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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.62 Lisboa jun. 2019

https://doi.org/10.23906/ri2019.62r02 

RECENSÃO

 

Tempos decisivos: O general e a democracia

 

Maria Inácia Rezola

IHC e ESCS-IPL | Av. Berna, 26 C, 1069-061 Lisboa, e Campus de Benfica do IPL, 1549-014 Lisboa | irezola@escs.ipl.pt

 

DAVID CASTAÑO

Eanes e a Democracia. Lisboa, Penguin Random House, 2018, 556 páginas

Depois de Soares e a Revolução1, David Castaño retoma a história da construção do Portugal democrático com Eanes e a Democracia, obra lançada em finais de 2018. Soares e aRevolução gravita em torno da figura do líder histórico do PS, enfatizando o seu papel na definição da nova ordem e analisando a sua estratégia e intervenção nos conturbados anos de 1974-1975. Eanes e a Democracia, por seu lado, tem como referência inicial o ano da institucionalização da democracia representativa (1976) – de que a eleição de Ramalho Eanes como Presidente, por sufrágio direto, livre e universal, é um dos símbolos –, e acompanha os caminhos, nem sempre fáceis ou lineares, percorridos até à revisão constitucional de 1982. Assim, a nossa primeira advertência dirige-se aos que procuram uma biografia de Ramalho Eanes. Ainda que esta obra o tenha como protagonista central, e incida sobre um período particularmente importante da sua carreira, Eanes e a Democracia não é uma biografia do General stricto sensu mas antes o que poderíamos classificar como uma biografia da normalização e consolidação democrática.

Com uma escrita cativante e cuidada, a que o seu autor já nos habituou, que ajuda a superar aspetos menos conseguidos em termos de paginação, Eanes e a Democracia vem colmatar uma lacuna historiográfica dado que a normalização democrática tem sido essencialmente analisada pelo prisma da ciência política, sendo raros os historiadores que ousaram aventurar-se no estudo do período2.

Apesar das restrições impostas pela legislação que estabelece o regime dos arquivos, ao longo das últimas décadas foram progressivamente disponibilizados importantes acervos documentais. Da mesma forma, assistimos à emergência de uma nova geração de historiadores, sem memória vivencial do período, portadora de uma perspetiva renovada sobre esses momentos centrais do Portugal contemporâneo. Em suma, muitos dos argumentos utilizados para justificar a ausência de estudos historiográficos sobre a democratização encontram-se ultrapassados, como o trabalho de David Castaño bem o prova.

Eanes e a Democracia é um estudo rigoroso e profusamente documentado. O leque de fontes utilizado é impressionante, justificando algumas ausências, como a do Arquivo Ernesto Melo Antunes (PT/TT/EMA) ou o do próprio general Ramalho Eanes (que ainda se encontra por tratar e organizar). À imprensa da época (incontornável nos estudos sobre o período), David Castaño juntou fontes secundárias (entrevistas, memórias, testemunhos) e, sobretudo, fontes primárias, nomeadamente as provenientes dos arquivos do Departamento de Estado norte-americano, da Fundação Mário Soares e do Conselho da Revolução (CR). O seu minucioso trabalho de fontes é acompanhado de interpretações e leituras críticas que abrem importantes pistas para uma análise dos caminhos da democracia portuguesa e deixam patentes as qualidades de David Castaño como historiador. Em suma, estamos perante um livro de leitura obrigatória para todos os que pretendem recordar ou conhecer o processo de consolidação democrática.

Dividida em dez capítulos, numa lógica cronológico-temática, esta obra inicia-se com uma introdução que recupera alguns dos momentos centrais do período revolucionário. No entanto, é com a eleição, por sufrágio direto e universal, de Ramalho Eanes como Presidente da República (27 de junho de 1976), que esta biografia verdadeiramente se inicia:

«Um ano depois do Verão Quente de 1975 […], Portugal tinha uma Constituição, uma Assembleia, um Presidente da República e um Governo. Terminara o período de “transição revolucionária”, mas ainda não se podia falar em consolidação de uma democracia de tipo ocidental» (p. 44).

Tendo como linha estruturante o processo de progressiva afirmação de Ramalho Eanes, em diferentes domínios da vida nacional, no período de 1976 a 1982, o CR ocupa, inevitavelmente, um lugar importante nesta narrativa. É apresentado como um organismo político-militar que, sobrevivendo ao fim da Revolução, vê a sua presença na vida política crescentemente contestada e é perpassado por uma permanente tensão interna. Veja-se, a este respeito, o debate sobre o alcance do poder militar, travado entre os conselheiros «operacionais» e os «políticos», no verão de 1976 (cap. 2).

A análise das correlações de forças que se foram estabelecendo no CR leva David Castaño a dar grande protagonismo aos conselheiros que, ainda que em menor escala que durante o PREC, continuaram a dispor de algum poder e influência. Da mesma forma, examina o comportamento político das chefias militares e as suas relações com os diferentes centros de poder e atores políticos; a intervenção e posicionamento dos partidos políticos e dos seus dirigentes; e, entre outros, o comportamento e estratégias dos oito governos empossados por Ramalho Eanes, entre julho de 1976 e outubro de 1982. Traduzindo uma multiplicidade de fórmulas governativas (governos monopartidários minoritários e maioritários, de iniciativa presidencial, de coligação, etc.), a experiência governativa desses anos deixa patente a constante procura de soluções para a instabilidade, mas também as possibilidades que, a esse respeito, o sistema político português permitia.

Na verdade, este é um livro sobre política e sobre a vida política portuguesa, na viragem dos anos 1970 para os anos 1980. Um livro que recupera momentos significativos mas também o papel de figuras como Mário Soares, Sá Carneiro ou Francisco Pinto Balsemão, e a sua complexa relação com o General.

Ex-líbris da tensão que pautou as relações entre Ramalho Eanes e Mário Soares é a exoneração do então primeiro-ministro do II Governo Constitucional, no verão de 1978, na sequência do fim do acordo que o suportava (PS-CDS) (pp. 156 e seg.). Também difíceis, se não tempestuosas, foram as relações de Eanes com o líder histórico do PSD, retratado, na sua tese de doutoramento3, como um político ambicioso e movido por um único objetivo: a tomada do poder. A sua estratégia para desacreditar o CR antes e, sobretudo, com a candidatura de Soares Carneiro – o general em quem a Aliança Democrática (AD) aposta para derrotar Eanes –, é detalhadamente descrita. Segundo Castaño, esta candidatura – que teve o «desejado efeito desestabilizador nas Forças Armadas», expondo clivagens e alimentando tensões – teve igualmente o condão de reavivar o CR que então se encontra num estado «pré-vegetativo» (p. 332).

No amplíssimo elenco desta biografia da consolidação democrática sobressai também a figura de Francisco Pinto Balsemão. Deixando patente que, também neste caso, as relações com Ramalho Eanes nem sempre foram fáceis, Castaño recupera um episódio significativo para compreender a figura do então Presidente da República. Preocupado com a «ofensiva de cerco», montada pela própria ad, contra o chefe do VII Governo Constitucional, no verão de 1981, Eanes sai publicamente em apoio de Pinto Balsemão manifestando a sua confiança política no seu governo (p. 400).

Apesar da dificuldade no relacionamento com alguns dos atores da consolidação democrática, Ramalho Eanes contou com um sólido e fiel círculo de apoio onde pontificam nomes como os de Loureiro dos Santos, apresentado nesta obra como figura central para a concretização da estratégia política e militar do General.

A par da experiência dos governos de iniciativa presidencial (cf. cap. 4), dos sucessivos episódios de tensão entre Belém e São Bento, do processo de recandidatura de Eanes à Presidência da República, esta biografia da consolidação democrática apresenta ainda, com particular detalhe, o tenso e arrastado processo de revisão constitucional. Tema central do capítulo 9, a questão está presente desde o início da obra (cf. debate sobre as propostas/esboços da Lei de Defesa Nacional de 1977). Como pano de fundo, a controversa «morte» do CR – uma trama em que Ramalho Eanes assume incontornável protagonismo dado conciliar, como observa David Castaño, «três tipos de legitimidade que lhe conferiam uma elevada abrangência de poderes»: legitimidade eleitoral, legitimidade revolucionária e «uma legitimidade funcional ao acumular a Presidência da República com a chefia das Forças Armadas» (p. 46). Esta concentração de funções, poderes e legitimidades acabaria por se revelar fundamental no processo de transição constitucional, sendo «o elemento mais importante a ter em consideração quando se analisam as relações entre o Presidente da República, o Conselho da Revolução e os partidos políticos representados na Assembleia da República neste período crucial» (p. 46).

Comandante supremo das Forças Armadas (CEMGFA), presidente do CR e Presidente da República, Ramalho Eanes emerge assim como a peça chave da consolidação democrática – ideia central do livro. É retratado como o chefe militar que, defendendo o regresso à hierarquia tradicional e a separação dos poderes militares e políticos, opera a difícil domesticação das Forças Armadas e do CR, conquistando um elevado e reforçado poder sobre as Forças Armadas. É o político a quem são proporcionadas condições para enveredar por soluções bonapartistas mas que lhes resiste, não transcendendo os limites que a Constituição lhe impõe em termos de poderes (ainda que os explore ao máximo). E é o político e o militar firme, mas paciente, que modera conflitos e gere equilíbrios (por vezes muito precários) com grande mestria, e que constrói – passo a passo, medida a medida, «mexida» a «mexida», nomeação a nomeação – o seu caminho.

No seu discurso da tomada de posse como primeiro-ministro do I Governo Constitucional (23 de julho de 1976), Mário Soares refere-se ao general Eanes como «o símbolo do espírito do 25 de Abril, restituído à sua pureza inicial em 25 de novembro». Depois de ler este livro, outra conclusão se torna necessária:

«Ramalho Eanes, o chefe militar eleito Presidente por sufrágio direto dos portugueses, foi o principal responsável pela subordinação do poder militar ao poder político legítimo e por assegurar a normalidade constitucional na transição democrática que se completou no fim do seu segundo mandato, com a eleição do primeiro Presidente civil» (p. 504).

 

BIBLIOGRAFIA

CASTAÑO, David – Mário Soares e a Revolução. Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2013.

EANES, António Ramalho – Sociedade Civil e Poder Político. Universidade de Navarra, 2006. Tese de doutoramento; texto policopiado.

REIS, António, dir. – Portugal Contemporâneo. Lisboa: Publicações Alfa, 1992, vol. 6.

REIS, António, coord. – Portugal – 20 Anos de Democracia. Lisboa: Círculo de Leitores, 1994.

 

NOTAS

1 CASTAÑO, David – Mário Soares e a Revolução. Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2013.

2 Merece, a este respeito, uma referência particular o trabalho pioneiro desenvolvido por António Reis em obras como REIS, António, dir. – Portugal Contemporâneo. Lisboa: Publicações Alfa, 1992, vol. 6, ou REIS, António, coord. – Portugal – 20 Anos de Democracia. Lisboa: Círculo de Leitores, 1994.

3 EANES, António Ramalho – Sociedade Civil e Poder Político. Universidade de Navarra, 2006. Tese de doutoramento; texto policopiado.

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