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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.61 Lisboa mar. 2019

https://doi.org/10.23906/ri2019.61r01 

RECENSÃO

 

Migrações internacionais e insegurança humana no Mediterrâneo: Os anos recentes da Europa

 

João Estevens

IPRI-NOVA | Avenida de Berna, 26-C / 1069-061 Lisboa, Portugal | jestevens@fcsh.unl.pt

 

SUSANA FERREIRA, Human Security and Migration in Europe’s Southern Borders. Cham, Palgrave Macmillan, 2018, 211 páginas. ISBN: 978-3-319-77947-8

O tema das migrações mantém-se um tema atual e, portanto, fortemente presente na agenda das ciências sociais. Assim se compreende o grande aumento de publicações sobre o tema, com diferentes abordagens centradas no Direito, na Economia e nas Relações Internacionais. E é no âmbito disciplinar das Relações Internacionais que a relação entre migrações internacionais e segurança tem sido maioritariamente trabalhada, situando-se, nesta interseção a presente obra de Susana Ferreira, cujo percurso científico tem sido construído com um corpo de investigação sólido no âmbito do estudo das migrações e do controlo das fronteiras. O foco desta obra é entender como se podem gerir os fluxos migratórios no Mediterrâneo, sem que o necessário controlo das fronteiras e destes fluxos coloque em causa os direitos humanos dos migrantes. A ênfase do estudo é colocada nas migrações irregulares e delimita-se geograficamente às fronteiras sul do continente europeu, ou seja, às dinâmicas do Mediterrâneo. Num primeiro momento, analisam-se as respostas comunitárias e as posições seguidas pela União Europeia (UE) ao nível da política migratória e do controlo de fronteiras. Mais adiante, a autora trabalha, num nível micro, dois casos de estudo, designadamente a Espanha e a Itália, dois países que apresentam modelos dissemelhantes. A estrutura da obra pode ser dividida em três partes. Na primeira, abarcando os quatro primeiros capítulos, procede-se a uma apresentação detalhada sobre o tema e os atores, abordando a governação global das migrações, as interdependências transnacionais, os desafios da securitização e do controlo das fronteiras por parte dos estados. Posteriormente, entre os capítulos quinto e oitavo, a obra analisa a resposta da UE à crise migratória, considerando a política migratória comum seguida nos últimos anos, a estratégia integrada do controlo das fronteiras e as posições públicas dos principais atores políticos envolvidos, na medida em que os seus discursos e narrativas apresentam uma forte capacidade de modelar a opinião pública. A terceira e última parte do livro, que corresponde aos capítulos nono e décimo, examina comparativamente os casos espanhol e italiano, destacando-se as experiências de Ceuta e Melilha, e de Lampedusa, respetivamente. Na Espanha, desenvolveu-se uma estratégia integrada de monitorização e vigilância da costa, e, em sentido contrário, na Itália parece ter-se assistido à falta de coordenação entre as diferentes forças e serviços de segurança envolvidos no controlo da fronteira italiana.

A exploração de um tema complexo e das suas interdependências acontece com recurso a uma ampla revisão da literatura que o livro apresenta em temas como os desafios das migrações internacionais e da sua governação, a relação do binómio migrações-segurança, ou o papel das fronteiras e do controlo das mesmas, tanto ao nível nacional como comunitário. O mapeamento de autores, obras e perspetivas sobre estes temas é, de facto, uma parte significativa desta obra, sendo a sua sistematização uma contribuição valiosa para a comunidade académica que desenvolve investigação sobre estes temas. Ainda assim, o contributo fundamental parece residir na junção entre segurança humana e migrações, em que a autora desenvolve um quadro de proteção à dignidade da pessoa humana, que designa por «European Migration Minimum Standards (EMMS)». Ainda que não se sugiram políticas concretas a implementar, este quadro pensado no contexto da UE decorre claramente das componentes da segurança humana e dá aos estados, às instituições e à sociedade civil os princípios mínimos para enquadrar as migrações internacionais à luz da segurança humana, algo que ficou claramente secundarizado durante os últimos anos de governação das migrações na Europa. Daqui também se conclui que a revisão do sistema migratório nas escalas global, regional e nacional não se pode limitar somente à dimensão económica, sendo necessário considerar preocupações humanitárias no respeitante aos fluxos migratórios irregulares.

 

A PRIMAZIA DO CONTROLO DAS FRONTEIRAS SOBRE OS DIREITOS HUMANOS DOS MIGRANTES

Como garantir o controlo das fronteiras sem que este exercício da soberania nacional e da segurança regional coloque em causa a proteção dos direitos humanos dos migrantes? Esta é uma das grandes questões que subjaz à análise levada a cabo nesta obra. Não obstante o inegável compromisso da UE com os direitos humanos – a União desenvolve uma política comum em matéria de asilo, de imigração e de controlo das fronteiras externas, que deriva dos tratados europeus e privilegia a segurança –, nos últimos anos as necessidades de segurança comum e nacional parecem ter relegado para segundo plano a promoção e a proteção dos direitos humanos em várias iniciativas do controlo transfronteiriço, desde logo ao nível da detenção de migrantes. Existiu, na UE, uma aposta clara numa estratégia de detenção, que evidencia a ineficiência da política migratória comum na gestão dos fluxos migratórios irregulares na fronteira sul da União. Durante este período, assistiu-se a uma tendência de robustecimento do controlo das suas fronteiras externas, algo que é fundamental para a gestão dos fluxos migratórios irregulares. Ainda assim, a autora alerta para uma realidade: muitos migrantes entram no território europeu com um estatuto legal e acabam, em função de uma permanência dilatada, por cair, posteriormente, em situações de irregularidade. Seja como for, os principais obstáculos encontrados no que concerne o controlo das fronteiras da UE no Mediterrâneo têm sido as constantes tensões entre os estados-membros e as suas diferentes prioridades estratégicas, que dificultam a criação de uma estratégia una e operacionalizada através da participação e cooperação dos estados-membros. Porém, as noções de responsabilidade, de solidariedade e de proporcionalidade têm de estar presentes no entendimento dos estados-membros sobre a gestão da política migratória e do controlo das fronteiras para os próximos anos.

Há que apostar numa cooperação alargada que atue nos níveis bilateral, multilateral e regional, envolvendo os países de origem e os países de trânsito, forças e serviços de segurança, serviços de informações e a comunidade diplomática dos diferentes países. A experiência do reforço do controlo das fronteiras é necessária, mas não esgota as vias de entrada de migrantes no continente europeu, desde logo porque as rotas migratórias são mutáveis, adaptando-se aos diferentes ambientes securitários existentes, podendo sofrer desvios quando algumas das rotas se tornam insustentáveis para os migrantes efetuarem a travessia ou para as redes criminosas transnacionais organizadas operarem. Contudo, o controlo das fronteiras e os sistemas de vigilância são, para a autora, instrumentos efetivos na detenção e monitorização de movimentos irregulares, constituindo-se, também, enquanto fator dissuasor desses mesmos fluxos. Para além da política de desenvolvimento em países carenciados e de detenção dos migrantes irregulares, a gestão das migrações deve abordar outros desafios num futuro próximo. A revisão do Sistema de Dublin, a abertura de rotas legais para a circulação de pessoas, a instauração de maior coordenação, e o reforço das operações marítimas conjuntas são algumas das possibilidades de atuação que merecem a atenção dos estados-membros e da UE. Só deste modo se poderá pensar e planear as políticas migratórias e o controlo das fronteiras antecipadamente, evitando que estas permaneçam com um caráter restritivo e reativo, que acrescenta dificuldades à gestão dos fluxos migratórios irregulares em tempos de crise.

 

OS DESAFIOS DA SEGURANÇA HUMANA QUE PERMANECEM ESQUECIDOS

A insegurança humana que as populações experienciam em diferentes regiões do planeta constitui-se como um determinante da mobilidade humana, especialmente no que diz respeito a fluxos migratórios irregulares e descontrolados. Mas essas mesmas populações enfrentam diversas situações de vulnerabilidade e de insegurança humana quando em trânsito, nos centros de detenção e, por vezes, mesmo quando se tentam integrar nos países de acolhimento. Partindo dos direitos humanos e da dignidade da pessoa humana, existem muitas fases do processo migratório em que os indivíduos se debatem com situações de insegurança humana, sendo esta uma causa e uma consequência do fenómeno migratório em muitas situações. Todavia, nem todas as premissas de atuação da segurança humana são novas, existindo princípios de segurança preventiva e cooperativa com recurso a diferentes atores (estados, instituições internacionais, organizações não governamentais e outros atores da sociedade civil) para promover uma atuação multinível na gestão das migrações irregulares. Uma das ideias que a obra acaba por deixar é a forma como uma maior justiça social e respeito pela proteção dos direitos humanos pode apresentar consequências positivas para a segurança de migrantes, refugiados e requerentes de asilo, beneficiando assim não só estes indivíduos, mas o próprio sistema migratório como um todo.

A operacionalização deste reforço da segurança humana de migrantes, refugiados e requerentes de asilo é materializada com a existência de um quadro com padrões mínimos que poderia ser aplicado no espaço europeu numa base voluntária. Deste quadro constam princípios como o respeito pela dignidade da pessoa humana, o compromisso dos estados para evitar a perda de vidas humanas e violações à integridade física daqueles que atravessam o Mediterrâneo, o direito à atribuição de asilo e de proteção internacional, o direito a um acolhimento digno e em segurança, enquanto se espera por uma decisão política ou administrativa no respeitante ao estatuto dos migrantes, condutas e práticas baseadas em princípios de igualdade e não discriminação, bem como de respeito pela diversidade cultural, religiosa e linguística daqueles que tentam entrar no território europeu. Assim, esta proposta responsabilizaria a UE e os estados-membros na promoção e garantia da segurança humana, ainda que não detalhe a forma exata como este quadro poderia ser aplicado e fiscalizado, deixando estas definições para futuros exercícios cooperativos entre os atores envolvidos. À semelhança de outros trabalhos que procuram articular migrações irregulares e segurança humana, existem várias dificuldades de operacionalização deste conceito, acabando-se por privilegiar princípios orientadores ou quadros normativos que não vinculam a atuação dos estados e das suas práticas no âmbito da gestão das migrações e do controlo das fronteiras.

Em suma, este é um livro que nos convida a refletir sobre um tema atual e fundamental à organização das sociedades multiculturais e globalizadas do século xxi, permitindo compreender as causas da necessidade do controlo das fronteiras como forma de dissuasão e de gestão de elevados fluxos migratórios irregulares. Estas medidas de controlo tendem a apresentar uma dimensão normativa proveniente de um entendimento securitário que assume a existência de possíveis riscos de segurança aquando da integração dos fluxos migratórios, muitos dos quais compostos por refugiados e requerentes de asilo, nos territórios nacionais. E é na gestão destes processos de aceitação, de detenção, de espera e de expulsão que é fundamental assegurar a proteção subsidiária ou temporária destas populações fragilizadas pelas condições de vulnerabilidade encontradas nos países de origem e durante a viagem para o espaço europeu, garantindo os seus direitos humanos. É neste contexto que a obra de Susana Ferreira encontra o seu espaço, oferecendo um entendimento multidimensional e crítico das complexas dinâmicas que convergem para as respostas migratórias nacionais e comunitárias encontradas nos últimos anos e aquelas que se podem esperar no futuro. A autora centra o seu argumento numa solução de compromisso, que defende a revisão do modelo de governação global e regional das migrações, assentando a sua proposta num sistema que não esquece um forte controlo das fronteiras enquanto exercício da soberania nacional, mas que dá um espaço maior à dimensão humanitária, designadamente no respeitante à proteção dos direitos humanos e da dignidade humana do migrante.

João Estevens Doutorando em Estudos sobre a Globalização, mestre em Ciência Política e Relações Internacionais e licenciado em Economia e em Ciência Política e Relações Internacionais. É também pós-graduado em Programação e Gestão Cultural e em Gestão de Informações e Segurança. Investigador do IPRI-NOVA. Tem desenvolvido investigação nas áreas da demografia política, das informações, dos estudos de segurança e da democratização.

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