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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.63 Lisboa set. 2019

https://doi.org/10.23906/ri2019.63a01 

DO TRATADO DE VERSALHES À CRISE DO INTERNACIONALISMO LIBERAL

 

Nota introdutória

O centenário do Tratado de Versalhes e da criação da SdN marca o fim do internacionalismo liberal?

 

Nuno Severiano Teixeira e David Castaño

IPRI-NOVA | Rua de D. Estefânia, 195, 5.º Dt.º, 1000-155 Lisboa | nst@unl.pt davidmfcastano@hotmail.com

 

Em 1919, o Presidente dos Estados Unidos, Woodrow Wilson, apresentou uma proposta para a criação de uma «Sociedade das Nações» (SdN). Era sua intenção instituir uma nova ordem internacional que, alicerçada nos então novos conceitos de cooperação internacional e de autodeterminação, pusesse a guerra fora da lei, fosse capaz de assegurar uma paz justa e duradoura, através da negociação permanente e da elaboração de leis internacionais que garantissem não apenas um novo equilíbrio entre os antigos beligerantes, mas algo que até então nunca tinha sido experimentado.

O internacionalismo liberal, que foi ensaiado pela primeira vez há cem anos mas que apenas viria a vingar depois de um segundo conflito mundial, está hoje ameaçado. É neste contexto, em que, por um lado, se procura evocar uma efeméride e, por outro, se pretende identificar as crises e ameaças que colocam em causa a continuidade da ordem liberal, que se edita este número da revista Relações Internacionais, onde se integra um dossiê dedicado a esta temática, composto por três artigos que oferecem uma dupla visão quer sobre o passado, quer sobre o presente e o futuro.

O primeiro texto, da autoria de Mónica Dias, debruça-se precisamente sobre essa intenção do Presidente norte-americano e lembra-nos que a entrada dos Estados Unidos na guerra foi justificada como «uma causa superior» e como uma via para se pôr fim a «todas as guerras». Ou seja, como uma garantia do estabelecimento de uma nova ordem de paz e de liberdade democrática que deixasse de assentar na lógica do equilíbrio de poder, mas que, através de um complexo sistema de proteção mútua e observação permanente, condicionasse a conflitualidade e a anarquia e as substituísse por um sistema de responsabilidade global capaz de evitar o recurso à violência. Traçando o percurso de vida de Woodrow Wilson, Mónica Dias sublinha a importância da formação do 28.º Presidente norte-americano e a sua experiência de vida, marcada na infância pela guerra civil e pela reconstrução, na sua ação como Presidente, dando também particular atenção aos contactos que Wilson manteve com vários intelectuais (internacionalistas, pacifistas e legalistas) que desde o início do século XX estavam empenhados na procura de soluções que viabilizassem uma pacificação nas relações entre estados. Este percurso singular e estes contactos, estabelecidos entre os dois lados do Atlântico, foram fundamentais para a germinação e posterior aplicação do seu projeto para uma nova ordem internacional. No entanto, essa aplicação não seria bem-sucedida em grande medida porque, ao contrário do que preconizava o Presidente norte-americano, o Congresso nunca chegou a ratificar o Tratado de Versalhes, impedindo assim que os Estados Unidos viessem a liderar a construção dessa nova ordem. A defesa do tratado e da SdN feita por Wilson depois do seu regresso da Europa é também retratada e analisada por Mónica Dias, que afirma que o conjunto de discursos proferidos pelo Presidente em setembro de 1919 em dezenas de cidades dos Estados Unidos constitui não apenas um «tratado de internacionalismo progressista», como defendeu Thomas Knock, mas a defesa da ideia de que sem a participação dos Estados Unidos a nova ordem não seria sustentável. É que, como é sublinhado a SdN era apenas um meio e não um fim, que exigia a participação e o envolvimento de todos, em especial da nova potência em ascensão, que devia ser uma parte ativa no processo, uma vez que a reconstrução da Europa dependia em grande parte do apoio dos Estados Unidos que, por sua vez, também retirariam benefícios nos mercados de uma Europa reconstruída. O artigo termina chamando a atenção para a oposição de Wilson ao que considerava ser um excesso de medidas punitivas atribuídas à Alemanha, levando-nos a questionar como poderia ter sido diferente a história do século XX, caso os Estados Unidos não tivessem voltado a isolar-se após a Grande Guerra.

Centrado também no Tratado de Versalhes, o artigo de Nuno Canas Mendes relaciona o conceito wilsoniano de autodeterminação, consagrado como um dos «14 Pontos» estabelecidos pelo Presidente norte-americano, e o modo como este conceito foi recebido pelos seus pares, como o posicionamento de Portugal e o impacto da emergência deste novo conceito na política externa portuguesa. Canas Mendes sustenta que apesar da mudança de paradigma e da substituição do sistema de equilíbrio de poder pelo sistema de segurança coletiva preconizado por Wilson ter espoletado novos desafios e encargos para Portugal, a ideia de autodeterminação acabaria por ficar mitigada e que nem mesmo o Presidente norte-americano entendia que o conceito de autodeterminação deveria ter a mesma aplicação na Europa Central e Oriental que no continente africano, na Índia ou na Ásia. Não obstante, a criação do sistema de mandatos, que visava garantir a gestão dos territórios controlados pelos antigos impérios alemão e otomano e a consagração de uma estrutura internacional que supervisionava os territórios coloniais, forçou mudanças e contribuiu, segundo o autor deste artigo, para animar o debate interno sobre a política externa e a questão colonial e está na origem da publicação em Portugal dos primeiros trabalhos e estudos que procuravam conciliar a política externa portuguesa com a política internacional, naqueles que seriam os primeiros passos do novo campo disciplinar das Relações Internacionais.

Finalmente, Licínia Simão analisa as crises da ordem liberal. Começando por sustentar que se trata de crises, no plural, e não de uma crise, na medida em que os desafios e as ameaças à estrutura erguida após a Segunda Guerra Mundial têm origens diferentes e são diversos, embora interdependentes, a autora procura identificar os elementos constitutivos da estrutura da ordem liberal que nos nossos dias são postos em causa, sublinhando que existem visões distintas sobre a sua génese. A primeira, que em seu entender constituiu em si mesma um exercício de poder estrutural e que está na origem da teoria do fim da história, é aquela que difunde a ideia de que a ordem liberal do Pós-Guerra resulta da conjugação de esforços de um grupo de líderes que, recém-saídos da hecatombe, promoveram a afirmação dos princípios de cooperação multilateral no comércio e na defesa e estiveram na origem de um longo período de paz e crescimento económico que fomentou a expansão da democracia liberal e do capitalismo a nível global nas décadas seguintes. A segunda, no extremo oposto, descreve a ordem liberal como uma ordem de violência imperialista, conduzida por uma potência hegemónica, ou como uma ordem de progresso desigual promotora de injustiças sociais que, sob o manto da ordem liberal dos direitos humanos, teria abandonado os princípios da não ingerência e promovido princípios que apenas beneficiam alguns atores do sistema internacional.

Para Licínia Simão, a convivência destas duas narrativas é reveladora das contradições inerentes ao sistema liberal que apresentava na sua origem, além do ideal democrático, a promessa do progresso económico e social. Esta «relação virtuosa» entre democracia liberal e globalização económica, que era sustentada politicamente e militarmente pelos Estados Unidos, é atualmente contestada quer por forças internas, quer por forças externas ao sistema. Entre os diversos desafios que se colocam à ordem liberal, a autora chama a atenção para o facto de entre os principais elementos estruturantes da ordem liberal internacional estar a relação entre democracia e capitalismo, o que cria uma ordem internacional muito dependente da natureza interna das unidades que a constituem. Por isso, Licínia Simão afirma que a crise da ordem liberal «está profundamente ligada à qualidade e legitimidade da democracia», o que lhe permite estabelecer uma ligação com a emergência das forças populistas como um dos maiores desafios a essa ordem. Por outro lado, a autora chama também a atenção para o facto de a crise financeira de 2008 ter revelado as limitações de um sistema capitalista que foi progressivamente desregulado, ao mesmo tempo que uma potência emergente ensaiava uma até agora bem conseguida política de crescimento e desenvolvimento económico baseada num modelo misto de mercado e gestão estatal.

Parte importante deste artigo é dedicada à crise da hegemonia norte-americana. Para a autora, a eleição de Donald Trump é um sintoma e uma causa do fim da liderança norte-americana da ordem liberal esboçada pelo seu antecessor Woodrow Wilson. Além de serem apontados diversos exemplos da marginalização dos princípios da ordem liberal por parte da atual presidência, chama-se a atenção para o facto de algumas potências procurarem alterar a ordem vigente num momento em que os Estados Unidos parecem não estar interessados em manter a anterior hegemonia no sistema que, em grande parte, elaboraram e erigiram…

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