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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.62 Lisboa jun. 2019

https://doi.org/10.23906/ri2019.62a06 

TRINTA ANOS DO FIM DO COMUNISMO: O REGRESSO DOS NACIONALISMOS - ENSAIO BIBLIOGRÁFICO

 

Compreender os nacionalismos na Europa do pós-Guerra Fria

 

Alberto Cunha

ISCSP – ULisboa | Rua Almerindo Lessa - 1300-663 Lisboa | albertojcunha@gmail.com

 

Para melhor compreender o presente e o futuro, nunca se deve descurar o estudo do passado. As duas obras a analisar foram publicadas no início dos anos 1990 e são leituras essenciais para o estudo de um dos fenómenos dominantes do nosso tempo: o nacionalismo. A sua leitura e análise poderá (deverá?) ajudar a explicar o renascimento desta ideologia na Europa do pós-Guerra Fria e até mesmo a mais recente vaga de líderes nacionalistas eleitos no século XXI: desde Putin e Erdogan, a Orbán e Trump.

Algumas ressalvas iniciais serão úteis para o leitor: por um lado, deve ser referido que as duas obras e as suas conclusões poderão mais facilmente ser associadas a um nacionalismo de cariz «étnico», na linha do pensamento de Anthony D. Smith1, e aplicado ao caso dos Balcãs por Maria Todorova; por outro lado, o espaço temporal da sua publicação deve ser considerado como especialmente relevante; as duas obras foram publicadas nos anos 1990, uma década caracterizada, na Europa Central e Oriental, pela emergência do nacionalismo como forma de preenchimento de um vazio ideológico causado pela queda do bloco socialista. O fenómeno do nacionalismo a emergir num vácuo ideológico não era um fenómeno específico dos anos 1990; ao invés, a emergência de fenómenos nacionalistas ao longo da história tem sido especialmente visível em momentos de turbulência socioeconómica, com a Alemanha de Weimar a constituir um exemplo clássico no contexto europeu privilegiado nas duas obras aqui analisadas.

No caso concreto dos fenómenos nacionalistas que (re)emergiram no contexto político europeu que se seguiu à Guerra Fria, estes têm-se distinguido pela sua durabilidade temporal (em alguns casos, como o da Hungria, resistindo ao efeito potencialmente atenuante da adesão à UE), bem como, no caso balcânico, pela sua dimensão violenta e racial-religiosa.

Até pela predominância dos fenómenos acima referidos nos países da Europa Central e Oriental, surgiu nos primeiros anos que se seguiram à queda do Muro de Berlim toda uma literatura que identificou o nacionalismo como a ideologia predominante do pós-leninismo e a base do que se previa ser a Europa Central e Oriental do futuro. O que torna a análise destas duas obras ainda mais relevante em 2019 é o facto de fenómenos de cariz nacionalista terem na última década vindo a generalizar-se, ou pelo menos a mobilizar-se, num tipo de regiões com um passado histórico e estrutura social e política de tradição mais liberal (ou «ocidental»), em comparação com os estados que estiveram «do outro lado» da Cortina de Ferro até 1989.

Seja em países mais «ocidentais» ou mais «orientais», os nacionalismos europeus do pós-Guerra Fria tendem a partilhar certas características que os distinguem do que era observável na primeira metade do século XX, e que podem ser agrupadas da seguinte forma:

  • Em primeiro lugar, são nacionalismos definidos não raras vezes como uma «luta» ou «resposta» contra a globalização. Este fenómeno, contra o qual reagem estes nacionalismos, manifesta-se em várias encarnações, seja por movimentos migratórios, tratados de comércio livre internacionais ou instituições de partilha de soberania a nível internacional ou europeu, como a UE (o tradicional Bogeyman dos nacionalismos europeus do século XXI).
  • Em segundo lugar, e ao contrário do que sucedeu nos anos 1930, os fenómenos nacionalistas do pós-Guerra Fria escolhem frequentemente «jogar o jogo» democrático, não apresentando deste modo, necessariamente, tendências autoritárias. Talvez por este motivo, tem sido recentemente popularizada a expressão de «democracia iliberal» para caracterizar regimes como a Rússia, a Turquia ou a Hungria (e podendo ser facilmente aplicável à Jugoslávia e à Croácia nos anos 1990). Estes regimes tendem a ser dominados por um «homem forte» – casos de Putin, Orbán, Erdogan e, de certa forma, Trump –, que se popularizam e legitimam a sua liderança através da promoção de políticas e valores nacionalistas que lhes permitem alcançar sucessivas vitórias eleitorais.
  • Adicionalmente, os fenómenos de nacionalismo das últimas três décadas devem ser distinguidos do racismo biológico e mesmo do totalitarismo prevalente nos anos 1930 e 1940 na Europa. De facto, a memória histórica da Segunda Guerra Mundial está ainda demasiado viva na Europa para que tais ideais não sejam totalmente desacreditados internamente e alvo de imediata pressão internacional; o que nem sempre é suficiente, como no caso da Bósnia, em meados da década de 1990.

Deve ser notado, no entanto, que, fora da Europa, tendem a ser ainda mais comuns fenómenos de nacionalismo ligados a algum tipo de limpeza étnica, como no caso do Ruanda em 1994 ou dos genocídios na Somália entre 1988 e 1991.

 

O(S) CONCEITO(S) DE NACIONALISMO

O conceito de nacionalismo é um dos mais populares e ao mesmo tempo mais controversos no âmbito das ciências sociais. Este é um termo com vasto uso académico, dotado de um campo de estudo e certas teorias próprios. Adicionalmente, é também um termo com uma forte conotação política, podendo esta conotação ser negativa ou positiva, dependendo da orientação política, nacionalidade ou mesmo etnia do indivíduo em questão. O nacionalismo, definido como o sentimento de identificação com uma nação e apoio à persecução dos seus interesses nacionais (se necessário em detrimento dos interesses de outras nações), surgiu na Europa a partir de finais do século XVIII e inícios do século XIX, tendo ganho força após a Revolução Francesa e as Guerras Napoleónicas.

No entanto, o estudo do nacionalismo como fenómeno interdisciplinar é bastante mais recente e as suas origens podem ser datadas do tempo da Primeira Guerra Mundial. Durante a Guerra Fria, período marcado pelo fenómeno da descolonização e da criação de numerosos novos estados no Terceiro Mundo, académicos de diferentes disciplinas das ciências sociais debruçaram-se sobre um tema que era presença assídua em vários conflitos militares, mesmo que passado para um segundo plano de mediatismo, em comparação com a narrativa dominante, a da luta global entre socialismo e capitalismo. Foi neste contexto que foram lançadas as bases para as primeiras teorias do nacionalismo, sendo de destacar os nomes de historiadores como Eric Hobsbawm, Carlton Hayes, Ernest Gellner ou Hans Kohn, como estando na base de alguns dos ensaios mais relevantes da época.

Com o fim da Guerra Fria, estas teorias ganharam uma nova relevância, num período de mudança radical de paradigma geopolítico mundial e europeu. De modo a melhor compreender a evolução do espaço europeu, nomeadamente no que diz respeito à Europa que se dizia «de Leste» antes de 1989, era necessário perceber qual a identidade nacional dos países que tinham sido libertados da esfera soviética, bem como os novos estados que se formaram como legado do fim da Guerra Fria. Esta identidade nacional poderia assumir uma dimensão problemática, como tinha sido o caso nas décadas anteriores a 1945, e de facto foi o que aconteceu na ex-Jugoslávia. No seu conjunto, e apesar do sentimento geral de prosperidade na Europa Ocidental combinado com um certo triunfalismo do capitalismo ocidental, a dissolução da União Soviética, em conjunto com o fim dos seus satélites e a dissolução violenta da Jugoslávia, causaram um aumento das tensões nacionalistas na Europa («adormecidas» ou subordinadas à lógica da confrontação entre o espaço socialista e ocidental) sem precedentes desde 1945.

As duas obras a analisar partem de perspetivas diferentes, e têm em comum o facto de não abordarem de forma direta o conceito de nacionalismo: estes não são livros sobre movimentos ou sobre a teoria nacionalista. Ao invés, partindo da análise histórica de dois fenómenos bem distintos, o «balcanismo» e o «leninismo», vão de encontro a algumas das premissas básicas do chamado nacionalismo «étnico», presente por exemplo na obra de Anthony D. Smith.

As obras de Todorova e Jowitt têm um aspeto crucial em comum, o foco na Europa Central e Oriental, uma região marcada no último século pelos legados do fim dos quatro impérios que durante séculos dominaram a maior parte deste território: o Alemão (Sacro Império Romano-Germânico até 1806), o Austro-Húngaro, o Russo e o Otomano. O facto de esta região ser hoje composta por países com menos de um século (em vários casos, menos de três décadas) significa que existe uma maior necessidade de sustentar os estados na continuidade de uma identidade nacional, seja ela orgânica ou naturalmente existente, ou «artificialmente» promovida pelas autoridades governamentais de cada país.

 

OS NACIONALISMOS «ÉTNICOS» DOS BALCÃS

No caso de Todorova, o seu foco é restrito aos Balcãs, mas nem por isso menos complexo. De facto, Todorova dedica vários dos capítulos de Imagining the Balkans a tentar definir os limites dos Balcãs, que em muitos casos estão mais relacionados com as crenças defendidas pelas várias identidades nacionais desta região, e não por uma análise meramente geográfica. Em suma, da obra de Todorova pode ser depreendido que os Balcãs são, acima de tudo, uma região idealizada, e que as fronteiras dos Balcãs e a definição do que faz ou não faz parte desta região2 são em grande medida uma construção social, apenas parcialmente baseada em considerações geográficas.

A pertença de uma determinada nação a esta região significa, acima de tudo, uma identificação com certas características que têm sido ao longo dos séculos associadas ao termo «Balcãs», normalmente negativas e largamente definidas pelos visitantes e estudiosos «ocidentais» – um paralelo que liga esta ideia de «balcanismo» ao conceito de «orientalismo» de Edward Said3. No fundo, a obra de Todorova descreve como o Ocidente define em grande parte o que são os Balcãs, em paralelo à descrição de Edward Said de como o Ocidente define o que é o «Oriente». Deve, aliás, ser referido que logo no prefácio da sua obra a autora começa por reconhecer de forma humilde a sua enorme dívida intelectual em relação a Edward Said.

O «balcanismo» de Todorova refere-se, tal como o conceito original de Said, a uma imagem construída («imaginada», de acordo com o título da obra) pelo Ocidente em relação à região. A obra de Todorova começa por mergulhar nas origens etimológicas da própria designação desta região, desvendando que a expressão «Balcãs» foi pela primeira vez utilizada por um geógrafo alemão que erroneamente tomou a cadeia montanhosa dos Balcãs, no Norte da Bulgária, como sendo a principal marca geográfica da região. Não admira, portanto, que a Bulgária seja um dos países, ao contrário por exemplo da Grécia, onde a definição «Balcãs» ou os estudos ditos «balcânicos» mais são incorporadas pela sua identidade nacional e pela própria ideologia nacionalista búlgara.

A imagem ocidental em relação aos Balcãs, sempre negativa, ganhou ao longo dos últimos dois séculos uma dimensão de tal forma forte, que termos como «balcanização» são rotineiramente utilizados nas línguas europeias como designando uma situação de caos e divisão, mesmo que em casos sem qualquer ligação aos Balcãs! Um dado interessante e que, de certa forma distingue claramente os «Balcãs» do «Oriente», é o facto de os próprios habitantes dos Balcãs se identificarem, ou pelo menos aceitarem (parcial ou totalmente), a validade de alguns dos elementos associados pelo Ocidente aos Balcãs enquanto, simultaneamente, procuram rejeitar tais considerações ou estereótipos. Deste modo, a identidade das nações balcânicas incorpora, ainda que implicitamente ou mesmo relutantemente, algumas das características associadas à imagem ocidental dos «Balcãs».

Ao longo de Imagining the Balkans, Todorova desvenda, por vezes com alguma ironia, várias das histórias e experiências que ajudaram a criar na mente do Ocidente a ideia do que são os Balcãs, perenemente associados a termos como «divisão» e «lutas locais», por contraposição negativa a um Ocidente percecionado como um mundo mais desenvolvido e ordenado. Esta idealização dos Balcãs pelo Ocidente (o acima referido «balcanismo») foi significativamente reforçada por episódios como o deflagrar da Primeira Guerra Mundial ou o desmembramento violento da ex-Jugoslávia nos anos 1990. Não por acaso, a obra de Todorova foi publicada em 1997, no meio de uma década de horríveis conflitos violentos entre as várias nações da ex-Jugoslávia.

Para melhor compreender a ligação entre a evolução do conceito de «balcanismo» e o fenómeno do nacionalismo nos Balcãs, a historiadora faz uma ligação com a herança das civilizações que habitaram na região e nomeadamente a importância do legado do Império Otomano. O livro descreve, de forma apaixonada, mas objetiva, o modo como as diferentes memórias e estereótipos de cada um dos povos balcânicos lentamente foram evoluindo para a construção de diferentes identidades nacionais, mas sempre em conjunto com a progressiva evolução de uma identidade superior às suas nações, a identidade balcânica. Consoante os casos, esta identidade regional foi sendo mais ou menos aceite; por exemplo, na sua Bulgária natal a identidade nacional é largamente aceite como «balcânica»; na vizinha Roménia, em contraste, a memória nacional prefere reforçar a pertença da nação romena ao mundo latino, consubstanciada na sua língua e na influência cultural francesa. Deste modo, o próprio nacionalismo tipicamente «balcânico» é definido pela contradição de um rejeitar e/ou abraçar do «balcanismo» popularizado no Ocidente e as diferenças entre países como a Roménia e a Bulgária dependem mais de construções sociais e da história dos povos locais do que de considerações geográficas.

Este processo de formação de identidades nacionais através de mitos, histórias e memórias, como descrito por Todorova, pode ser relacionado com uma das correntes mais importantes dos estudos do nacionalismo, o «etnossimbolismo» de Anthony D. Smith. Este autor, tal como Todorova, privilegia os fatores culturais na construção da identidade nacional, com mitos e memórias coletivas que são utilizados (de forma exata ou através da manipulação ou mesmo até deturpação de certos factos históricos) como forma de construir e consolidar um sentimento de pertença a uma mesma nação – seja no caso dos estados-nação, mas também em nações que (ainda?) não possuem Estado, como a nação curda ou a catalã.

Na sua obra de 1991, Smith lista cinco atributos fundamentais da identidade nacional: a existência de um território histórico, coloquialmente designado por «pátria»; mitos comuns e memórias históricas; uma cultura comum a todos os membros da nação; direitos e deveres legais comuns para todos os membros; a existência de uma economia com mobilidade territorial para todos os membros4. Todos estes fatores são ilustrados ao longo das histórias e relatos que fazem do livro de Todorova um guia de introdução único aos Balcãs e à natureza muito própria das identidades nacionais desta região do continente europeu.

 

A (RE)EMERGÊNCIA DOS NACIONALISMOS NO PÓS-LENINISMO

A obra de Jowitt foi publicada em 1992, reunindo uma coleção de ensaios escritos entre 1974 e 1992 que se concentram nas características e evolução dos regimes leninistas. A obra foi publicada logo após a dissolução oficial da União Soviética (que se deu em dezembro de 1991, com a demissão de Gorbachov), num contexto de enorme incerteza sobre qual a evolução política, económica e social do espaço pós-soviético e dos ex-satélites soviéticos da Europa Central e Ocidental. Na introdução ao livro, Jowitt refere como os ensaios pretendem capturar «o caráter, desenvolvimento, extinção e legado» da ideologia leninista.

Os primeiros seis ensaios definem a ideologia leninista e a sua evolução desde a Revolução Bolchevique até à subida ao poder de Gorbachov. Mas as conclusões mais interessantes podem ser encontradas nos três últimos artigos que, tendo sido escritos ainda antes do fim da União Soviética, apresentam pistas muito interessantes sobre o que se previa para o pós-leninismo. Estes últimos ensaios contrariam o otimismo prevalente nos meios académicos e políticos, no início da década de 1990, sobre a transição para a democracia ocidental a efetuar na Europa de Leste, mais famosamente expressa em 1992 por Francis Fukuyama5.

Ao longo da obra, os vários ensaios vão descrevendo a forma como o desenvolvimento do leninismo foi marcado por uma adaptação dos seus princípios centrais às condições sociopolíticas existentes em cada um dos países. Deste modo, quando se deu o fim destes regimes, seria previsível que o vazio provocado pelo fim da ideologia leninista conduzisse a um renascer das forças nacionalistas. Em vários dos ensaios, que tendem a ser provocadores ou pelo menos controversos, os vários autores descrevem o processo de imposição progressiva do leninismo como ideologia dominante às populações (começando pela russa), mencionando os processos de coletivização, industrialização, aparelhos de repressão ou a necessidade de existência de uma figura carismática.

No caso do leninismo soviético, o projeto de Lenine foi, desde a génese, o da associação do carisma ao próprio partido e à revolução socialista, que deveria teoricamente estar acima de todas as outras considerações ao longo do regime soviético. Crucialmente, tal não aconteceu, com a ideologia leninista a ser frequentemente superada pelo pragmatismo político. Ao invés, vários dos líderes socialistas cooptaram em determinados momentos históricos a ideologia nacionalista como forma de consolidar e legitimar a sua liderança. Os líderes soviéticos e dos satélites da Europa de Leste usaram repetidamente símbolos e memórias nacionais como forma de associar a sua ideologia a uma continuidade histórica nacional – mais uma vez a presença do «etnossimbolismo» – que permitisse legitimar o seu poder e também diferenciar os seus regimes dos regimes socialistas dos países vizinhos.

São numerosos os exemplos que podem ser mencionados: a referência de Estaline a uma Grande Guerra Patriótica aquando da invasão alemã e o recurso à memória de figuras como Pedro, o Grande ou a czarina Catarina; a tentativa de recuperação da herança prussiana por parte da Alemanha de Leste; o complexo equilíbrio entre identidade jugoslava e as identidades das suas repúblicas, que apenas puderam ser unidas (temporariamente, como se viria a verificar) através da liderança política e carismática do marechal Tito, alicerçada na memória do seu papel primordial na resistência jugoslava ao ocupante nazi durante a Segunda Guerra Mundial. No caso da Jugoslávia socialista, com o marechal Tito a ter de enfrentar o acima referido puzzle étnico que viria a explodir após a sua morte, foi ainda necessária a implementação de uma estrutura de tipo federal aliada a uma autonomia do bloco soviético que deu maior espaço de manobra à liderança jugoslava durante a Guerra Fria.

Em suma, no livro de Jowitt, existe, tal como em Todorova, uma frequente referência a vários dos elementos-chave identificados por Anthony Smith na sua definição de «identidade nacional». Uma das metáforas finais do livro é reveladora, com o autor a associar as imagens da bandeira romena que as multidões erguiam durante a transição para a democracia ao estado das identidades nacionais na região – esta era a mesma bandeira do tempo do leninismo, mas com um buraco no lugar dos símbolos socialistas; a previsão do autor do ensaio era de que a identidade nacional iria recuperar o essencial das estruturas e instituições do anterior período, removendo apenas os traços visíveis do leninismo, tal como na bandeira. Uma visão um tanto pessimista, apenas atenuada por um eventual apoio previsto por parte da Europa Ocidental, e que mais tarde se viria a materializar na adesão da maior parte destes estados à UE, mais de uma década após estes acontecimentos.

Com o benefício da retrospetiva, é possível argumentar que, no caso da ex-Jugoslávia, foi o atraso do Ocidente na prestação de tal apoio que contribuiu para que os fantasmas nacionalistas se manifestassem de forma extremamente sangrenta nos anos que se seguiram à publicação da obra de Jowitt, mesmo tendo em conta as características muito específicas do fenómeno da ex-Jugoslávia.

 

OS NACIONALISMOS COMO IDEOLOGIA DO SÉCULO XXI?

São várias as pistas para o presente e futuro que podemos e devemos retirar das análises de Todorova e Jowitt, num contexto de aparente renascer dos nacionalismos, nomeadamente com a eleição de numerosos «homens fortes» com uma mensagem profundamente nacionalista ou no mínimo patriótica e não raramente aliada a um sentimento anti-imigração; sentimento que, em muitos países europeus, está em consolidação, se não em franco crescimento desde o início do século XXI. Com o advento da globalização das comunicações, da economia e dos transportes, muitos observadores do pós-Guerra Fria (com destaque para o já referido Fukuyama) manifestaram a esperança na criação de uma comunidade global em que as tensões nacionais e o espírito de competição entre os estados-nações pudessem ser essencialmente canalizados para a esfera económica, conflitos que o Ocidente pretendia harmonizar com a Organização Mundial do Comércio e a definição de regras internacionais.

Após mais de duas décadas sobre a publicação das obras aqui analisadas, é justo considerar que várias das previsões menos otimistas sobre a Europa do pós-Guerra Fria se revelaram igualmente como sendo as mais resilientes e realistas, como é o caso dos autores dos três últimos ensaios recolhidos por Jowitt na sua obra, leitura que é reveladora de muitos dos fenómenos que vieram a ocorrer no espaço europeu que terminou em 1989 a sua experiência leninista. Porquê? Porque mesmo na próspera Europa, o consumismo não chega para definir quem somos e para onde vamos, pois um indivíduo é bastante mais do que um mero consumidor num mercado global (o Homo economicus que pela primeira vez foi identificado no final do século XIX, no auge da Revolução Industrial). De facto, com o globalizar da sociedade e em consequência da nossa própria existência, são cada vez mais os indivíduos que sentem a necessidade de pertencerem a uma comunidade que ao mesmo tempo os identifica e os diferencia do resto dos seres humanos: a identidade nacional como uma espécie de família alargada.

O exemplo da disputa entre a atual Macedónia do Norte e a Grécia é emblemático da importância atribuída pelas comunidades nacionais ao seu sentido de identidade própria, e aos símbolos, figuras históricas e nomes a ela associados – a prova viva da relevância contínua das teorias de Anthony D. Smith. Numa região em que, como demonstra Todorova, o sentimento de pertença a uma nação é mais forte do que as fronteiras desenhadas no mapa (o que teve consequências desastrosas nos anos 1990), o povo e as autoridades gregas simplesmente recusaram aceitar que o novo Estado que surgiu na ex-República Jugoslava da Macedónia adotasse uma designação que o colocaria como o herdeiro da civilização macedónia e de líderes como Alexandre, o Grande. Para mais, rezavam os argumentos helénicos, a Macedónia dos tempos clássicos situava-se maioritariamente no território da atual Grécia, uma região ainda hoje designada como Macedónia (Mακεδον?α).

Na sequência do histórico acordo que transformou a «Antiga República Jugoslava da Macedónia» (assim designada por exigência internacional, pendente de um acordo com a Grécia) em «Macedónia do Norte», é instrutivo perceber que, nos dois países, houve enorme oposição a um acordo que trará enormes benefícios económicos e políticos, nomeadamente à Macedónia do Norte, que vê assim aberto o seu caminho a uma eventual entrada na nato e na ue. Se mais dúvidas persistissem sobre a pertinência atual de estudar os fenómenos nacionalistas na Europa, não seria necessário ir mais longe do que esta negociação internacional em torno da defesa das respetivas identidades nacionais – sem objetivos de alteração de fronteiras ou uma disputa em torno de recursos naturais.

Em jeito de conclusão, não posso terminar sem confirmar o enorme prazer que tive em ler, experienciar e pensar sobre as obras The New World Disorder: The Leninist Extinction e Imagining the Balkans, que permanecem leituras fundamentais e absolutamente atuais, apesar de terem sido publicadas há mais de duas décadas. Para quem quer perceber o presente e o futuro dos fenómenos nacionalistas (com destaque para a sua dimensão europeia e em particular na Europa Central e Oriental) este será um excelente ponto de partida.

 

BIBLIOGRAFIA

FUKUYAMA, Francis – The End of History and the Last Man. Nova York: Free Press, 1992.

JOWITT, Ken – The New World Disorder: The Leninist Extinction. Londres: University of California Press, 1992.

SAID, Edward – Orientalism. Nova York: Pantheon Books, 1978.

SMITH, Anthony D. – The Ethnic Origins of Nations. Oxford: Blackwell Publishers, 1986.

SMITH, Anthony, D. – National Identity. Londres: Penguin Books, 1991.

TODOROVA, Maria - Imagining the Balkans. Nova Iork: Oxford University Press, 2009.         [ Links ]

 

NOTAS

1 Ver SMITH, Anthony D. – The Ethnic Origins of Nations. Oxford: Blackwell Publishers, 1986; e SMITH, Anthony, D. – National Identity. Londres: Penguin Books, 1991.

2 Esta é uma discussão tão antiga como a própria designação de «Balcãs», mas que ainda é bem atual; basta apelidarmos a Grécia ou a Roménia de países balcânicos para a polémica ser mais que certa…

3 Ver SAID, Edward – Orientalism. Nova York: Pantheon Books, 1978.

4 Ver SMITH, Anthony, D. – National Identity, p. 14.

5 Ver FUKUYAMA, Francis – The End of History and the Last Man. Nova York: Free Press, 1992.

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