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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.62 Lisboa jun. 2019

https://doi.org/10.23906/ri2019.62a02 

TRINTA ANOS DO FIM DO COMUNISMO: O REGRESSO DOS NACIONALISMOS

 

Nacionalismo: back to basics

Nationalism: back to basics?

 

Isabel Estrada Carvalhais

EEG – Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho | Campus Universitário de Gualtar, 4710-057 Braga | isabelestrada@eeg.uminho.pt

 

RESUMO

Num tempo em que se busca a compreensão das razões sociológicas, históricas, políticas, entre outras, que possam explicar a emergência de novas formas de nacionalismo, parece-nos oportuno fazer uma reflexão, ainda que necessariamente breve e incompleta, em torno do conceito de nacionalismo. Assim, este artigo propõe revisitar alguns autores que têm ajudado a construir a leitura académica sobre o fenómeno do nacionalismo. Parece-nos útil esta invocação, na medida em que com frequência se fala de novas formas sem que simultaneamente fique claro qual o fenómeno relativamente ao qual aquelas serão efetivamente «novas».

Revisitamos as teses modernistas e primordialistas, naqueles que são os seus contornos essenciais, para concluir que ambos os conjuntos apresentam debilidades no modo como interpretam o nacionalismo, colocando-o ora excessivamente na posição de artefacto ideológico do Estado moderno, ora na posição de resposta natural do indivíduo no processo de construção e reconhecimento da sua identidade coletiva. Todavia, é nas teses primordialistas que radica o maior desafio, pois a sua naturalização do nacionalismo resulta numa legitimação deste por via de uma suposta inevitabilidade biológica.

Palavras-chave: nacionalismo, Estado, nação, modernistas, primordialistas.

 

ABSTRACT

At a time when we seek to understand the reasons, whether sociological, historical, political or others, that may explain the emergence of new forms of nationalism, it seems opportune to reflect, albeit necessarily brief and incomplete, on the concept of nationalism. This article proposes to revisit some authors who have helped to build the academic reading on the phenomenon of nationalism. This invocation seems useful, as talking about new forms of nationalism is not necessarily followed by a clear idea of what phenomenon they are actually ‘new’ to. We revisit the modernist and primordialist theses, in what are their essential contours, to conclude that both sets have weaknesses in the way they interpret nationalism, sometimes placing it excessively in the position of ideological artifact of the modern state, sometimes in the position of a natural response of individuals in the process of construction and recognition of their collective identity. However, it is in the primordialist theses that the greatest challenge lies, since the naturalization of nationalism they imply results in its legitimation by means of a supposed biological inevitability.

Keywords: Nationalism, State, Nation, modernistsm, primordialists.

 

O atrevimento do anglicismo como parte do título deste artigo respalda-se no convencimento de que a expressão em inglês resulta bastante feliz quanto ao objetivo principal a que este mesmo artigo se propõe: o revisitar de alguma literatura clássica em torno do conceito de nacionalismo, sem pretensão, note-se, de ser exaustivo e plenamente consciente da subjetividade que acompanha o entendimento sobre o que é ou não é «clássico» (Marx e Weber, por exemplo, ficarão aqui omissos). Trata-se de um reencontro, se assim podemos dizer, com a literatura que posiciona o nacionalismo como um fenómeno histórico (o que explica também a frequente presença de um outro conceito complexo – a modernidade1), e que o analisa sob o ângulo de diferentes lentes disciplinares, tais como a lente sociológica, a filosófica, a política, podendo haver ora maior, ora menor espaço para análises interdisciplinares.

A razão de aqui se considerar importante o revisitar de alguma da literatura sobre o nacionalismo, prende-se diretamente com a crescente inquietação académica em torno da compreensão das «novas formas» de nacionalismo na Europa. Ora, se se fala em «novas formas», tal pressupõe, em primeiro lugar, assumir a ideia de que as mesmas existem enquanto tal e não como mero ressurgimento de um fenómeno, e, em segundo lugar, implica saber responder à pergunta: se são novas, são-no por referência exatamente a quê? Portanto, parece-nos de todo útil que se volte ao conceito de nacionalismo para, a partir daí, percebermos o que é (ou não é) realmente novo.

Naturalmente, o propósito de recuperar a visão sobre o surgimento histórico do nacionalismo e como a sua formação e evolução (a sua complexificação real) têm sido tratadas pelas ciências sociais (dando corpo à sua crescente complexificação epistémica), é um propósito que logo à partida traz consigo uma clara dificuldade: não há uma definição e muito menos uma compreensão uniformizada sobre o nacionalismo, logo, a compreensão das «novas formas» nunca poderá ancorar-se numa leitura consensual sobre a existência anterior do nacionalismo como realidade histórica e como conceito.

Importando de Immanuel Wallerstein a ideia da geocultura dos conceitos2, diremos que um conceito traduz a vivência que dele é feita pela sociedade num determinado tempo e lugar. Há, pois, uma apreensão cultural (portanto, necessariamente limitada, circunscrita) de uma realidade que é também ela vivida de acordo com as coordenadas de um tempo e de um espaço. Logo, o real, quer o vivido, quer o interpretado (pela ciência desde logo), é sempre reflexo de uma dada geocultura. A razão de invocarmos o conceito de geocultura prende-se com o facto de nos parecer que este ajuda a acautelar o rigor metodológico que deve acompanhar a análise do nacionalismo (e de outros conceitos que lhe estão associados, como nação, identidade nacional e sentimento nacional), protegendo-o desde logo de leituras tendencialmente universalistas, que obliterem as especificidades inerentes à vivência concreta do conceito pelas sociedades. De qualquer forma, será por demais evidente que o próprio respeito pela literatura que aqui recordaremos, no estudo que faz da formação e evolução do nacionalismo, nunca se poderia compatibilizar com uma visão uníssona, já que o nacionalismo se revela sempre como substantivo de vivência plural e não singular, formado por uma multiplicidade de manifestações, de interações, de cumplicidades e de propósitos, em função do tempo e do espaço da sua expressão.

Daqui resulta que na literatura sobre o nacionalismo a ser abordada, grande parte das coordenadas temporais aí observadas nos leva à história do Estado moderno, enquanto as coordenadas espaciais invocadas nos levam ao encontro do espaço europeu, ou seja, do espaço onde historicamente emerge o fenómeno do Estado moderno que haverá de estar intrinsecamente associado à emergência do(s) nacionalismo(s).

Importa também relembrar que falar em nacionalismo implica amiúde falar de nação e de identidade nacional, muito embora se tenha desenvolvido, em torno de cada um, um corpo teórico específico e suficientemente autónomo. De facto, é possível falar em identidade nacional e em nação sem que no discurso tenha de vir à baila o nacionalismo. O contrário também é possível, quanto mais não seja enquanto exercício meramente académico, ou estratégia facilitadora da aprendizagem, no qual se opta pela apresentação separada dos conceitos. Todavia, o nacionalismo só faz sentido por referência ao conceito de nação e de identidade nacional. Portanto, mesmo existindo toda uma vastíssima literatura que tem o nacionalismo como o seu centro, dificilmente podemos tratar este conceito desconectando-o da sua profunda relação com os outros dois. Coisa diferente será, por seu turno, discutir se o nacionalismo deriva historicamente da existência de identidade nacional e de nação, ou se, pelo contrário, é ele mesmo impulsionador das ideias de nação e de identidade nacional.

 

NACIONALISMO – REVISITANDO AS TESES MODERNISTAS E PRIMORDIALISTAS

Para uma possível definição de nacionalismo, começo por aquela que sempre me
pareceu uma das mais honestas quanto à verdadeira identidade do nacionalismo moderno – a definição de Elie Kedourie. Lá chegaremos.

Um dos grandes historiadores do seu tempo – algo obliterado, diríamos, pela Realpolitik da Guerra Fria, que não permitia grandes questionamentos em torno de conceitos delicados como o de nacionalismo –, Kedourie ganha um renovado interesse académico após a sua morte em 1992.

No período pós-Guerra Fria, o conceito de Estado-Nação readquire novo protagonismo. Assim, por um lado, animam-se as teses que dão conta do fim do Estado-Nação3, quando não mesmo questionando a sua efetiva existência histórica (talvez com espaço para casos marginais como o de Portugal, que em todo o caso não atrai grandes estudos num mundo académico tendencialmente dominado pelas perspetivas anglo-saxónicas); e, por outro, animam-se as teses que contestam a ideia do fim do Estado-Nação4. Ora, é nesse contexto que a reedição da obra cimeira de Kedourie5 veio contribuir para o relançar da atualidade da discussão sobre o que é o nacionalismo. Acreditamos que, inicialmente, o recuperar da visibilidade da obra de Kedourie6 também estivesse ligado à ideia de que a sua profunda crítica ao nacionalismo alinhava com toda a literatura que ditava o fim da era das nações. Contudo, a visão de Kedourie sobre o nacionalismo está muito para lá da sua instrumentalização por outros autores em prole de teses pós-nacionais. A visão de Kedourie decorre de uma profunda análise crítica da história e tal facto explica porque o seu trabalho se mantém amplamente válido e útil, ao passo que as literaturas normativistas e programáticas dos anos 1990 sobre futuros pós-Estado e utopias transnacionais e supranacionais, estão já em grande medida ultrapassadas.

Diz-nos então Kedourie sobre o nacionalismo:

«Descrevi o nacionalismo como uma ideologia. Ao fazê-lo, pretendo diferenciá-lo da política constitucional. Em política constitucional, o objetivo é atender às preocupações comuns de uma sociedade em particular para a salvaguardar contra inimigos externos, mediar divergências e conflitos entre vários grupos através de instituições políticas, legislação, e administração da justiça, e fazer valer a lei acima e para além de interesses seccionais, embora importantes e poderosos. Política ideológica é muito diferente. A preocupação está em construir um estado de espírito na sociedade e no Estado, em que toda a gente, como se costuma dizer nas histórias antigas, viverá feliz para sempre»7.

Para Kedourie, o nacionalismo corresponde, portanto, a «um estilo ideológico de política» que se tornou particularmente atrativo e popular depois da Revolução Francesa8, facto que o intriga e que ele deseja explicar. Ora, salta logo à vista a interpretação negativa que o nacionalismo assume no pensamento de Kedourie – e que lhe mereceria aliás críticas, em particular de Ernest Gellner. Na sua definição não há espaço para explicações sociológicas sobre como a sociedade num processo bottom-up é também ela construtora do nacionalismo por razões nem sempre devidamente consciencializadas pelos indivíduos, através de dinâmicas sociais, económicas e culturais que têm na sua base uma pluralidade de atores, interesses e mundividências.

Da mesma forma, é impossível não reconhecer a linha marxista que acompanha a interpretação de Kedourie, ao identificar o nacionalismo como uma doutrina inventada na Europa do século XIX, que «pretende providenciar um critério para a determinação da unidade de população certa para existir um governo exclusivamente seu, para o legítimo exercício do poder do Estado e para a correta organização de uma sociedade de Estados».

Da definição de Kedourie extraímos ainda um outro aspeto que desejamos sublinhar. Trata-se da ideia de que o nacionalismo, enquanto doutrina, se cimenta neste pensamento simples (que é simultaneamente o postular de um dogma que acaba por assumir a dimensão de realidade naturalizada, logo autojustificada): que a humanidade se encontra naturalmente dividida em nações; que as nações são conhecidas pelas suas características, sendo distintas entre si por idiossincrasias próprias; e que o único tipo legítimo de governo é por conseguinte o autogoverno nacional.

Destes três elementos, se o terceiro corresponde à defesa do direito à autodeterminação dos povos, sendo este um direito com o qual todos tendemos a concordar, já o primeiro chama-nos a atenção para a intencionalidade do advérbio «naturalmente», ou seja, para a atitude deliberada que assiste à invenção da natureza concreta e física de algo cuja identidade inicial é a de emanar do mundo das ideias na forma de um postulado. A dogmatização da naturalidade das nações, que corresponde à apresentação das nações como entidades estruturais inerentes à (inter)ação humana, é o que confere claramente uma dimensão ideológica ao nacionalismo enquanto proposta de conceptualização das identidades coletivas.

Há pois em Kedourie uma clara crítica às teses primordialistas que no geral entendem o nacionalismo como um processo natural das sociedades, derivando de um desejo e necessidade de organização dos seres humanos9.

Não será exagerado dizer que Gellner, embora um forte crítico de Kedourie, partilha com este alguns aspetos na definição de nacionalismo, na exata medida em que, para o primeiro autor, o nacionalismo também é concebido como uma invenção, uma criação, uma artificialidade da modernidade. Se em Kedourie o nacionalismo se situa essencialmente na vontade deliberada do Estado em estreita cumplicidade com os interesses das classes dominantes do capitalismo, em Gellner a formação e ascensão do nacionalismo resulta essencialmente de processos sociais específicos da industrialização10. Célebre ficou a frase de Gellner, «o nacionalismo é que engendra as nações, e não o contrário»11, o que logo à partida não deixa qualquer margem de manobra para uma conceção do nacionalismo que o apresente como algo que não um produto histórico, deliberado, fruto da vontade do Estado moderno.

Gellner está claramente na linha das teses modernistas que apresentam o nacionalismo como uma linguagem política que acompanha a própria criação ou invenção do Estado moderno. Neste sentido, o nacionalismo pode ser em última instância interpretado como um instrumento essencial à operacionalização das ideias de nação e de identidade nacional.

Na mesma linha modernista encontra-se Hobsbawm12, para quem «não são as nações e o nacionalismo que fazem os estados, mas o contrário». Hobsbawm adiciona entretanto uma nuance interessante à sua interpretação sobre o nacionalismo. De facto, quanto à forma como o Estado usou a nação para o cumprimento dos seus propósitos de expansão e de consolidação de estruturas, de manutenção de segurança externa e de unidade interna (unidade ameaçada desde o início do Estado moderno enquanto estrutura político-administrativa, jurídica e militar complexa, ora pela pluralidade etnorregionalista quando presente na génese do próprio Estado, ora pelas exigências decorrentes da industrialização – como a emergência de novas classes sociais como o operariado e suas correspondentes reivindicações de poder e de reconhecimento), Hobsbawm declara: «os estados precisavam de uma religião cívica (o patriotismo) tanto mais porque o que exigiam aos seus cidadãos era crescentemente mais do que passividade»13.

Ora, esta é uma referência óbvia à necessidade de os indivíduos se assumirem como contribuintes, como soldados, como cidadãos dispostos enfim a legitimar o projeto estatal e as suas consequentes demandas, mesmo que a expensas da sua própria vida.

«A ideia original revolucionária e popular do patriotismo era estatal e não nacionalista, já que se relacionava com o próprio povo soberano, ou seja, com o estado exercendo o poder em seu nome. A etnicidade ou outros elementos de continuidade histórica eram irrelevantes para a “nação” neste sentido, e [eram] linguagem relevante apenas ou principalmente por razões pragmáticas.»14

Esta ideia da presença ativa e deliberada do Estado moderno na criação de uma linguagem emocional capaz de despertar de forma contínua e sustentada um sentimento de pertença, de irmandade ancestral que leva estranhos a reconhecerem-se como compatriotas é, para Hobsbawm e Gellner, uma evidência histórica que salta aos olhos através de casos paradigmáticos como o da França do século XVIII.

Convergente com esta leitura, outro clássico, Kohn, afirmava que «O nacionalismo era impensável antes do surgimento do estado moderno…»15. Para autores anteriores como Stuart Mill, essa realidade era inclusivamente fruto de uma necessidade fundacional do próprio Estado moderno aliada à sua expressão liberal e democrática; era por assim dizer um postulado inerente a esta expressão, como se depreende sem dificuldade da seguinte afirmação: «Instituições livres são quase impossíveis num país formado por diferentes nacionalidades»16. Portanto, era imperativo, vital mesmo, que o Estado moderno, a partir do momento em que pretende sobrepor-se como entidade político-administrativa e jurídica legítima, pudesse ter formas de controlar a sua pluralidade étnica interna. O nacionalismo surge aqui como uma dessas formas. É aliás a forma por excelência, cuja eficácia se fica a dever em boa parte à dimensão afetiva e emocional em que o seu discurso assenta.

Nas teses modernistas – a que poderíamos juntar um outro clássico como Carlton Hayes17, que não hesita em fazer equivaler nacionalismo a uma religião –, resulta evidente que um traço distintivo da natureza do nacionalismo é a sua artificialidade e o papel ativo do Estado na sua construção. A presença do papel e dos interesses do Estado ajuda em paralelo a ultrapassar as limitações das teses psicológicas mais simples como a de Kohn, para quem a nacionalidade é criada pela decisão de a formar18; ou a de Ernest Renan, exposta no seu célebre texto de 1882, «Qu’est-ce qu’une nation?», para quem a nação é um composto espiritual fundado em memórias de um passado comum e na vontade de um presente comum.

De outro lado, as teses primordialistas apontam para a existência prévia ao Estado moderno da nação e das identidades nacionais. Seguindo a lógica das teses primordialistas, o nacionalismo surge não como instrumento que acompanha e permite a invenção da nação, mas como instrumento natural que exprime a formação de uma determinada consciência sobre a identidade nacional e uma determinada imagem sobre a nação. Nesta linha primordialista encontra-se Llobera, para quem a ideia de nações como «comunidades imaginadas» se situa na Idade Média, sendo que «o que é moderno sobre a nação, então, é fundamentalmente o seu potencial enquanto crença de massas; não a sua existência como visão imaginativa»19.

Dentro das teses primordialistas, são as teses sociobiológicas as que têm logrado maior relevo, com o argumento hipnótico centrado na ideia do nacionalismo como sendo inerente ao comportamento humano. O ponto forte do seu sucesso parece ser também a sua maior debilidade, já que, como bem nota Coakley20, a insistência do primordialismo na ideia do nacionalismo como inerente ao comportamento humano é uma insistência mais de caráter ideológico do que de caráter científico (desde logo pela enorme dificuldade em reunir evidência empírica fidedigna) e, nesse sentido, o primordialismo será melhor interpretado enquanto ingrediente do nacionalismo e não como explicação do mesmo21.

Ora, é precisamente este cunho sociobiológico que nos leva a hesitar em catalogar a tese de Anthony D. Smith como primordialista pura. E a razão prende-se com o facto de tanto nas teses modernistas, como na tese de Anthony D. Smith, o nacionalismo surgir como uma linguagem instrumental em que o Estado, ainda que de forma diferente, acaba por ter um papel central. De facto, seja para inventar uma dada ideia de nação, seja para propagar uma determinada narrativa em torno de elementos de identidade nacional preexistentes, em ambos os casos se exige o papel ativo do Estado e da sociedade, se não na invenção, pelo menos na identificação (na consciencialização) dos elementos que podem ser tidos como relevantes e dignos de destaque na construção de uma dada narrativa sobre a nação e a identidade nacional.

Por debater aqui ficará o papel que em cada conjunto de teses é atribuído ao Estado, às elites sociais e intelectuais, às dinâmicas económicas, sendo certo que foram múltiplos os fatores que ambos os quadros teóricos apontam como relevantes no moldar das nações, desde o papel das burocracias estatais, dos movimentos políticos de massa (como a emergência do proletariado e das suas reivindicações políticas e sociais), do crescimento das cidades, às melhorias na comunicação e alfabetização, passando pelas próprias exigências integrativas do capitalismo industrial (como evidente na tese weberiana de Ernest Gellner). A este propósito, não resistimos todavia a recordar Tom Bottomore22 que, com clareza, identificou o modo como o nacionalismo tende a associar-se nos pensadores liberais à luta burguesa pela democracia23 e nos pensadores austro-marxistas à ideia de ascensão e consolidação do modo de produção capitalista, sendo certo que tais leituras não esgotam, segundo Bottomore, a existência de outras mais sobre as razões que explicam a emergência do nacionalismo, isto é, sobre as funções que este veio cumprir com o seu aparecimento.

De qualquer forma, e independentemente das teses que possamos abraçar sobre a natureza – se moderna, se primordial da identidade nacional, e consequentemente sobre os próprios alicerces narrativos do nacionalismo e as funções deste no contexto do Estado –, o nacionalismo surge quase sempre como uma ideologia que, nas palavras de Kupchan, «exige a fusão da nação sentimental com o estado funcional», sendo o principal responsável pela «transformação do estado administrativo em nação sentimental»24.

 

O PARADOXO DO NACIONALISMO – DOGMA E ELASTICIDADE

Ficarmos por aqui seria perder de vista a substancialidade e a intensidade que acompanham o nacionalismo. Ao apresentá-lo como uma ideologia política, uma construção do Estado moderno, podemos ficar pela ideia de que o nacionalismo é sobretudo um espaço de narrativas de utilidade instrumental para a construção das identidades coletivas. Mas o nacionalismo é mais do que uma ideologia, ou melhor, sê-lo-á, mas com características que o elevam a um outro patamar. É por isso que o pensamento de Benedict Anderson nos pode aqui ser útil para demonstrar essa densidade do conceito.

Ao localizar a fonte da identidade individual na ideia de «povo», que é visto como o portador da soberania política, o objeto central da lealdade e a base da solidariedade coletiva, o nacionalismo projeta-se como um elemento fundacional diferente de todos os outros que possam sustentar a criação da identidade individual25. O nacionalismo operacionaliza assim aquilo que Anderson descreve como «uma camaradagem profunda e horizontal»26 que emerge entre os cidadãos, sobrepondo-se à realidade das divergências e das desigualdades que efetivamente possam existir. Por outras palavras, o nacionalismo traduz, no seu discurso e nas suas práticas, a «comunidade imaginada».

Assim visto, o nacionalismo eleva-se para lá da simples condição de construção racional-emocional centralizada no monopólio cultural do Estado moderno, porquanto esta condição de comunidade imaginada vai muito além das capacidades substantivas e instrumentais do Estado. Ou seja, independentemente de qualquer papel inicial que o Estado possa ter tido na criação de elementos significantes, ou na incorporação de elementos preexistentes, para a edificação e consolidação de uma dada imagem de um Nós coletivo, a experiência individual e coletiva de «uma camaradagem profunda e horizontal» acaba por suplantar esse papel inicial do Estado, se não mesmo por determinar os termos em que o papel do próprio Estado na sustentação do Nós coletivo se mantém.

Da mesma forma, nesta lente adaptada à proposta de Anderson, o nacionalismo não só se eleva acima de uma mera leitura instrumental centrada nas capacidades manipuladoras do Estado (e das elites intelectuais, acrescentaríamos), como também não se confunde com as leituras que o queiram reduzir a uma dimensão puramente étnica. Nesse sentido, a leitura de O’Connor sobre o nacionalismo como «lealdade ao grupo étnico» e de nação como não sendo mais do que um complexo processo psicológico de «autodiferenciação étnica»27 é aqui também posta de lado.

Não nos compete explorar as razões que explicam esta excecionalidade do nacionalismo, mas recordamos uma frase lapidar de Renan que, em nossa opinião, encerra em boa parte o «segredo» deste imenso poder do nacionalismo: «Esquecimento, e, diria mesmo, o erro histórico são um fator essencial na criação de uma nação»28. Esta é uma poderosa frase que em nosso entender coloca a tónica num elemento determinante para a explicação da contínua vitalidade da ideia de nação, do nacionalismo, e da eterna possibilidade das «novas formas» de que hoje tanto se fala: o esquecimento. Eis o irónico paradoxo: a memória, que é determinante na criação das narrativas sobre a identidade nacional, é-o tanto pela sua ativação como pela sua suspensão. Por outras palavras, o esquecimento detém um papel central na construção e transformação das identidades nacionais, porquanto é por ele que em boa parte se abre na hermenêutica nacional o caminho para os negacionismos, para os revisionismos, para as narrativas alternativas e para o «lembrar» seletivo. A elasticidade do nacionalismo, consequentemente a sua capacidade de adaptação a novas geoculturas, bem como a sua renovada perigosidade, deve-se assim (ainda que não exclusivamente) ao modo instrumental como o nacionalismo encara a memória. Por outras palavras, o nacionalismo tem em si a ausência de uma dimensão ética da memória, olhando-a antes como campo aberto, manipulável, sendo o esquecimento parte integral dessa utilização instrumental da memória pelo nacionalismo.

Entretanto, todos os autores aqui citados divergiram quanto ao futuro possível do nacionalismo. Hobsbawm, à semelhança de Breuilly29, por exemplo, opunha-se a Gellner e a Benedict Anderson quanto ao sucesso que o nacionalismo poderia ainda ter no futuro. Isto porque, para Hobsbawm, era por demais historicamente evidente que o nacionalismo já não poderia na reta final do século XX apresentar-se como o «programa político global» que fora em tempos30. Tal, a seu ver, resultava de diversas razões que decorriam das alterações nas funções e desígnios dos próprios estados, entre as quais a dificuldade crescente (para não dizer mesmo a impossibilidade) em continuar a deter a função tradicional de constituição e a preservação da ideia de «economia nacional» limitada ao território do Estado31.

Em face do atual panorama europeu e mesmo mundial, estaremos certamente tentados a afirmar que Hobsbawm estava errado porquanto se assiste a um recrudescer fortíssimo do nacionalismo. Porém, e atendendo a tudo o que aqui entretanto recordámos, convém não esquecer a plasticidade do nacionalismo garantida pelo operacionalizar de um paradoxo: dogmático quanto ao que sugere como sendo as origens de uma identidade coletiva, é todavia ele mesmo que define na sua narrativa os termos do seu dogmatismo. Nesse sentido, o nacionalismo tem uma capacidade de escolha que é essencial à produção constante e atualizada de novas ortodoxias narrativas.

Compreendemos melhor a dimensão dogmática do nacionalismo como uma opção recordando, ainda que de forma muito breve e simplificada, a clássica tese de Hans Kohn, de 1944. Na sua tese, verificamos que a leitura moderna sobre o nacionalismo assenta em quatro pressupostos, cada um invocando uma narrativa ficcionada sobre a originalidade essencial da nação e da identidade nacional na construção das sociedades tal como as conhecemos. Assim, o primeiro postulado prende-se com a ideia do Estado-Nação como sendo a forma ideal de organização política das sociedades. Ora, para Kohn, tal essencialidade (primordialidade, portanto) não existe na história europeia que durante séculos teve como espaços centrais da sua organização as cidades, os feudos, e o que Kohn chama de «estado multilingue mantido unido por laços dinásticos»32 e tudo isso prevaleceu durante séculos sem que tal significasse impossibilidade de existência social e a ausência de História.

O segundo postulado ancora-se na ideia da nacionalidade como a fonte principal da vida cultural. Ora, também aqui Kohn recordava que, durante a maior parte da história, a religião fora essa fonte; e em outros tempos assentara na «civilização de uma classe», como a civilização dos cavaleiros na Europa medieval, ou a corte francesa dos séculos XVII e XVIII, ou ainda as referências à civilização clássica que dominaram a formação dos homens durante e depois da Renascença33.

O terceiro postulado assenta na ideia de nacionalidade como a fonte de bem-estar económico. O nacionalismo económico centra-se na ideia de que o bem-estar do indivíduo (logo, o próprio sucesso da sua ação individual no âmbito dos princípios liberalistas) só pode ser verdadeiramente alcançado e só está plenamente assegurado através do poder económico da nação34. Também aqui Kohn ajuda a compreender que mesmo no contexto do mercantilismo enquanto doutrina centralizadora que visava pela via económica reforçar o estatuto e poder do Estado no mundo, grande parte da vida económica lhe escapava, vertendo-se na malha de cidades, vilas e províncias. O que se lhe seguiu foi um neomercantilismo pelo qual o Estado se rende aos princípios do liberalismo económico, mas, ao invés de o contrariar, propaga a ideia de que apenas a nação é o garante dessa liberdade de ação, só o poder económico da nação, protegida e promovida pelo Estado, garante o bem-estar individual.

E por fim, o quarto postulado em que assenta a artificialidade moderna do nacionalismo, está na ideia de nacionalidade como o elemento que traduz a lealdade suprema do sujeito. Mas, durante séculos, a lealdade do indivíduo já existia, sendo simplesmente outros os focos da sua devoção: a sua igreja, a sua família, o seu suserano feudal.
A fixação da ideia de suprema lealdade do indivíduo como sendo determinada pela sua nacionalidade é, por isso também, em si uma artificialidade, marcando segundo Kohn o começo da era do nacionalismo moderno.

Nestes quatro postulados, evidencia-se a construção artificial do nacionalismo (ainda que ficando aqui por explorar o papel que coube aos diversos agentes envolvidos nessa construção, desde as coroas a diversas classes sociais). Nessa construção, o modo como os quatro postulados vão emergindo parece obliterar a existência prévia de outras formas e condições de existência humana. Por detrás do sucesso desses postulados, progressivamente naturalizados, aceites como inerentes à realidade coletiva, encontram-se múltiplas dinâmicas sociais, políticas, económicas e culturais de complexidade variável apenas apreensível pelo estudo da história de cada Estado35.

 

NACIONALISMO(S) E CAPACIDADE TRANSFORMATIVA

Independentemente do posicionamento que se tenha em relação às teses aqui revistas, salta-nos como evidente que há uma força inventiva e transformativa que tem acompanhado o nacionalismo na sua ação. Integrador dessa força inventiva e transformativa sempre esteve o esquecimento, tão relevante como o próprio exercício da memória na construção de uma dada imagem do Nós coletivo. E é com base nesta ideia que partimos para uma breve reflexão sobre o que poderá ser o nacionalismo hoje.

Antes de mais, a elasticidade do nacionalismo, não sendo infinita, como não pode ser em nenhum conceito, ideia, ou valor sob pena de implodir, é ainda assim ampla o suficiente para lhe garantir uma natureza altamente resistente, adaptativa, capaz de se ajustar aos tempos. Uma das evidências dessa adaptabilidade está nas múltiplas narrativas que o nacionalismo hoje apresenta. Veja-se a título de exemplo o nacionalismo escocês. Mais do que cultural, etnolinguístico, ou religioso, é sobretudo um nacionalismo político e cívico, que apresenta o europeísmo e o interculturalismo como marcas distintivas que o separam de um nacionalismo fechado, antieuropeu, anti-imigrante e arreigado a um saudosismo imperialista sobre uma suposta singularidade do Reino Unido no mundo, e que aliás tem estado presente na retórica em defesa do Brexit. Na mesma linha, poder-se-ia mencionar o nacionalismo catalão, no qual mais do que a defesa de uma identidade histórica cultural (que também ocorre, é certo, desde logo pela memória constante quanto às especificidades etnolinguísticas, memória não apenas discursiva mas também praticada pelo amplo uso quotidiano da língua catalã), são sobretudo as ideias de modernidade (não no sentido de época ou de condição de um tempo, mas de atitude traduzida num olhar para o futuro) e de aceitação das dinâmicas interculturais, da pluralidade e da diversidade, da solidariedade com o projeto europeu, que dominam a sua narrativa, quer política, quer académica, quer popular.

Damos estes dois exemplos por nos parecerem ilustrativos de algo que também importa referir: os nacionalismos de hoje, cumprindo diferentes funções sociais, políticas e culturais, não têm todos de ser necessariamente negativos, xenófobos, racistas, associados aos ideários dos partidos de extrema-direita que grassam um pouco por toda a Europa. Mas a verdade é que, feito este necessário reconhecimento da natureza algo distinta destes nacionalismos, os nacionalismos na sua larga maioria continuam a ser na sua essência propostas ideológicas para a interpretação do Nós coletivo como um Nós superior.

A condição do nacionalismo atual (com as devidas salvaguardas para casos excecionais e que, aliás, justificam por que é mais correto falarmos em nacionalismos) prevalece como sendo essencialmente radicalista (isto é, de defesa intransigente de uma dada matriz identitária), ortodoxa (sem espaço a leituras plurais) e oportunista.

O modo como o conceito de Estado é equacionado pela narrativa nacionalista atual é ilustrativo da continuidade desta condição oportunista. Se não, vejamos. O Estado moderno tem sido um ator altamente interessado no estimular do nacionalismo (independentemente aqui de saber se é inventor ou apenas utilizador de algo preexistente) pelos benefícios óbvios que foram resultando dessa relação simbiótica. Por um lado, o nacionalismo apoiou e justificou o centralismo cultural, económico, e político-administrativo do Estado (ainda que pela admissão de nuances na concretização dessa centralidade sobretudo onde esta sempre colidiu desde início com a forte presença de etnorregionalismos resistentes ao Estado central). Por outro, o Estado alimentou o discurso e as práticas que garantiram longevidade e força ao nacionalismo. Contudo, em muitos aspetos o Estado passou a ser um empecilho. Já não é a entidade todo-poderosa de outros tempos, partilhando hoje a ribalta com novas formas de regulação transnacional e governança global, negociando papéis e poderes com uma miríade de atores transnacionais. Mas é sobretudo internamente que tudo se complica, já que o Estado tem sido motivo de múltiplas deceções para os seus cidadãos. Ora, o sentido oportunista do nacionalismo leva-o a reconhecer que o Estado já não é o Estado moderno vestefaliano de outrora e, nesse sentido, não é líquido que busque necessariamente a glória do Estado. Uma forma de reconhecer esse distanciamento em relação ao Estado, está no modo como no discurso nacionalista ele é estrategicamente separado em Estado-Comunidade e Estado-Aparelho, de tal forma que é sobre este último e sobre as elites políticas que recaem todas as responsabilidades pelas vicissitudes do presente. Aí, a ideia de defesa do Estado poderá surgir, mas apenas na medida em que este é entendido como comunidade, e não como estruturas de governação, já que, nesta ótica nacionalista, essas estruturas tornaram-se fracas, incapazes de assegurar a economia nacional, incapazes de travar as cedências de soberania política na esfera internacional, e traidoras da identidade cultural ao enveredarem por políticas de integração inclusivas, que no seu entender degradam a integridade da matriz cultural do Estado-Comunidade.

Uma outra estratégia para contornar a presença incómoda do Estado – que já não pode ser assumido pela retórica nacionalista atual como o garante das identidades nacionais como o fez no período áureo da modernidade – está no identificar de atores e de dinâmicas externos como sendo os responsáveis das crises contemporâneas. Nesta ótica nacionalista, sejam as instituições políticas europeias, as instituições financeiras internacionais, os imigrantes, os refugiados, todos são entendidos como inimigos cúmplices que conspiram contra a identidade nacional e o bem-estar das nações, e que urge por isso denunciar e eliminar. É aqui que entram claramente os neonacionalismos, que apresentam como traço distintivo a sua expressão reativa aos múltiplos desafios transnacionais e globais36. Exemplo dessa expressão reativa é a sua relação negativa face à imigração, face às decisões políticas da União Europeia, e «os seus apelos populistas às culturas de massas do presente»37.

É importante não incorrer na tentação de considerar que estes neonacionalismos se encontram mais próximos do etnonacionalismo tradicional. De facto, neste último é recorrente a ideia de que o sentimento de pertença se cimenta numa efetiva pertença étnica e consanguínea que precede e justifica a existência do Estado, na linha da tradição helénica que na modernidade encontra a sua maior expressão na ideia germânica de nação. Mas nos neonacionalismos a que aqui aludimos, não há necessariamente a presença da dimensão étnica e consanguínea como premissa para justificar a existência de uma identidade nacional ancestral que urge proteger. Nesse sentido, outras premissas são amiúde mais invocadas como sendo os alicerces fundacionais da identidade nacional. É o caso da invocação da matriz cultural judaico-cristã que, nos discursos neonacionalistas europeus, se apresenta como um exclusivo das culturais europeias e, em sentido mais amplo, um exclusivo da civilização ocidental, com o termo «civilização» a assumir em boa parte a função que o termo «raça» teve em outras épocas no discurso nacionalista. Embora não pondo de parte que na invocação da matriz cultural judaico-cristã também esteja presente uma certa visão etnicista sobre as identidades nacionais, o seu dínamo está sobretudo na ideia de que as identidades nacionais europeias estão ancoradas na partilha de valores e de crenças que lhe são exclusivos. Desde logo, um dos maiores problemas desta leitura é que, sendo a partilha exclusiva, também pela mesma via a ética e a moral que se fundamentam nesses valores serão exclusivas destas identidades nacionais. Assim se entende que na retórica neonacionalista frequentemente haja, de modo mais ou menos sofisticado, referências ao «Outro» como sendo a negação da ética humanista, da moral cristã, do Estado de direito e por aí fora...

Contudo, os neonacionalismos aqui aludidos têm também como elemento que os caracteriza a crítica ao próprio Estado, tal como aqui já referimos, e, nesse sentido, há todo um conjunto de outros nacionalismos contemporâneos que necessitam de outra abordagem. Por exemplo, não faz muito sentido incluir aqui nacionalismos como o nacionalismo americano de Trump, o nacionalismo da Rússia de Putin, ou os nacionalismos do Extremo Oriente onde, sem exceção, o Estado é o elemento central que se pretende enaltecer, reforçar e defender. Nessas retóricas nacionalistas, o Estado aparece como o garante para a reconstrução da economia nacional, o garante da coesão social (retorno à ideia de Estado nacional como fonte do bem-estar), o garante do reaver da identidade cultural e o garante da reabilitação da soberania (política e militar) no espaço internacional. Estes nacionalismos de Estado assentam numa narrativa de reposição, de retorno, de «outra vez» como no célebre slogan de Trump «Make America great again», na qual a ação do Estado se apresenta como determinante. Nesse sentido, a «novidade» desses nacionalismos de Estado está sobretudo no recuperar da centralidade da nação (em alguns casos étnica) por via da revitalização (económica, militar e cultural) do próprio Estado. Mas o saudosismo é apenas aparente, na exata medida em que a linguagem do retorno serve apenas como estratégia de fortalecimento de um Estado que aspira ao triunfo político, económico e militar no século XXI.

 

CONCLUSÃO

Mais do que uma ideologia política do Estado moderno, o nacionalismo tem hoje de ser visto sobretudo como um complexo fenómeno social. Um fenómeno social que nos desafia a pensar nos termos em que se definem as identidades coletivas, e muito em particular nos termos em que a relação com os Outros é proposta.

Observando o nacionalismo hoje, verifica-se que a sua elasticidade lhe permite adaptar-se ao tempo e ao espaço explorando o que neles é passível de suscitar novos dogmas (sobre a identidade nacional, sobre a relação desta com outras identidades, sobre as leituras e releituras do passado) e justificando assim o emprego do conceito no seu plural: nacionalismos.

No geral, porém, o modo como a sua adaptabilidade trabalha para produzir novos dogmas quase sempre resulta na produção de discursos e práticas assentes numa atitude reativa: contra a globalização, contra a imigração, contra o Estado, contra o funcionamento da própria democracia, contra o diferente (quando politizado, isto é, equacionado em termos do seu acesso ao Poder). É certo que em raros casos a sua natureza instrumentalista também parece ter percebido a utilidade de apostar numa atitude proativa e positiva. É o caso de atitudes pró-europeias, pró-imigrantes, pró-inclusoras, que podem ser vistas como formas de permitir que o nacionalismo enquanto instrumento político de resistência contra estados aglutinadores que se alicerçaram em processos anteriores de «colonialismo interno», seja simultaneamente reconhecido como legítimo (ética e juridicamente) pela comunidade internacional.

O nacionalismo diverge, pois, quanto ao que resulta da aplicação da sua capacidade instrumental. Sendo certo que tendencialmente as respostas que constrói são sobretudo reativas (à globalização, à erosão do próprio Estado no contexto da globalização,
à diversidade cultural), nada obsta a que também possa construir respostas positivas (de aceitação, de abertura ao Outro, aos diferentes). Nesse sentido, não vemos o nacionalismo como uma manifestação natural, mas como uma clara construção.

Mas, da mesma forma, sendo o nacionalismo uma construção (e esta é claramente uma vantagem de não enveredar pelas leituras primordialistas), então nada obsta a que no seu discurso e nas suas práticas possa entrar a ideia do exercício da interculturalidade como traço distintivo de uma identidade nacional. Mas esta ideia pressupõe a sua articulação com uma outra: que o exercício dessa interculturalidade seja bem compreendido enquanto criação de pontes para um enriquecimento mútuo, e não como disfarce de paternalismos culturais que nos iludam quanto às nossas reais capacidades de diálogo, ou seja, acreditando que apenas «Nós» dominamos as premissas válidas desse diálogo.

Porém, estas são apenas manifestações de um querer. De um querer que, para mais, implica como premissa de base a aceitação do nacionalismo como construção e não como manifestação natural. Nesse sentido, só num contexto de rejeição das assunções primordialistas se poderá equacionar o nacionalismo como uma construção capaz de negar aquela que tem sido a sua condição, dogmatizante e naturalizadora da sua própria artificialidade. Mas então, estaríamos ainda perante o conceito de nacionalismo?

 

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Data de receção: 18 de março de 2019 | Data de aprovação: 10 de maio de 2019

 

NOTAS

1 Referimo-nos à modernidade como complexa porque passível desde logo de múltiplas interpretações quanto ao seu significado histórico, à natureza das suas manifestações sociais, políticas e culturais, ao mundo axiomático, ético, e estético que ela invoca em diferentes sociedades. A complexidade do «moderno» traduz-se assim na multiplicidade de propostas para a sua definição como identidade global (social, política, filosófica, cultural) de um espaço e de um tempo cujas balizas são também elas alvo de discussão e necessariamente de pontos de referência algo arbitrários.

2 WALLERSTEIN, Immanuel – Geopolitics and Geoculture: Essays on the Changing World-System. Cambridge: Cambridge University Press, 1991.

3 OHMAE, Kenichi – The End of the Nation State: The Rise of Regional Economies. Nova York: Free Press, 1995.

4 PANIC, M. – «The end of the nation state?». In Structural Change and Economic Dynamics. Vol. 8, 1997, pp. 29-44.

5 KEDOURIE, Elie – Nationalism. 4.ª edição (1.ª edição, 1960). Oxford, Massachusetts: Blackwell, 1993.

6 A reedição, não esqueçamos, é antes de mais um merecido tributo ao homem e ao académico desaparecido precocemente aos 66 anos de idade, tendo a reedição de 1993 sido da responsabilidade da sua esposa e companheira desde 1950, Sylvia Haim Kedourie.

7 Ibidem, pp. xiii.

8 Ibidem, p. 140.

9 ASHCROFT, David – A Critical Evaluation of Theories of Nationalism. Universidade de Aston, 1987. Tese de doutoramento. Disponível em: https://publications.aston.ac.uk/id/eprint/12198/1/Ashcroft%2C_D_1987.pdf.

10 GELLNER, E. – «Scale and nation». In Philosophy of the Social Sciences. Vol. 3, 1973, pp. 1-17; GELLNER, E. – NATIONALISM. Londres: Weidenfeld & Nicolson, 1997.

11 GELLNER, E. – Nations and Nationalism. Ithaca: Cornell University Press, 1983.

12 HOBSBAWM, E. J. – Nations and Nationalism since 1780, Programme, Myth, Reality. 2.ª edição. Cambridge: Cambridge University Press, 1992, p. 10.

13Ibidem, p. 85.

14Ibidem, p. 87.

15 KOHN, H. – The Idea of Nationalism, A Study in Its Origins and Background. Nova York: The Macmillan Company, 1944, p. 4.

16 EM WOOLF, Stuart, ed. – Nationalism in Europe, 1815 to The Present. Londres: Routledge, 1996, p. 41.

17 Hayes, Carlton J. H. – «Nationalism: a religion». In Naval War College Review. Vol. 14, 1961, pp. 5, 7.

18 KOHN, H. – The Idea of Nationalism, A Study in Its Origins and Background, p. 15.

19 LLOBERA, Joseph R. – The God of Modernity. Oxford: Berg, 1994, p. 120.

20 COAKLEY, John – «“Primordialism” in nationalism studies: theory or ideology?». In Nations and Nationalism. Vol. 24, N.º 2, 2018, pp. 327-347.

21Ibidem.

22 BOTTOMORE, Tom – Political Sociology. Londres: Pluto Press, 1993.

23 Ainda que com variações quanto ao comportamento burguês, como Bottomore bem identificou, na linha de Barrington Moore, em função da maior ou menor força dessa classe e do modo como esta percebia a presença de outras classes sociais – e em particular as classes do movimento operário – como potenciais ameaças ao seu poder, o que nestes casos resultou numa defesa de versões mais conservadoras e autoritárias de nacionalismo; Ibidem, p. 77.

24 KUPCHAN, Charles A., ed. – Nationalism and Nationalities in the New Europe. Nova York: Cornell University Press, 1995, p. 2.

25 GREENFELD, Liah – Nationalism: Five Roads to Modernity. Londres: Harvard University Press, 1992.

26 ANDERSON, Benedict – Imagined Communities: Reflections on the Origin and Spread of Nationalism. Londres; Nova York: Verso, 2006, p. 7.

27 O’CONNOR, W. – Ethnonationalism: The Quest for Understandings. Princeton: Princeton University Press, 1994, p. 42.

28 WOOLF, Stuart, ed. – Nationalism in Europe, 1815 to The Present, p. 50.

29 BREUILLY, John – Nationalism and the State. Chicago: University of Chicago Press, 1994.

30 HOBSBAWM, E. J. – Nations and Nationalism since 1780…, p. 191.

31Ibidem, p. 181.

32 KOHN, H. – The Idea of Nationalism, A Study in Its Origins and Background, p. 17.

33Ibidem.

34 Ibidem, p. 18.

35 Recorde-se o contributo clássico de Barrington Moore Jr. com a sua obra Social Origins of Dictatorship and Democracy – Lord and Peasant in the Making of the Modern World, para a compreensão dos diferentes papéis que a sociedade e as suas classes, em relação com as estruturas de poder político, tiveram para os diferentes percursos do capitalismo e das democracias representativas, e que é ilustrativo da multiplicidade de fatores sociais, económicos, políticos e culturais responsáveis pela caminhada distinta de cada Estado em matéria económica e política, e que aqui ousamos transpor para a questão nacional; MOORE Jr., Barrington – Social Origins of Dictatorship and Democracy – Lord and Peasant in the Making of the Modern World. Boston: Beacon Press, 1967.

36 GINGRICH, Andre; BANKS, Marcus, eds. – Neo-nationalism in Europe and Beyond: Perspectives from Social Anthropology. Nova York: Berghahn Books, 2006.

37Ibidem, p. 3.

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