andrei A.; MA, Lin; MESKO, Farley; RUIZ, Claudia; SHORTLAND, Anja – The Pirates of Somalia: Ending the Threat, Rebuilding a Nation. Washington: The World Bank, 2013.

BUEGER, Christian; STOCKBRUEGGER, Jan – «Pirates, drugs and navies: why the Western Indian ocean needs a new security architecture». In The RUSI Journal. Vol. 161, N.º 5, 2016, pp. 46-52. doi: 10.1080/03071847.2016.1253375.

BUZAN, Barry; WAEVER, Ole – Regions and Powers. The Structure of International Security. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.

CAMPANELLI, Otello – «The global governance of maritime piracy». In Journal of Global Policyand Governance. Vol. 1, N.º 1, 2012, pp. 73-84. DOI: 10.1007/s40320-012-0006-z.

DE SPIEGELEIRE, Stephan; SWEIJS, Tim; WIJNINGA, Peter – Designing Future Stabilization Efforts. A Haia: HCSS – The Hague Centre for Strategic Studies, 2014.

INTERNATIONAL MARITIME BUREAU – Piracy and Armed Robbery Against Ships – 2013 Annual Report. Londres: International Chamber of Commerce, 2014.

INTERNATIONAL MARITIME BUREAU – Piracy and Armed Robbery Against Ships – 2018 Annual Report. Londres: International Chamber of Commerce, 2019.

KRASKA, James – Contemporary Maritime Piracy International Law, Strategy, and Diplomacy at Sea. Santa Bárbara, CA: Praeger, 2011.

SILVEIRA, João Almeida – EUNAVFOR Atalanta: O Compromisso da União Europeia com a Segurança Global. Braga: Universidade do Minho, 2015.

SILVEIRA, João Almeida – «European Union security: the threat of piracy». In VIII Congresso daAssociação Portuguesa de Ciência Política. Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 2016.

UNITED NATIONS – United Nations Convention on the Law of the Sea, 1998.

 

NOTAS

1 UNITED NATIONS – United Nations Convention on the Law of the Sea, 1998.

2 KRASKA, James – Contemporary Maritime Piracy International Law, Strategy, and Diplomacy atSea. Santa Bárbara, ca: Praeger, 2011.

3 INTERNATIONAL MARITIME BUREAU – Piracy and Armed Robbery Against Ships – 2013 Annual Report. Londres: International Chamber of Commerce, 2014; INTERNATIONAL MARITIME BUREAU – Piracy and Armed Robbery Against Ships – 2018 Annual Report. Londres: International Chamber of Commerce, 2019.

4 Como explicado por Barry Buzan e Ole Waever (promotores da teoria da securitização), securitização refere-se ao processo através do qual um determinado tema ascende na agenda securitária. Ver, por exemplo, BUZAN, Barry; WAEVER, Ole – Regions and Powers. The Structureof International Security. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.

5 Ver, por exemplo, CAMPANELLI, Otello – «The global governance of maritime piracy». In Journal of Global Policy and Governance. Vol. 1, N.º 1, 2012, pp. 73-84. DOI: 10.1007/s40320-012-0006-z; BLANC, Jean-Baptiste; KRUSE, Aurélien; DANG LE, Trung; LEVCHENKO, Andrei A.; MA, Lin; MESKO, Farley; RUIZ, Claudia; SHORTLAND, Anja – The Pirates of Somalia: Ending theThreat, Rebuilding a Nation. Washington: The World Bank, 2013; DE SPIEGELEIRE, Stephan; SWEIJS, Tim; WIJNINGA, Peter – Designing Future Stabilization Efforts. A Haia: HCSS – The Hague Centre for Strategic Studies, 2014; SILVEIRA, João Almeida – EUNAVFOR Atalanta: OCompromisso da União Europeia com a Segurança Global. Braga: Universidade do Minho, 2015; BUEGER, Christian; STOCKBRUEGGER, Jan – «Pirates, drugs and navies: why the Western Indian ocean needs a new security architecture». In The RUSI Journal. Vol. 161, N.º 5, 2016, pp. 46-52. DOI: 10.1080/03071847.2016.1253375.

6 No livro, a terminologia utilizada é «abordagem abrangente».

7 SILVEIRA, João Almeida – «European Union security: the threat of piracy». In VIII Congresso daAssociação Portuguesa de Ciência Política. Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 2016.

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