SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número62Nacionalismo: back to basics índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.62 Lisboa jun. 2019

https://doi.org/10.23906/ri2019.62a01 

TRINTA ANOS DO FIM DO COMUNISMO: O REGRESSO DOS NACIONALISMOS

 

Nota introdutória

Trinta anos do fim do comunismo: o regresso dos nacionalismos na Europa Central e Oriental

 

Sandra Fernandes* e Madalena Meyer Resende**

* Universidade do Minho | Campus Universitário de Gualtar, 4710-057 Braga | sfernandes@eeg.uminho.pt

** NOVA FCSH e IPRI-NOVA | Avenida de Berna 26-C, 1069-061 Lisboa | madalena.resende@ipri.pt

 

Trinta anos depois da queda do Muro de Berlim, em novembro de 1989, o famoso diagnóstico de Francis Fukuyama de que o fim do leninismo significava a vitória final do liberalismo parece definitivamente contestado. O regresso do nacionalismo, particularmente expressivo na Europa Central e Oriental, dá antes razão aos que, como Ken Jowitt, o anunciaram como resposta ao vazio ideológico deixado pelo leninismo. Já no início dos anos 1990 a alta fragmentação social que o comunismo e a transição impunham a estas sociedades e sistemas políticos faziam prever o apelo das políticas de identidade.

É a esta região que voltamos, trinta anos passados das revoluções de 1989, e num momento em que o regresso global do nacionalismo enterrou a assunção do fim das ideologias. Neste número da R:I abordamos não só o fenómeno em si, como regressamos também a alguma da literatura que no início dos anos 1990 analisava já o fenómeno. Desde 1989, e apesar do entusiasmo em aderir às instituições europeias e transatlânticas, a mudança política determinou que o nacionalismo se tornasse numa ideologia duradoura que determina tanto o debate político interno quanto o posicionamento externo dos países da Europa Central e Oriental.

Também a integração europeia e a aliança transatlântica, que entretanto se alargaram a esta região, são afetadas pela chegada ao poder dos partidos nacionalistas e a viragem autoritária que a acompanha. Também na Europa Ocidental estas forças se constituem como ameaças ao modelo liberal e democrático, como é o caso da Itália e da França.

Hoje, as múltiplas crises que afetam a União Europeia (UE) têm evidenciado como países como os estados bálticos e o Grupo de Visegrado contribuíram para mudar as orientações políticas da Europa. O Brexit, as relações com a Rússia e a crise do Espaço Schengen face às pressões migratórias desafiam criticamente o projeto da UE e a sua capacidade de produzir políticas eficientes. Em 2019, num ano de mudança política – eleições para o Parlamento Europeu, Brexit e renovação da Comissão Europeia –, há poucas dúvidas de que novas formas de nacionalismo afetarão o espetro político e as políticas da UE. A nova legislatura europeia confirma o crescimento de partidos com programas que promovem uma narrativa nacionalista, identitária e eurocrítica. É ilustrativo o forte crescimento do grupo Identidade e Democracia, criado apenas em 2015, e que cresce de 37 para 73 eurodeputados, reforçado pelos membros da Liga italiana. Apesar da perda de assentos parlamentares, o grupo conservador e reformista (antifederalista), composto por polacos e britânicos, mantém a sua representação. No entanto, a mudança mais assinalável reside na existência de 57 eurodeputados sem filiação a nenhum grupo parlamentar, originários na sua maioria de partidos nacionais de extrema-direita.

O objetivo deste número especial é dar visibilidade à investigação recente sobre o impacto das novas formas de nacionalismos em questões relacionadas com a integração europeia. Deste modo, os artigos científicos coligidos neste número propiciam um maior acesso a esta agenda de investigação por parte da comunidade científica de língua portuguesa e do público em geral. O conjunto de artigos articula dois contributos complementares. Por um lado, aborda as novas dinâmicas nacionalistas numa perspetiva mais global do fenómeno no espaço europeu e numa proposta de conceptualização dos «novos» nacionalismos; por outro lado, esclarece realidades mais particulares ao comparar países do Leste como a Estónia, a Polónia e a Roménia. Deste modo, evidenciam-se as características pós-comunistas e pós-soviéticas dos nacionalismos nestes países e a forma como estas afetam o seu posicionamento enquanto estados-membros e as políticas da UE. No que diz respeito às relações com a Rússia, a herança pós-soviética manifesta-se de formas diferentes. Por exemplo, os estados bálticos desenvolveram políticas existenciais no que diz respeito aos assuntos russos, ao contrário da Hungria, que promove posições pró-russas e uma adoção do modelo mais autoritário e conservador de governação. No caso da Polónia, existem perceções antirrussas mas o modelo de governação atual desafia o ideário liberal promovido por Bruxelas.

Assim, Isabel Estrada Carvalhais apresenta uma reflexão sobre as teses que alimentam o nacionalismo de modo a localizar os novos contornos do fenómeno. Enquanto elemento portador e criador de identidade coletiva, a autora sublinha a primazia das teses primordialistas que fazem do nacionalismo uma fonte natural (biológica) de identidade, por oposição a algo socialmente construído e adaptável. Partindo da premissa do nacionalismo como uma construção passível de alterações mediante uma «vontade coletiva», a autora sugere o interculturalismo como meio de criar pontes entre culturas e identidades diferentes. Jean-Yves Camus, por sua vez, complementa este propósito de melhor definição do fenómeno nacionalista na atualidade. Observando uma profusão de literatura sobre a extrema-direita e a atual sobreposição deste termo com o «populismo», o autor esclarece os conteúdos dos termos à luz da evolução destes fenómenos políticos na Europa. Camus sublinha a alienação das extremas-direitas em relação aos valores democráticos, contrariamente aos populismos radicais de direita que se advogam defensores desses valores face a elites corruptas. Embora os populismos possam ser de esquerda ou de direita, este último distingue-se pelo estatuto dado aos estrangeiros no sentido da «preferência nacional». O artigo esclarece, no detalhe, as novas dinâmicas populistas e de extrema-direita no Parlamento Europeu no recente período pós-eleitoral de maio de 2019.

Andrey Makarychev e Illimar Ploom analisam a dimensão etnopolítica do nacionalismo ao abordar as dinâmicas políticas desencadeadas pela crise dos refugiados na Estónia, tendo em consideração que existe uma minoria de língua russa expressiva no país e que a identidade estónia se baseia em dinâmicas de securitização face à Rússia no sentido de necessidade de proteção. Ao comparar as narrativas em língua russa e em estónio – as quais constituem esferas semióticas distintas –, os autores esclarecem a forma como a Estónia tem percecionado a crise e o discurso da Rússia sobre a mesma, assim como a natureza liberal do regime estónio. Por sua vez, Alexandra Iancu coloca a ênfase na contestação dos novos estados-membros em relação à centralidade de Bruxelas sobre a definição dos valores europeus e em particular sobre a democracia. Olhando para os casos da Polónia e da Roménia, em estudo comparado, a autora evidencia semelhanças nos argumentos soberanistas dos dois países na sua interpretação dos valores europeus e o papel do Tribunal Europeu em defender os valores europeus. Tendo por pano de fundo um desencanto geral sobre as promessas de prosperidade da integração europeia, a consequência deste tipo de nacionalismo faz-se sentir na reinterpretação dos tratados num sentido minimalista.

O número também inclui um ensaio bibliográfico da autoria de Alberto Cunha sobre dois livros fundamentais do início dos anos 1990, que anunciam e preveem a função do nacionalismo nos Balcãs e na Europa Central e Oriental – The New World Disorder: The Leninist Extinction, de Ken Jowitt, e Imagining the Balkans, de Maria Todorova –, complementando assim os artigos que se debruçam sobre os temas do nacionalismo contemporâneo.

Com este conjunto de artigos, a R:I oferece uma análise atualizada dos novos contornos do nacionalismo na UE, dando ênfase às realidades no Centro e no Leste europeus. Estas reflexões alimentam o debate sobre a crise europeia e as resistências que emergem em relação aos valores liberais que subjazem ao projeto de integração. Para além do impacto que as forças políticas nacionalistas têm na erosão da democracia liberal a nível nacional, importa também compreender a forma como estas se posicionam em relação a diversos temas europeus, das questões institucionais às várias políticas da UE. Do passado europeu, já sabemos, nas palavras de François Mitterrand – no seu fim de mandato e fim de vida em 1995 – que «le nationalisme, c’est la guerre».

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons