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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.60 Lisboa dez. 2018

https://doi.org/10.23906/ri2018.60a06 

A ORDEM INTERNACIONAL PÓS-AMERICANA

 

A «Política da China para África» e as ambições globais da China

“China’s Africa Policy” and the global ambitions of China

 

Sofia Fernandes

Direção-Geral das Atividades Económicas | Avenida Visconde de Valmor, 72, 1069-041 Lisboa| sofiacordeiro.fernandes@dgae.min-economia.pt

 

RESUMO

Em 2006, o Conselho de Estado chinês publicou o documento China’s Africa Policy, enquadrador da estratégia da China para África. Em 2011, num contexto de crescente globalização da política externa da China, foi publicado o documento China’s Foreign Aid, com a especificação das modalidades de ajuda e das prioridades da política de cooperação da China. Neste artigo pretendemos refletir sobre as evoluções mais recentes das tendências da política externa chinesa, tendo como ponto de partida a política da China para África, e como caso as relações bilaterais entre a China e Angola. Assim, num primeiro momento refletimos sobre as motivações que levaram o Governo chinês a multiplicar os laços económicos e políticos com países africanos, desde a entrada no novo milénio, partindo do caso específico dos financiamentos concedidos pelo Governo chinês a Angola desde 2003. Posteriormente, refletimos sobre as constantes e linhas de força da política externa chinesa, com uma incursão sobre as mais recentes discussões relativamente às aspirações internacionais/globais da China.

Palavras-chave: China, África, política externa chinesa, Angola.

 

ABSTRACT

In 2016, the Chinese State Council (CSC) published the paper China’s Africa Policy, as a framework for the strategy of China in Africa. In 2011 the CSC published the whitepaper China’s Foreign Aid, including specifications on aid modalities, and the definition of sector for future cooperation between China and Africa. With this paper we intend to discuss the recent trends in Chinese foreign policy, the starting point being China’s Africa policy, and as a case the China-Angola bilateral relations. We start by discussing the strategy of China towards Africa, since 2003, building on the case study of Chinese credit lines provided to the Angolan Government. We proceed with a discussion on guiding principles in Chinese foreign policy, shedding a light on recent debates on China’s global aspirations.

Keywords: China, Africa, Chinese foreign policy, Angola.

 

Em 2006, o Conselho de Estado chinês publicou o documento China’s Africa Policy, enquadrador da estratégia da China para África. Em 2011, num contexto de crescente globalização da política externa da China, é publicado o documento China’s Foreign Aid, com a especificação das modalidades de ajuda e das prioridades da política de cooperação da China. Neste artigo pretendemos refletir sobre as evoluções mais recentes das tendências/perspetivas da política externa chinesa, tendo como ponto de partida a política da China para África, e como caso as relações bilaterais entre a China e Angola.

Num primeiro momento refletimos sobre as motivações que levaram o Governo chinês a multiplicar os laços económicos e políticos com países africanos, desde a entrada no novo milénio, partindo do caso específico dos financiamentos concedidos pelo Governo chinês a Angola desde 2003. Posteriormente, refletimos sobre as constantes e linhas de força da política externa chinesa, com uma incursão sobre as mais recentes discussões relativamente às aspirações internacionais/globais da China.

 

A POLÍTICA DA CHINA PARA ÁFRICA: CONTEXTO

O empréstimo inicial de 150 milhões de euros do Eximbank (Export-Import Bank) da China ao Governo de Angola, em 2003, constitui o primeiro de uma série de acordos financeiros assinados entre os dois governos. A mais recente evidência reporta um financiamento de dois mil milhões de dólares destinado a infraestruturas em Angola, assinado entre o Governo de Angola e o China Development Bank1 em outubro último. As várias linhas de crédito concedidas por bancos chineses a Angola (estatais e também um fundo privado, China International Fund) somarão, no presente, cerca de 20 mil milhões de dólares. Estes empréstimos, com as suas condicionantes, despoletaram alertas de um «novo safari em África», colocando em causa as intenções chinesas de uma política «Sul-Sul». A política da China para África não é uma novidade do novo século: a China tem mantido uma diplomacia ativa com países africanos desde meados da década de 19702.

Esta política foi apenas contextualizada no âmbito de uma estratégia global da China, que teve como ponto de partida importante a «Go Out Strategy», apresentada em 2001 pelo vice-presidente chinês Wu Bangguo. Em primeiro lugar, o objetivo da estratégia consistia na busca de mercados externos para o excesso de capacidade instalada na China em alguns setores industriais e no setor da construção. Complementarmente, a estratégia visava igualmente a «subida» da China nas cadeias de valor globais, ao aceder a conhecimento (know-how) e tecnologia em setores de maior valor acrescentado, por via de aquisições e de fusões de empresas no exterior.

Em segundo lugar, a estratégia tinha como objetivo facilitar o acesso das empresas petrolíferas nacionais chinesas (a Sinopec e a CNOOC – China National Offshore Oil Corporation) a contratos de fornecimento, ou à participação direta na exploração de petróleo no exterior.

A criação de um enquadramento internacional mais favorável à China não foi um objetivo manifesto da «Go Out Strategy». Contudo, podem ser encontrados elementos que validam esta intenção da parte das autoridades ao conceber os policy papers3 relativos a África e à ajuda a países terceiros. Tendo em conta o relativo «desinvestimento» operado pelas principais potências desde meados da década 1990 no continente africano, este foi considerado de fácil abordagem para a prossecução desta política de soft power chinesa.

 

SEGURANÇA ENERGÉTICA

Os empréstimos da China a Angola foram outorgados em troca de petróleo, como referido, sendo esta uma das dimensões-chave da «Go Out Policy».

Na base desta dimensão radica a necessidade de garantir a estabilidade de fornecimento de recursos naturais, em particular de petróleo, à China, de forma a manter o ritmo acelerado de crescimento da indústria e do consumo privado no país. Entre 1980 e 2000, o consumo de petróleo duplicou na China (de 2,3 milhões de barris diários para 4,7 milhões de barris diários); entre 2000 e 2010, em apenas dez anos, o consumo de petróleo mais que duplicou, de 4,7 para 9,2 milhões de barris diários. O abastecimento regular de petróleo (segurança energética) tornou-se assim uma prioridade em termos de segurança nacional. Neste contexto, afirmaram-se como premissas da atuação externa a procura de assinatura de contratos de fornecimento em geografias variáveis, a manutenção de rotas marítimas de abastecimento seguras4, e o aumento da capacidade interna de armazenamento de energia.

 

MERCADO E TECNOLOGIA PARA AS EMPRESAS CHINESAS

A «Go Out Strategy», uma estratégia económica de internacionalização da economia, relacionada com a procura de ativos estratégicos, foi complementada, no que se refere a África, com a publicação, pelo Conselho de Estado da China, dos documentos China’sAfrica Policy, em 2006, e do China’s Foreign Aid, em 2011.

O primeiro, num contexto de aprofundamento das relações comerciais entre a China e o continente, define orientações estratégicas quanto aos setores de cooperação a promover entre as duas regiões, estabelecendo diretrizes genéricas para a cooperação bilateral no âmbito económico e financeiro, assim como um enquadramento geral relativo a apoio mútuo nas instituições multilaterais.

O segundo documento centra-se em particular nas modalidades e regras de empréstimos externos a conceder pelo Estado chinês no âmbito da ajuda externa a «países menos desenvolvidos».

A «Go Out Strategy», por seu turno, tinha como ponto de alavancagem a acumulação de um excesso de reservas em moeda estrangeira, que viabilizou, a partir de 2003, o investimento de empresas privadas chinesas no exterior5. A partir de então, foi desenvolvido um complexo sistema financeiro, que inclui linhas de crédito oficiais (Estado a Estado), não oficiais6, subsídios e acesso facilitado a crédito para empresas com atividade no exterior7. Uma parte considerável do excedente de divisas em moeda estrangeira foi aplicada na internacionalização da economia chinesa, incluindo o investimento em posições geoestratégicas com o objetivo de garantir a independência energética e igualmente na concessão de ajuda externa aos países em desenvolvimento.

A tentativa de um maior controlo das cadeias de valor globais, em particular da distribuição, por parte das empresas chinesas, foi, segundo alguns autores8, inicialmente ensaiada em África. É assim atribuída a denominação de «território de ensaio» às operações das multinacionais chinesas em África, como um primeiro período de estágio e aprendizagem antes de passarem a atuar em mercados mais desenvolvidos e complexos.

Tendo em conta que 60 por cento da produção chinesa de produtos manufaturados estava contratualizada ao abrigo de contratos de fabrico, as margens de lucro eram relativamente reduzidas9. O modo de atuação para o mercado africano passava por vender diretamente no mercado local, sem recurso a distribuidores, produtos de «marca branca». A realização de investimentos diretos no setor têxtil em países como o Togo, o Quénia ou o Mali, com o objetivo de beneficiar de acordos preferenciais de comércio, por parte dos investidores chineses10, constituiu outro modo de atuação das empresas chinesas nesta fase.

 

A CRIAÇÃO DE UM ENQUADRAMENTO INTERNACIONAL FAVORÁVEL À CHINA

Uma terceira motivação para a política chinesa em África refere-se à criação de um enquadramento internacional mais favorável à China. A diplomacia de influência da China no continente africano não é uma novidade: se na década de 1970 se registaram tentativas de intervenção em contexto de libertação colonial em países como Angola, Tanzânia, Etiópia, Zaire (entre outros), no novo milénio a China busca, como anteriormente, desenvolver uma diplomacia de influência/um soft power destinada a granjear o maior número de simpatizantes. Este apoio é particularmente importante em organizações multilaterais como a ONU ou a OMC (Organização Mundial do Comércio).

Importante, neste contexto, é o reconhecimento de Taiwan. A China tem procurado sempre como moeda de troca na cooperação externa o reconhecimento incondicional da República Popular da China (RPC) como legítimo representante do povo chinês, o que resulta na prática na recusa do reconhecimento da República da China, ou seja, do Governo de Taiwan.

É importante contextualizar aqui as constantes presentes na condução da política externa chinesa, nomeadamente a soberania, a autonomia e a independência de atuação face a compromissos internacionais, nomeadamente multilaterais11.

 

CONSTANTES DA POLÍTICA EXTERNA CHINESA

A prioridade concedida à soberania é um dos princípios orientadores da política externa chinesa, desde a fundação da RPC em 1949. A prioridade da soberania decorre de um enquadramento histórico secular/milenar e igualmente da história mais «recente» da China.
O sistema tributário que vigorou na China até meados do século XIX foi propício ao isolamento internacional da China. Adicionalmente, as derrotas militares decorrentes das duas guerras do ópio contra os britânicos (em 1839-1842 e entre 1856-1860)12, as revoltas Taiping13 (1860-1874), e as invasões militares japonesas (em 1894 e em 1931), deixaram marcas profundas na psique nacional, relembrando que os encontros com os países estrangeiros sempre haviam produzido resultados negativos e humilhantes para o orgulho nacional chinês14.

Assim, a soberania enquanto constante da política externa chinesa é acompanhada da autonomia, que se caracteriza pela independência de atuação na esfera externa relativamente a restrições ou códigos de conduta que decorrem da adesão, como membro de pleno direito, a organizações internacionais. Estas restrições referem-se ao condicionamento da participação da China em acordos de comércio, de segurança coletiva ou de harmonização financeira. A China acedeu à OMC apenas em outubro de 2001, e, no âmbito da segurança, é membro apenas da Organização de Cooperação de Xangai, fundada em 2001 (conjuntamente com a Rússia, o Cazaquistão, o Quirguistão, o Tajiquistão e o Uzbequistão).

O conceito de «interdependência complexa» descrito em 197715 sublinhava o papel das organizações internacionais/multilaterais como fora de resolução e de discussão de matérias de interesse geral, num contexto do aumento dos intercâmbios comerciais, financeiros e económicos entre estados. Dada a indisponibilidade demonstrada pelos líderes chineses para um maior envolvimento nas instituições multilaterais, a política externa chinesa tem sido extremamente «proativa», caracterizando-se pela necessidade de projetar e de defender os interesses do PCC (Partido Comunista Chinês) no maior número de cenários geográficos, através da multiplicação de delegações diplomáticas e consulares.

Para garantir a autonomia de atuação, a China optou tradicionalmente por uma política externa de largo espetro, destinada a influenciar positivamente um sistema internacional considerado adverso. Após o final da Guerra Fria e face à interdependência crescente despoletada pela internacionalização da economia chinesa, a liderança conduziu uma política externa proativa destinada a exercer uma interferência internacional aprofundada, no sentido de que a «defesa da soberania chinesa inclui a defesa de uma ordem internacional que apoia o sistema político chinês»16.

Na ótica dos governantes chineses, as ameaças à soberania chinesa podem advir de um sistema internacional desfavorável aos interesses chineses, resultado de contradições fundamentais ou de conflitos de interesse resultantes de sistemas sociais e de ideologias opostas à vigente na China, assim como de disputas económicas, comerciais ou de direito marítimo.

O objetivo de «criar um ambiente internacional favorável aos interesses chineses» terá contribuído para um maior envolvimento nas instituições multilaterais, favorável à projeção de uma imagem enquanto poder responsável. No entanto, este envolvimento é caracterizado por limites muito restritos, que se relacionam com o comprometimento com valores culturais específicos e com a permanência do PCC no poder.

O crescimento económico é igualmente uma das características inerentes ao conceito de comprehensive power (poder abrangente) que tem vindo a ser defendido desde há mais de duas décadas pelos líderes chineses. Deng17, um importante conselheiro em matéria de política externa do Bureau Político do PCC, referia, em 1988, que o conceito de poderabrangente na ótica chinesa era composto não só por uma vertente militar e de segurança, como previa uma ascensão da China no ranking das economias. A importância do crescimento económico enquanto fonte de poder foi entretanto reforçada, tornando-se o crescimento um objetivo em si mesmo18, e, em simultâneo, uma componente assumida das características de potência, a partir da qual a China pretende projetar na esfera interna a sua visão enquanto poder global.

A legitimidade do poder do PCC na China assenta na capacidade de assegurar a manutenção de taxas de crescimento na ordem dos sete por cento, por parte da economia chinesa19. Este argumento tem vindo a ser defendido desde há muito20, sendo que abaixo deste limiar se considera que o PCC não poderá resolver as enormes assimetrias de rendimento nem melhorar de forma mais equitativa as condições de vida da população na China21.

O sistema de registo de residência (sistema Hukou), ainda hoje em vigor, impõe importantes restrições de circulação e de estabelecimento aos residentes de áreas rurais nas cidades22, o que resulta na propagação de um sistema de desigualdade de acesso a bens sociais por parte dos cidadãos com menor rendimento.

O crescimento económico institui-se, apesar de tudo, como um elemento do «contrato social» entre o Partido-Estado e a sua população, na medida em que encerra em si mesmo aspirações de mobilidade social23.

É neste contexto que a nomeação de Xi Jinping como secretário-geral do PCC, em março de 2013, inaugurou um novo patamar na inserção internacional da China, que se apresenta agora como um poder com ambições globais, destacado da dimensão meramente regional da sua política externa, característica da era de Hu Jintao (2003-2013).

O início do mandato de Hu Jintao, em março de 2003, foi marcado pela apresentação do conceito de «China’s Rise», por Zheng Bijian, membro do Comité Central do PCC no importante Bo’Ao Forum for Asia. O discurso de Zheng Bijian refere que a «China enquanto país asiático desempenhará um papel mais útil e ativo no desenvolvimento, prosperidade e estabilidade dos restantes países asiáticos, em particular dos países vizinhos»24.

Estas declarações, objeto de críticas entre os meios políticos e académicos chineses, levaram à reformulação do conceito de «China’s Rise/Peaceful Rise» para «Peaceful Development», em sinal das intenções pacíficas da China no contexto regional.

Com Xi Jinping, em 2013, foi inaugurada a «nova era» de afirmação da China enquanto poder global. As aspirações a uma «China Global» foram tornadas claras por Xi Jinping no 19.º Congresso do PCC, em outubro de 2017, ao referir que esta «se encontra mais próxima, mais confiante e mais capaz do que nunca (no passado) de tornar realidade o objetivo do “rejuvenescimento” nacional, o que significa na prática a recondução da China ao seu lugar de direito enquanto potência mundial»25. A ideia de recuperação do lugar de direito da China no sistema internacional vem sendo veiculada desde finais da década de 1990, posteriormente repassada por Lin Yushan em 2009, e congrega uma visão de prosperidade internacional para a China (com a questão da legitimidade e do contrato social) a par de uma visão da China enquanto potência internacional reconhecida26.

Se as aspirações em termos de projeção externa foram mitigadas (com a alteração do slogan «China’s Rise» para «Peaceful Development», em 2003), em apenas uma década, com o início do mandato de Xi Jinping em março de 2013, a liderança chinesa alterou a autorrepresentação e a representação externa da China enquanto potência que não procura o confronto e que pretende a manutenção do statu quo, para um posicionamento mais assertivo no sistema internacional.

O relatório do 19.º Congresso refere assim como aspiração «que a China se torne líder global da inovação, força nacional “composta” e uma influência internacional nas próximas décadas»27. Na verdade, desde a crise financeira de 2008-2009 que se tem debatido o estatuto da China no mundo, encarando os académicos chineses as várias crises no Ocidente – casos da Administração Trump e do Brexit –, como oportunidades para uma maior proeminência internacional da China.

No entanto, a viragem para uma abordagem mais assertiva do papel da China no mundo tem criado reservas e sentimentos contrários e de precaução, não apenas nos Estados Unidos, mas entre os países da União Europeia.

A US National Security Strategy, publicada pela Casa Branca no final de 2017, identifica a China como um poder revisionista, que representa uma ameaça aos valores e interesses dos Estados Unidos. A União Europeia, por seu turno, aprovou recentemente um mecanismo de cooperação entre os estados-membros que prevê o screening (escrutínio) comunitário por parte da Comissão Europeia relativamente ao investimento estrangeiro. A medida não é dirigida especificamente ao investimento originário da China, contudo os estudos que precederam os debates prévios à elaboração legislativa tiveram por base as aquisições recentes de empresas europeias por parte de empresas estatais chinesas, consideradas como potenciais ameaças à segurança nacional dos estados-membros.

 

CONCLUSÃO

A «Política da China para África» (China’s Africa Policy, 2006), um documento que configurou as orientações estratégicas para as relações bilaterais da China com o continente africano, foi um instrumento de alguma forma pioneiro de definição e de comunicação externa, por parte da China, de uma política externa com ambições globais.

Em 2001, a «Go Out Strategy» havia definido uma estratégia global, mas de âmbito mais restrito, configurada sobretudo ao espetro económico e de procura de soluções para problemas imediatos colocados à economia chinesa (sobrecapacidade em determinados setores, insuficiência de recursos energéticos e necessidade de upgrade da economia chinesa, para níveis mais elevados das cadeias de valor globais).

A «entrada» da China em Angola, por via dos acordos de financiamento assinados com o Governo angolano, serviu de pano de fundo ideal para a realização dos objetivos definidos pelo Governo chinês para a «Go Out Strategy». Em primeiro lugar, os acordos de financiamento garantiram o fornecimento regular de petróleo à China, tendo Angola vindo a ocupar um lugar de topo entre os mais importantes fornecedores da China nos últimos anos. Adicionalmente, no leilão realizado em maio de 2016, a Sinopec (China Petroleum & Chemical Corporation) adquiriu direitos de exploração de importantes blocos petrolíferos em águas ultraprofundas em Angola.

Em segundo lugar, os contratos de financiamento para a reconstrução de Angola pressupunham a adjudicação dos contratos a empresas chinesas. Esta condicionante levou à entrada no país de um número restrito de empresas estatais de construção, a partir de 2003, que por sua vez subcontrataram empresas de menor dimensão, privadas, para a realização de parte dos contratos. Esta dinâmica permitiu adicionalmente o início de um fluxo regular de trabalhadores chineses para Angola, permitindo em simultâneo a contratualização de quota de mercado para as empresas chinesas, ao abrigo das linhas de crédito assinadas com o Governo angolano.

A criação do Fórum de Cooperação China-África (FOCAC), em Pequim, em 2000, constituiu o primeiro passo de institucionalização política do relacionamento entre a China e os países africanos, de forma a incluir uma dimensão do tipo fora multilateral, congregando interesses e recolhendo preocupações conjuntas dos países africanos.

A criação de um ambiente internacional favorável aos interesses chineses tem vindo a ser assumida pela liderança de uma forma cada vez mais assertiva nos últimos anos. O ponto de viragem ocorreu com a inauguração da «nova era» no início do mandato de Xi Jinping e a definição de aspirações para uma «Global China». O conceito de «China’s Rise» (2003) remetia para o papel de liderança da China na região asiática, ao passo que a «Global China» de Xi Jinping, como o próprio nome indica, confere ambições de política externa com uma projeção mais alargada. Configura igualmente, de forma mais assertiva que na década anterior, a intenção de «recuperação» do «lugar adequado/de direito da China no mundo», no memorial coletivo chinês (ou assim prefigurado), que remonta ao período áureo da civilização chinesa (séculos XVI-XVII).

Quanto às constantes presentes na política externa chinesa – prioridade da soberania, autonomia e independência de atuação na esfera externa –, mantêm-se em vigor no atual contexto de aspirações globais da China, ainda que o posicionamento internacional da China se tenha pautado nos últimos anos por um maior nível de participação nas organizações multilaterais (em particular na OMC) e em negociações internacionais. A China tem vindo a assumir pretensões de agenda-setter, com apresentação de iniciativas/propostas em organizações multilaterais (inclusivamente para reforma da OMC) e tentando concertar posições com a União Europeia, no contexto da guerra comercial com os Estados Unidos. A mais recente declaração de Xi Jinping, em particular o discurso no último congresso do PCC em outubro passado, permite perspetivar um possível afastamento do posicionamento não confrontacional tradicional da liderança chinesa, afirmado por Deng Xiaoping, no início do período de reformas económicas (em 1979) e confirmado após os incidentes de Tian’anmen (em 1989).

No presente, contudo, apesar do discurso se pautar ainda pelo não confronto e de Pequim não pretender assumir um papel hegemónico do ponto de vista militar, a China manifestou inequivocamente que pretende ser a potência hegemónica na região do Pacífico. Por outro lado, a preponderância global da economia chinesa confere cada vez mais aos líderes chineses um ascendente nos assuntos mundiais, que permite precisamente à China ser um agenda-setter, definir os assuntos que considera vitais, evitando críticas ou pressões para atuar internacionalmente de forma diferente28.

 

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Data de receção: 28 de outubro de 2018 | Data de aprovação: 5 de dezembro de 2018

 

NOTAS

1 «ANGOLA secures $2 bln in infrastructure financing from China». Reuters. 10 de outubro de 2018. (Consultado em: 15 de dezembro de 2018). Disponível em https://www.reuters.com/article/angola-china-debt/angola-secures-2-bln-in-infrastructure-financing-from-china-idUSL8N1WQ2SH.

2 Após a fundação da República Popular da China, em outubro de 1949, Axel Dreher e A. Fuchs apresentam uma contextualização detalhada das várias fases de ajuda externa da China, que compreende uma diplomacia ativa de procura de apoios entre os vários países do continente. Cf. DREHER, Axel; FUCHS, A. – «Rogue aid? The determinants of Chinese foreign aid». Working Paper N.º 3581. Center for Economic Studies e IFO-Institute for Economic Research, Hamburgo, 2011.

3CHINA’S Africa Policy (Chinese State Council, 2006) e «China’s Foreign Aid».

4 As questões territoriais no mar do Sul da China estão intrinsecamente ligadas à pretensão de controlo das rotas marítimas, em particular no que se refere à dos navios petroleiros.

5 BOISOT, Max; MEYER, Marshall – «Which way through the open door? Reflections on the internationalization of Chinese firms». In Management and Organization Review. Vol. 4, N.º 3, 2008, pp. 349-365.

6 Como o empréstimo do CIF (China International Fund Limited) a Angola, referido, entre outros, em LEKOWITZ, L.; ROSS, M. N.; WARNER, J. R. – «The 88 Queensway Group – a case study in Chinese investors’ operations in Angola and beyond». U.S. China Economic and Security Review Commission, 2009.

7 Para além do apoio financeiro, as empresas chinesas usufruem ainda de apoio administrativo das autoridades chinesas ao estabelecimento nos países destinatários dos investimentos. Cf. BUCKLEY, P.; CROSS, A.; TAN, H.; LIU, X.; VOSS, Heinrich – «Historic and emergent trends in Chinese outward direct investment». In Management International Review. Vol. 6, 2008, pp. 715-748.

8 Como em ALDEN, Christopher; DAVIES, Martyn – «A profile of the operations of Chinese multinationals in Africa». In South African Journal of International Affairs. Vol. 13, N.º 1, 2006, e em HOLSLAG, Jonathan – «China’s new mercantilism in Central Africa». In African and Asian Studies. Vol. 5, N.º 2, 2006.

9 Ou contratos do tipo oem (original equipment manufacturing), para bens de equipamento. Cf. HOLSLAG, Jonathan – «China’s new mercantilism in Central Africa».

10 Como o caso do AGOA (African Growth and Opportunity Act) com os Estados Unidos ou os acordos ACP (África-Caribe-Pacífico), com a União Europeia.

11 Enumeradas em KANE, Thomas – «China’s foundations: guiding principles of Chinese foreign policy». In Comparative Strategy. Vol. 20, 2001, pp. 45-55.

12 Que tiveram como resultado uma importante revolta interna contra a presença estrangeira em território chinês e contra a dinastia Qing (entre 1850-1864).

13 Também denominadas Guerras dos Boxers.

14 Estes eventos ainda hoje constam dos manuais escolares de História chinesa. Ainda hoje, a China celebra o Dia da Humilhação Nacional, em que relembra estes acontecimentos.

15 KEOHANE, R.; NYE, Joseph – Power and Interdependence. Boston: Little and Brown, 1977.

16 WHITING, Allen S. – «The PLA’s and China’s threat perceptions». In The China Quarterly. Vol. 46, 1996, pp. 596-615, citado por KANE, Thomas – «China’s foundations: guiding principles of Chinese foreign policy».

17 DENG, Yong – «The Chinese conception of national interests in international relations». In China Quarterly, Vol. 154, 1998, pp. 308-329.

18 No discurso oficial chinês é muitas vezes referida a necessidade de manter uma taxa de crescimento da economia acima dos 7%, de forma a garantir a estabilidade social interna.

19 Esta asserção tem sido defendida pela liderança chinesa. A estratégia «Made in China 2025», apresentada em 2015, tem por referencial a manutenção de taxas de crescimento de 7%. Jie Yu, investigadora do Programa Ásia-Pacífico da Chatham House, corroborava recentemente a tese do crescimento económico enquanto fonte de «legitimidade» do poder na China (cf. YU, Jie – «China’s Foreign Strategy and Europe». 4 de dezembro de 2018. CCIP, Lisboa. Palestra na conferência «Lisbon Talks», organizada pelo Clube de Lisboa em parceria com a Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa).

20 ZHAO, Suisheng – «Chinese nationalism and pragmatic foreign policy behavior». In ZHAO, Suisheng – Chinese Foreign Policy: Pragmatism and Strategic Behavior. Nova York: ME Sharpe, 2004.

21 As assimetrias de rendimento podem ser analisadas em diversas dimensões. A dimensão «províncias litorais vs. províncias centrais/ocidentais» tornou-se evidente com o início das reformas em meados da década de 1980; a dimensão «urbano/rural» acentuou-se significativamente desde os últimos dezassete anos (entrada na OMC), com a concentração cada vez mais acentuada da população nas cidades costeiras. As cidades costeiras do Sudeste (províncias de Zhejiang, Fujian (Fuquiém) e Guangdong são exemplos deste fenómeno – congregam as principais indústrias de exportação, sendo assim polos de atração de mão de obra das províncias.

22 Recentemente, foram introduzidas algumas alterações a este sistema, com a permissão de novas instalações, em forma de quotas, para residentes rurais em cidades pequenas e de média dimensão. Mas nas megacidades como Pequim e Xangai o registo oficial de novos residentes está totalmente proibido. O que significa que, em caso de entrada, são para todos os efeitos residentes ilegais.

23 YU, Jie – «China’s Foreign Strategy and Europe».

24 Tradução parcial da autora do discurso original de Z. Bijian no Bo’Ao Forum for Asia de 3 de novembro de 2003 (a sublinhado). «Generally speaking in the coming two or three decades, Asia will be facing a rare historical opportunity for peaceful rise and China’s peaceful rise will be part of it. This not only means that China’s reform, opening up and rise are partly attributable to the experience and development of other Asian countries, but it also means that China, as an Asian country will play a more active and useful role in the development, prosperity, and stability of all other Asian countries, its neighbors in particular».

25 PU, Xiaoyu; WANG, Chengli – «Rethinking China’s rise: Chinese scholars debate strategic overstretch». In International Affairs. Vol. 94, N.º 5, 2018, pp. 1019-1035.

26 KAUFFMAN, A. A. – «The “Century of Humiliation”, then and now: Chinese perceptions of the international order». In Pacific Focus. Vol. 25, N.º 1, 2010, pp. 1-33.

27 Traduzido da versão em inglês de PU, Xiaoyu; WANG, Chengli – «Rethinking China’s rise»: «It envisions that China will become a global leader in innovation, composite national strength, and international influence in the coming decades».

28 Oriana Mastro refere precisamente que em lugar de substituir os Estados Unidos no lugar de superpotência, a China tem tentado afastar aquele país deste papel de forma a eliminar os condicionalismos/restrições à sua ação externa – cf. MASTRO, Oriana – «The stealth power: how China hid its global ambitions». In Foreign Affairs. Upcoming, January/February issue, 2019.

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