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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.62 Lisboa jun. 2019

https://doi.org/10.23906/ri2019.62r03 

RECENSÃO

 

O mundo de Trump

 

José Gomes André

FLUL | Alameda da Universidade, 1600-214 Lisboa | josegomesandre@gmail.com

 

TIAGO MOREIRA DE SÁ E DIANA SOLLER, Donald Trump: O Método no Caos, Lisboa, Dom Quixote, 2018, 232 páginas

Donald Trump: O Método no Caos tem um objetivo ambi-cioso, mas da maior importância: lidando com um contexto ambíguo, associado ao polémico Presidente norte-americano, encontrar ainda assim um fio condutor ideológico e político que explica e orienta a sua mundividência e ações políticas. Este não é portanto um livro sobre Trump, o homem, mas sobre Trump, o político, com o propósito de descrever as suas ideias e princípios, não como uma soma de opiniões aleatórias, mas como possíveis inferências lógicas de premissas substantivas e (mais ou menos) sólidas.

Tal empresa é levada a cabo por Tiago Moreira de Sá e Diana Soller – dois autores muito competentes para enfrentar este desafio com sucesso. Falamos de dois académicos e investigadores, com vasta obra publicada e amplo conhecimento da realidade política norte-americana, currículo ao qual juntam grande experiência na comunicação social, normalmente comentando assuntos políticos ligados aos Estados Unidos. Esta combinação resulta num livro de grande qualidade, que concilia o rigor de um exercício académico (descrição de grandes doutrinas, sobretudo no domínio das Relações Internacionais; análise cuidada de documentação; comentários pertinentes sobre a bibliografia temática) com uma linguagem clara e uma exposição didática, tornando o livro acessível ao grande público.

O primeiro capítulo, intitulado «Porquê Donald Trump?», procura identificar o quadro social, ideológico, político e económico que explica a sua rápida ascensão e triunfo. São enunciadas quatro causas estruturais, a primeira das quais se refere à descrição do «jacksonianismo populista» (seguindo a taxonomia de Walter Russell Mead), que os autores consideram como expressão identitária máxima de Trump. Trata-se de uma ideologia com grande tradição na história norte-americana, que despreza os aspetos técnicos e institucionais do exercício político, dando prevalência a atores políticos capazes de se identificarem com o cidadão comum e interpretarem adequadamente as suas aspirações. Baseado num radicalismo democrático e numa cultura individualista, o jacksonianismo populista está obcecado com um «passado glorioso» e a necessidade de «mudar as regras do jogo», ideias que Trump tornou em verdadeiros slogans de campanha.

Em segundo lugar, é mencionada a reemergência da «comunidade folk», assente numa forte tradição religiosa evangélica, culto da família e da tradição, ideais nacionalistas, alguma xenofobia e grande desconfiança da hierarquia política, do governo federal e da chamada identity politics. Não é difícil adivinhar que esta comunidade, até há pouco tempo relativamente marginal na sociedade norte-americana, tem vindo a crescer exponencialmente (ou a manifestar-se de forma mais clara...), formando o núcleo duro do eleitorado de Trump.

Num terceiro momento alude-se à crise económica da última década (que muito afetou as classes média e baixa), da qual resultou uma maior clivagem social e económica, libertando os «demónios interiores» da própria América, com um discurso público mais agressivo contra as classes altas, certas ordens profissionais e grupos como os imigrantes, por exemplo. É neste contexto que surge a retórica de Trump, sem restrições do «politicamente correto», violenta, por vezes mesmo aviltante – mas agora aceite por uma comunidade que se revê nessa postura, ao ponto de entender que «Trump diz o que nós sentimos», ainda que o agora Presidente norte-americano nada tenha a ver em termos sociais, culturais ou económicos com o «homem comum» dos Estados Unidos.

Por fim, é referida a crise do Partido Republicano, quer em termos ideológicos quer organizativos (pelo desgaste provocado pelo Tea Party e lutas de grupos políticos com linhas de orientação muito distintas), que deixou a porta aberta para que um outsider, sem relações partidárias ou políticas relevantes, acabasse por ganhar as primárias e tornar-se o seu representante na Casa Branca.

Após esta exposição, que nos deu conta não só do contexto que «viu nascer» Trump, mas também de algumas das linhas ideológicas que marcam a sua mundividência, o livro debruça-se, nos capítulos seguintes (2 a 4), a avaliar o seu impacto na política externa do Presidente norte-americano. A principal ideia a destacar é a desconfiança de Trump face à chamada «ordem internacional liberal», que os próprios Estados Unidos ajudaram a moldar desde o início do século XX e que tem constituído uma das marcas mais sólidas não só da sua estratégia mundial desde então, mas também do que podemos designar como a «estrutura fundamental» da geopolítica no último século.

Esta desconfiança assenta na perceção de que os Estados Unidos se encontram num declínio progressivo, tendo perdido influência no xadrez mundial. Tal convicção contrasta com a descrição de um passado mais ou menos mitificado, no qual não só essa relevância teria sido preponderante, como decorreria de uma ascendência diretamente relacionada com os «valores americanos», entretanto abandonados. É neste contexto que podemos ler o célebre slogan de Trump «Make America great again». Por outro lado, entende-se que, na construção daquela ordem internacional liberal, os Estados Unidos terão adotado uma postura demasiado branda face aos restantes países, assente numa lógica «diplomática» que descurou a sua autoridade. Uma vez que a mundividência de Trump assenta num pessimismo antropológico radical, não é difícil concluir para o Presidente norte-americano que aquela atitude chocou com as forças mais negativas intrínsecas aos restantes estados, enfraquecendo a posição norte-americana. Encarando o mundo numa perspetiva maquiavélica, Trump olha para os Estados Unidos antes da sua chegada ao poder como «aquele Estado que, ao procurar comportar-se sempre como pessoa de bem, acaba por se perder no meio de tantos que não o são», parafraseando uma passagem de O Príncipe.

Como os autores do livro sublinham, destas leituras resulta a convicção de que os Estados Unidos «devem ser novamente respeitados». Pouco importa se há uma necessidade efetiva de reposição desta autoridade, uma vez que a mundividência jacksoniana se baseia em «intuições» e não sobre «factos», e uma análise ponderada nesta matéria apenas revelaria desde logo um sinal de fraqueza. Juntando a esta índole a sua própria formação como «homem de negócios», Trump prefere seguir algo a que chamaria o seu «instinto», que no campo político se transformou numa dinâmica extremamente reativa ao que julga serem os motivos do «declínio americano». Mais do que uma doutrina própria, o que está em causa é portanto advogar o oposto do que está na base da ordem internacional que tornou possível esse declínio.

É neste sentido que melhor se compreendem as suas relações privilegiadas com figuras políticas marginais no quadro europeu (nomeadamente da extrema-direita), elogios a líderes autoritários (Putin, Kim Jong-un, entre outros), a desvalorização do projeto europeu, incluindo um apoio claro ao Brexit, as suas críticas ao funcionamento da nato (particularmente antagónicas àquela que sempre foi a política externa norte-americana), ou a forma como menospreza aliados permanentes ou tradicionais.

Paralelamente, Trump não perde uma oportunidade para criticar as organizações internacionais, retirar ou diminuir a participação dos Estados Unidos em acordos globais (o caso do Acordo de Paris é sintomático), defender a reorganização das instituições económicas mundiais, propor medidas protecionistas e substituir acordos multilaterais por acordos bilaterais. Embora muito variadas, estas ações fazem, no fundo, parte de uma estratégia coerente que se pauta por uma postura crítica face ao internacionalismo liberal e defesa de um certo isolacionismo ou, no mínimo, de uma clara preferência pelos interesses norte-americanos, que «devem ser defendidos a todo o custo», mesmo que tal implique uma revolução na política externa dos Estados Unidos.

Curiosamente, e porventura devido à carência de uma ideologia estruturada, a «mundividência jacksoniana» confere à política externa de Trump uma índole ambígua, pois junta a esta lógica isolacionista matizes antagónicos, em particular uma retórica agressiva e referências habituais ao hard power. Trump olha o mundo como um cenário de forças mais ou menos anárquicas, repleto de estados vorazes, que se digladiam num jogo de soma nula, onde prevalecem os seus interesses e nada mais. Neste quadro, cada um está por sua conta, podendo recorrer a alianças de conveniência, cabendo aos Estados Unidos fazer valer a sua superioridade moral e o seu poder político e militar (se necessário).

Daí ser frequente o recurso em Trump a uma visão maniqueísta (do tipo «nós contra os outros»), alicerçada num primado nacionalista, que se traduz numa retórica belicosa contra a China, o Irão e a Coreia do Norte (e por vezes a Rússia). Estas declarações, porém, parecem ser mais subsidiárias do princípio de que «é preciso fazer respeitar a América» do que planos de intervenções efetivas. Na prática, Trump tem preferido entregar matérias de segurança aos países envolvidos na região, mesmo em zonas problemáticas do globo (como o Médio Oriente), sendo até possível suspeitar que esta retórica visa sobretudo defender os interesses comerciais e económicos dos Estados Unidos, e não um desejo de promover alterações políticas e institucionais dos atores envolvidos.

Naturalmente, esta estratégia consigna vários perigos, sendo destacados no livro sobretudo dois problemas: em primeiro lugar, a nova «geometria de alianças» da Administração Trump desvaloriza a importância de uma relação privilegiada com países democráticos, que agrava não só as relações com aliados tradicionais, mas parece desprezar a própria ideia de democracia liberal (os ganhos potenciais das relações internacionais, sobretudo em matérias económicas e de segurança, superiorizam-se a considerações institucionais, questões de direitos humanos ou outros elementos associados ao «regime político e social»); por outro lado, este «solipsismo político» norte-americano pode criar um vazio de poder no quadro internacional, alvo da cobiça de potências muito mais imprevisíveis como a Rússia ou a China.

Embora não hesitem em expor as deficiências – ou, mais exatamente, os aspetos problemáticos do pensamento de Trump – os autores do livro adotam ao longo de toda a obra uma postura essencialmente neutra. O seu objetivo não é conduzir o leitor numa determinada leitura, mas sim providenciar-lhe elementos para elaborar o seu próprio juízo. Também aqui este é um livro com muitos méritos, escapando-se a uma tendência comum na análise sobre a política norte-americana, extremamente opinativa, simplista, por vezes mesmo jocosa. Os autores respeitam a matéria sobre a qual se debruçaram, mostrando respeito intelectual pelo leitor – e isso é um facto de relevo no mundo editorial de hoje.

Ainda assim, fica a ideia de que a obra poderia ter sido mais ambiciosa. Compreende-se o enfoque dado à política externa de Trump, tanto pela formação dos autores, como pelo interesse do leitor português, mas a ausência de referências à política doméstica empobrece um pouco a análise. Mesmo que de forma sucinta, teria sido importante fazer alusões a matérias como a política ambiental e a imigração (temas que são aliás interconexos com a política externa), ou sobre política de saúde ou temas fiscais e económicos, de modo a melhor compreender a ideologia do Presidente norte-americano.

Também do ponto de vista organizativo, lamenta-se a ausência de uma conclusão, não tanto como um mero resumo dos argumentos apresentados, mas talvez em jeito de análise prospetiva, lançando de algum modo aquilo que poderemos esperar da Administração Trump no futuro, a partir dos princípios expostos anteriormente. Embora isso suceda amiúde ao longo do livro, poderia ser útil uma análise mais compacta que permitisse antever algumas das principais linhas de ação política de Trump nos meses (anos?) vindouros.

Porém, na verdade, talvez um capítulo deste género fosse contraditório com o objetivo do livro. Afinal de contas, os seus autores têm o propósito de descrever o method in madness de Trump, como se afirma na introdução, crendo ser possível expor vários princípios de uma ideologia coerente que orienta a sua conduta. Porém, tendo em conta aquilo que sabemos da personalidade de Trump (que não pode ser totalmente apartada da figura política e é marcada pelas suas diatribes pueris no Twitter, uma manifesta falta de sentido de Estado e um temperamento instável) e aquilo que conhecemos da sua Presidência até ao momento (marcada por uma instabilidade flagrante na sua Administração, políticas erráticas, avanços e recuos permanentes), a que se junta a sua péssima relação com os democratas (que agora controlam a Câmara dos Representantes), realizar esse exercício prospetivo seria uma empresa hercúlea. Talvez haja simplesmente demasiada madness em Trump para lhe adivinhar os passos futuros.

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