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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.60 Lisboa dez. 2018

https://doi.org/10.23906/ri2018.60r02 

RECENSÃO

 

A paz, a guerra e as paixões de Raymond Aron

 

Patrícia Daehnhardt

IPRI-NOVA | Rua de D. Estefânia, 195, 5.º Dt.º, 1000-155 Lisboa | patricia.daehnhardt@ipri.pt

 

CARLOS GASPAR, Raymond Aron e a Guerra Fria. Alêtheia Editores, 2018, 208 páginas

A mais recente obra de Carlos Gaspar, Raymond Aron e a Guerra Fria, revela-nos a história da vida intelectual de Raymond Aron que se entrelaça com a história da Guerra Fria, numa obra de escrita eloquente, e consolidada por uma extensa bibliografia, a partir de inúmeros textos de Aron, que aqui nos surge simultaneamente como observador e protagonista da mesma. Desde logo, destacam-se quatro aspetos. Primeiro, a linha coerente com que o próprio Carlos Gaspar tem tratado a história da Guerra Fria, o que se reflete nas suas obras A Balança da Europa (2017) ou O Fim da Guerra Fria (2016). Segundo, o rigor na investigação a partir da leitura impressionante de várias centenas de peças escritas por Aron, e na recriação de uma – senão a – figura mais importante no estudo das relações internacionais modernas francesas, o «melhor cronista da Guerra Fria» (p. 177). Terceiro, a atualidade que Carlos Gaspar identifica no pensamento de Aron na análise do mundo que alguns chamam de pós-atlântico e pós-americano. A preocupação com a possibilidade de um retraimento norte-americano após a Segunda Guerra Mundial explica o apoio de Aron à Europa Ocidental, e o apelo de «criar tão rapidamente quanto possível as condições para que os Europeus possam garantir a sua própria defesa coletiva» ao mesmo tempo que fazia uma opção clara: «Se for preciso escolher entre a unidade europeia e a comunidade atlântica, deve-se escolher a segunda» (pp. 35-36). Perante as mudanças estratégicas norte-americanas, acentuadas pelo unilateralismo e transacionismo do Presidente Donald Trump, que no melhor dos cenários visam o fortalecimento da defesa europeia em paralelo com o da Aliança Atlântica, e, no pior caso, a erosão da comunidade de segurança transatlântica, a defesa coletiva europeia pensada por Aron volta a ser tema de acutilante atualidade, num contexto de crescentes paixões nacionalistas e polarizações políticas nas sociedades de ambos os lados do Atlântico. Por último, o livro faz jus às relações internacionais pensadas em França, ao serem resgatadas do predomínio anglo-saxónico a que são sujeitas numa academia muito moldada pelas escolas britânica e norte-americana de relações internacionais.

Raymond Aron foi filósofo e sociólogo de formação, intelectual, jornalista, escritor político e filósofo público, o principal académico das relações internacionais em França, onde não existia nem existe uma escola francesa de relações internacionais, nem Aron a queria ter integrado. Com uma lucidez e racionalidade intelectual marcante, coerência analítica e espírito inconformável em defesa de valores liberais, o autor de obras como Le Grand Chisme (1948), Les Guerres en Chaîne (1951) e Paix et Guerre entre les Nations (1962), cedo identificou a relevância das alterações estruturais do sistema internacional e a emergente competição entre as duas potências vitoriosas do conflito mundial.

A escrita de Aron dividiu-se entre os artigos que escrevia duas vezes por semana para o Fígaro (onde escreveu desde 1947), a preparação dos cursos na universidade (da sociedade industrial à política internacional), e o pensamento mais consolidado nos cerca de 40 livros que escreveu. A vastidão temática levou-o a escrever sobre sociologia histórica, teoria política, teoria das relações internacionais, a doutrina nuclear e a política internacional à qual ele diariamente assistia.

De uma forma singular entre os académicos franceses, gozou de uma reputação excecional para lá das fronteiras da França, durante os anos de estudo em Berlim, no exílio em Londres, ou nos Estados Unidos, tendo contado entre os seus parceiros de debate Arthur Schlesinger, Henry Kissinger e John Kennedy. Um europeu cuja formação política tinha sido «a queda da República de Weimar e a tomada do poder pelo nazismo» (p. 56), mas que reconhecia na reconciliação franco-alemã um dos pressupostos para a paz na Europa.

Sobre o próprio Raymond Aron, entre os principais traços de caráter traçados nesta obra define-se a estatura da personalidade de Aron: liberal, judeu, solitário, e incorruptível; um «liberal incorrigível» que na sua coerência intelectual rompe com a sua família política, afastando-se de marxistas e neutralistas (p. 62), e criticando a «hegemonia marxista na universidade francesa» (p. 122), ao mesmo tempo que assumia a rutura com o general de Gaulle, e vivia um período de afastamento da academia francesa à qual só regressaria após a demissão de Gaulle, quando, para estar no centro dos acontecimentos, aceitou lecionar nas universidades da Sorbonne e de Sciences-Po.

É de ressaltar a coragem com que Aron sempre defendeu uma posição independente na academia e na política, e a integridade e coerência com que sustentou as suas ideias, a partir de uma visão trágica da história, sem vacilar, como aconteceu, por exemplo, na defesa da inevitabilidade da independência da Argélia, na aliança das democracias ocidentais, e na «defesa da união ocidental e da reconciliação franco-alemã, contra os nacionalistas, os neutralistas, os pacifistas e os comunistas» (p. 34). Como escreve Gaspar sobre Aron, «o seu mérito é ter sido tantas vezes o primeiro a tomar a posição justa em defesa das causas patrióticas e liberais, parciais e imperfeitas, que iluminam o sentido da história do século XX, assim como a enunciar, tantas vezes contra a corrente, a previsão certa sobre as tendências da sociedade internacional» (p. 177).

Das questões sobre as quais Aron dedicou décadas de pensamento, destacam-se quatro: paz e guerra (e a questão nuclear), homogeneidade e heterogeneidade no sistema internacional, a sociedade industrial, e a ascensão e declínio das potências no sistema internacional. Tratava estes temas através do modelo de análise dos três níveis – o sistema internacional, a política externa dos estados, e os regimes políticos e sistemas partidários, ao qual acrescentava a dimensão estratégica militar (debate nuclear) e a dimensão ideacional e económica. Por outras palavras, não era um realista clássico, porque a sua análise ultrapassava a mera dimensão dos interesses do Estado, reconhecendo que a essência da política internacional permanecia a «paz e guerra entre nações» – em contraponto à essência política identificada por Hans Morgenthau, um dos expoentes máximos da disciplina nos Estados Unidos, como sendo a «política entre as nações» em Politics among Nations (1948) (p. 72).

A precisão analítica encontra-se, por exemplo, no tratamento das ideologias políticas, quando Aron reconheceu o comunismo e o nazismo ambos como totalitarismos, sem não deixar de distinguir entre os dois. Definiu o século XX como o século das guerras totais e das revoluções totalitárias, mas resistiu à «tentação de construir uma teoria do totalitarismo» por rejeitar a hipótese de «criar um tipo-ideal do totalitarismo, ou de definir um tipo único de regime totalitário» (p. 59).

No seu magnum opus, Paz e Guerra entre as Nações, de 1962, desenvolveu «a primeira teoria da ordem anárquica do sistema de Estados, radicalmente diferente da ordem hierárquica interna dos Estados e analisa as estruturas de distribuição do poder e a natureza homogénea ou heterogénea dos sistemas internacionais» (p. 72). Aron identificou a impossibilidade de «restauração da ordem internacional» após 1945, devido à «dupla vitória dos Estados Unidos e da União Soviética», onde a

«competição ideológica determina a heterogeneidade radical do sistema internacional: a principal potência marítima e a principal potência continental não falam a mesma linguagem, nem podem desistir da sua missão universal sem prejudicar a legitimidade dos seus regimes políticos ou, em todo o caso, sem negar as suas pretensões universalistas» (pp. 55-56).

A fórmula «paz impossível, guerra improvável» sugeria que «a guerra hegemónica continua a ser improvável e o estatuto nuclear das duas superpotências consolida o equilíbrio bipolar», onde «as crises – como a dupla crise húngara e do Suez, a crise de Cuba ou a Guerra do Yom Kippur ou a crise do Irão – são os substitutos das guerras hegemónicas e servem para moldar os equilíbrios e definir as regras da política internacional» (p. 76). A «impotência dos aliados europeus» fica patente no Suez, quando as duas superpotências revelam a cumplicidade dos dois «irmãos inimigos», demonstrando a sua «autoridade hierárquica» no sistema internacional (p. 83). Gaspar retrata a evolução das doutrinas nucleares, das represálias maciças à resposta flexível, da Cimeira de Nassau à rejeição da Força Multilateral da nato pelo Presidente de Gaulle assim como o veto do general à entrada da Grã-Bretanha nas Comunidades Europeias, explicando como «a divergência gaullista torna-se um fator de crise permanente na nato e leva à substituição da França pela Alemanha como o principal aliado dos Estados Unidos na Europa na comunidade transatlântica» (p. 100).

O debate nuclear – hoje novamente em cima da mesa, em contornos obviamente diferenciados – é desenvolvido em pormenor, reconhecendo Gaspar a relevância de Aron ter singularizado a revolução nuclear e uma teoria da dissuasão como elemento essencial à compreensão da bipolaridade, e de ter defendido «o acesso da França às capacidades nucleares que podem garantir a sua autonomia estratégica na política internacional» (pp. 116-117), ao mesmo tempo que conhecia a importância de evitar uma rutura entre Paris e Washington a propósito da questão nuclear.

Quanto à Europa, Aron era patriota, e europeu, sem ser federalista, e acreditava que a Europa ou se fazia através de uma Europa da defesa ou não se fazia de todo. Considerou que «o fracasso da Comunidade Europeia de Defesa (CED) foi a “certidão de óbito” da integração europeia» (p. 85), reconhecendo na reconciliação franco-alemã o pressuposto para a paz na Europa – o fim da unidade alemã é o princípio da construção europeia –, assim como era defensor da aliança franco-britânica e da comunidade ocidental. A CED era uma alternativa fraca à adesão da República Federal à nato e, retrospetivamente, Aron considerou que o seu fim marcou o fracasso do projeto de integração comunitária, apenas compensado pela Aliança Atlântica, que Aron valorizava mais.

Já os Estados Unidos, Aron via-os como tendo chegado ao fim da sua hegemonia, após «a retirada do Vietnam que implica uma revisão das prioridades norte-americanas no início de um ciclo de retraimento estratégico dos Estados Unidos» (p. 110) e «o início de uma nova fase de expansão planetária da União Soviética» (p. 146), nos anos 1975-1976. Raymond Aron constata que a détente, a paridade global e a estratégia ofensiva soviética marcaram o recuo americano e o fim de três décadas de «hegemonia americana», e que a détente «criou condições adicionais para a transformação da União Soviética numa potência global» (p. 149). Contudo, escreve Carlos Gaspar, «Aron reconhece a hegemonia militar da União Soviética, mas não uma “hegemonia soviética” que possa tomar o lugar da “hegemonia americana” na sociedade internacional» (p. 157).

A defesa de uma nova Europa que é, e não pode não ser, a velha Europa das nações, que tem de se reconfigurar como parte de uma «civilização atlântica», ou de uma «união ocidental», é tão válida hoje como o foi quando Aron a fez. Como reconhece Carlos Gaspar, «retrospetivamente, as análises de Raymond Aron parecem evidentes e é essa a melhor demonstração de que soube ter razão antes do tempo» (p. 177).

Em suma, Carlos Gaspar apresenta-nos um trabalho notável sobre um intelectual soberbo no seu contributo, inteligente na sua capacidade analítica e inabalável nas suas convicções, no enquadramento de um período da história recente que já parece longínquo, mas que se torna incontornável para quem quer compreender a desordem internacional dos dias de hoje.

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