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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.63 Lisboa set. 2019

https://doi.org/10.23906/ri2019.63r01 

RECENSÃO

A técnica no poder: A ascensão dos tecnocratas ao governo na Europa

 

Pedro Silveira

IPRI-NOVA | Rua de D. Estefânia, 195, 5.º Dt.º, 1000-155 Lisboa | pedro.silveira@fcsh.unl.pt

 

ANTÓNIO COSTA PINTO, MAURIZIO COTTA E PEDRO TAVARES DE ALMEIDA (EDS.) Technocratic Ministers and Political Leadership in European Democracies, Londres, Palgrave Macmillan, 295 páginas

 

Quando Max Weber1 alertou para o perigo de os ministros verem a sua atuação capturada pelos técnicos – já que estes detêm maior know-how –, estava longe de intuir que também eles poderiam chegar em massa ao cargo ministerial. Com efeito, à mesma mesa do conselho de ministros, sentam-se hoje indivíduos com uma vasta experiência política e outros cuja única vivência política se deve ao seu lugar àquela mesa. Em muitos países – incluindo Portugal –, o governo já não é constituído quase exclusivamente por políticos de carreira, porquanto os ministros politicamente inexperientes deixaram de ser casos excecionais, dignos de curiosidade. Porém, pouco se sabe ainda sobre este fenómeno de ascensão dos tecnocratas ao poder. Quão generalizado é na Europa? Quais os seus principais fatores explicativos? Estas são as duas perguntas que orientam o livro Technocratic Ministers and Political Leadership in European Democracies. Em cada capítulo, os autores visaram responder-lhes, tendo em consideração um país (ou conjunto de países) específico – Eslováquia, Espanha, França, Estónia, Hungria, Itália, Letónia, Lituânia, Polónia, Portugal, República Checa, Roménia, Suécia e Turquia. A escolha de poucos casos permitiu a análise profunda de cada um, bem como a discussão comparativa dos resultados finais. Tendo em conta que, como referiremos mais à frente, é contemplada uma pluralidade de fatores explicativos, esta opção revelou-se frutuosa. Cada autor pôde ter em conta o contexto nacional e comparar o peso explicativo de cada fator, deixando uma perspetiva global aos editores. Assim, coube a António Costa Pinto, Maurizio Cotta e Pedro Tavares de Almeida, autores com vasta obra sobre o recrutamento das elites governativas na Europa, utilizar o primeiro e o último capítulos para proporcionar ao leitor um enquadramento teórico e um olhar panorâmico sobre os resultados.

 

CURSUS HONORUM: O FIM DE UMA ERA?

Esta obra enquadra-se na mais recente tendência literária de (re)problematização dos resultados sobre o recrutamento ministerial. Na verdade, muitos dos autores deram anteriormente contributos pioneiros para responder à pergunta «Quem governa?» nos seus países e visaram agora aprofundar esses resultados e compreender as suas causas. Neste contexto, o enfoque no estudo do perfil tecnocrático dos ministros é particularmente pertinente. Por um lado, permitiu identificar uma variável dependente específica e, por outro, estabelecer pontes com a literatura sobre governo, políticas públicas e qualidade da democracia. Ademais, proporcionou a reavaliação e atualização dos estudos clássicos sobre elites políticas na Europa2.

Tradicionalmente, estes estudos apontavam para a valorização do cursus honorum, ou seja, de um percurso político gradual e pré-definido como condição da nomeação para o governo. Os ministros apenas poderiam aspirar ao cargo depois de uma longa carreira política, em particular no partido e no parlamento. Porém, se em alguns países (como o Reino Unido ou a Bélgica) essas credenciais políticas continuam a ser vitais, em muitos outros elas têm perdido relevância. Assim, tem despontado um pouco por toda a Europa uma elite governativa menos politizada e mais especializada. Entre ela contam-se, para além das celebridades, indivíduos com competências técnicas diferenciadas – os tecnocratas.

Este livro conceptualiza os ministros tecnocratas como os que, antes da sua primeira nomeação, não tinham sido deputados ou dirigentes partidários (pp. 19-20). Seguindo esta operacionalização, os autores reconhecem que a generalidade dos países analisados tem um número muito significativo destes ministros (atingindo os 58% na Turquia, entre 1950 e 2011). No entanto, a partir daqui os resultados deixam de ser tão lineares. Por um lado, na França, na Roménia, na Itália e na Suécia, a proporção de tecnocratas é muito menor, não ultrapassando os 16% na França (entre 1958 e 2014). Por outro, não se confirma uma tendência unívoca de aumento dos tecnocratas. Apesar de serem poucos os casos em que se pode fazer essa leitura no longo prazo (França, Itália, Suécia, Turquia, Portugal e Espanha), a tendência de crescimento apenas é clara para a Itália e Portugal. A principal explicação sugerida para estas diferenças assenta no facto de os países com menos tecnocratas terem democracias mais antigas (com exceção da Roménia), pelo que os dados remontam a uma época em que a partidocracia era maior após a implantação do regime democrático.

 

GOVERNO DE PARTIDOS SEM NOMEAÇÕES PARTIDÁRIAS?

Para enquadrar teoricamente e problematizar estes resultados, os autores utilizam a teoria da delegação democrática, que perspetiva a democracia representativa como uma cadeia de delegação entre eleitores, parlamento, governo e administração pública3. Apesar de nem todos os autores a utilizarem de modo sistemático (veja-se, por exemplo, a diferença entre o capítulo sobre a Suécia e o capítulo sobre a França), ela está presente como pano de fundo em todos os capítulos e é sobremaneira útil para justificar a relevância do perfil dos agentes ministeriais no funcionamento concreto da democracia. Adicionalmente, utiliza-se como referencial teórico o «governo de partidos» (party government), que enfatiza o papel fundamental do partido no parlamento e no governo4. Segundo este modelo, para influenciar estas instituições (e assegurar a ligação com a escolha dos eleitores), o partido dispõe de três mecanismos fundamentais: nomeações, políticas e patrocinato. Tendo em conta o primeiro destes mecanismos – as nomeações –, o livro permite avaliar empiricamente em que medida (e por que razão) os partidos deixaram de ser decisivos na escolha dos ministros.

Neste contexto, são tidos em conta vários fatores que, tanto do lado da oferta como da procura do recrutamento ministerial, podem ser prejudiciais à lógica do governo de partidos. Do lado da oferta encontram-se os fatores que criam a necessidade de um determinado tipo específico de ministros. São fatores externos ao governo e dizem respeito ao sistema de governo, ao sistema eleitoral, à existência de crises económicas, à integração europeia e à idade da democracia. Do lado da procura estão os fatores que influenciam a existência (ou inexistência) de um determinado tipo específico de ministros. Entre estes encontram-se o tipo de governo (coligação ou minoritário e maioritário ou minoritário), a fragmentação governativa e parlamentar, a personalização do governo e o declínio dos partidos. A importância relativa de cada um e a sua capacidade explicativa variam de país para país. Se, por exemplo, as crises económicas foram determinantes para aumentar o número de tecnocratas na Itália, elas não produziram o mesmo efeito em Portugal ou na Espanha.

 

OS TECNOCRATAS NA EUROPA: PERGUNTAS E RESPOSTAS

Um olhar global para os resultados nacionais permite concluir que os fatores explicativos mais relevantes são a personalização do governo e o enfraquecimento dos partidos. O primeiro refere-se à tendência de reforço da posição do chefe do executivo face aos seus ministros5. O segundo reflete o declínio organizacional e ideológico dos partidos, com efeitos na sua capacidade para atrair quadros especializados para as suas fileiras6. Estas conclusões revelam que prevalecem os fatores internos ao governo (ou seja, do lado da oferta) e, em particular, aqueles que operam no longo prazo. Porém, admite-se que os resultados são pouco conclusivos e que ainda se está longe de uma explicação compreensiva do fenómeno (p. 285).

Uma das fragilidades que pode estar na origem desta conclusão prende-se com a tipologia utilizada. Como os editores reconhecem, a dicotomia entre ministros com experiência política e sem experiência política pode ser limitativa, já que existem indivíduos com perfis híbridos, que combinam competências políticas e técnicas. Além disso, cada um destes polos é compósito: um perfil técnico não se sobrepõe necessariamente a um perfil especializado e um perfil político não se esgota nos cargos partidários e parlamentares. A utilização de várias tipologias teria permitido uma reavaliação dos mesmos dados e, porventura, resultados mais contundentes.

Assim, tendo em conta os dois objetivos iniciais – o mapeamento do fenómeno e a sua explicação –, a obra concretiza melhor o primeiro. Em qualquer caso, adianta muitas pistas para o aprofundamento do segundo. Graças à riqueza dos dados – tanto a nível nacional como comparativo –, para além de fornecer algumas respostas, permite suscitar várias perguntas. Neste sentido, como qualquer «clássico imediato», este livro possibilita uma constante descoberta de linhas de investigação inovadoras ou ainda pouco desenvolvidas. Por exemplo, a diferenciação dos tecnocratas no que toca à sua carreira pós-governativa, à sua duração no governo ou ao seu status e funções no cargo são temas abordados – e em alguns capítulos com recurso a dados – e que merecem estudos específicos. Ademais, se o perfil tecnocrático da elite ministerial é encarado neste livro como variável dependente, fica em aberto o seu tratamento como variável independente. Ou seja, ficam por explorar as consequências deste aumento de tecnocratas no governo. A accountability foi prejudicada? A confiança nas instituições governativas alterou-se? A performance melhorou? Este é, afinal, um dos grandes méritos do livro: percorre um caminho e mostra o horizonte.

 

BIBLIOGRAFIA

BLONDEL, Jean; COTTA, Maurizio, eds. – The Nature of Party Government: A Comparative European Perspective. Nova York: Palgrave, 2000.

BLONDEL, Jean; THIÉBAULT, Jean-Louis, eds. – The Profession of Government Minister in Western Europe. Londres: Macmillan, 1991.

DALTON, Russell J.; WATTENBERG, Martin P. – Parties without Partisans: Political Change in Advanced Industrial Democracies. Oxford: Oxford University Press, 2002.

GERTH, Hans H.; MILL, C. Wright, eds. – From Max Weber: Essays in Sociology. Nova York: Oxford University Press, 1946.

POGUNTKE, Thomas; WEBB, Paul, eds. – The Presidentialization of Politics: A Comparative Studyof Modern Democracies. Oxford-Nova York: Oxford University Press, 2005.

STRØM, Kaare – «Delegation and accountability in parliamentary democracies». In EuropeanJournal of Political Research. Vol. 37, N.º 3, 2000, pp. 261-290.

 

NOTAS

1 GERTH, Hans H.; MILL, C. Wright, eds. – From Max Weber: Essays in Sociology. Nova York: Oxford University Press, 1946, p. 232.

2 Por todos, BLONDEL, Jean; THIÉBAULT, Jean-Louis, eds. – The Profession of Government Minister in Western Europe. Londres: Macmillan, 1991.

3 STRØM, Kaare – «Delegation and accountability in parliamentary democracies». In European Journal of Political Research. Vol. 37, N.º 3, 2000, pp. 261-290.

4 BLONDEL, Jean; COTTA, Maurizio, eds. – The Nature of Party Government: A Comparative European Perspective. Nova York: Palgrave, 2000.

5 POGUNTKE, Thomas; WEBB, Paul, eds. – The Presidentialization of Politics: A Comparative Study of Modern Democracies. Oxford-Nova York: Oxford University Press, 2005.

6 DALTON, Russell J.; WATTENBERG, Martin P. – Parties without Partisans: Political Change in Advanced Industrial Democracies. Oxford: Oxford University Press, 2002.

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