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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.59 Lisboa set. 2018

https://doi.org/10.23906/ri2018.59r03 

RECENSÃO

A janela de oportunidade para uma esfera pública europeia

 

Susana Rogeiro Nina

Instituto de Ciências Sociais-UL | Avenida Professor Aníbal Bettencourt 9, 1600-189 Lisboa | susana.nina@ics.ulisboa.pt

 

ROBERT G. PICARD (ED.) - The Euro Crisis in the Media: Journalistic Coverage of Economic Crisis and European Institutions. Oxford, Tauris, 2015, 305 páginas

A ideia de que o consenso permissivo (permissive consensus) que regulava a relação entre a União Europeia (UE) e os cidadãos foi substituída pela dissensão constrangedora (constraining dissensus) é hoje unânime. Se de início a participação dos cidadãos nas políticas europeias era difusa – mas o apoio à UE elevado –, se os atores políticos europeus detinham a capacidade de atingir compromissos e consensos através de um discurso e agenda política comum sem interferência do grande público, nas últimas duas décadas o cenário alterou-se. A mudança de paradigma – que teve início com o Tratado de Maastricht e se consolidou nos últimos anos, com a crise económica da zona euro – revelou que os temas europeus fazem hoje, inquestionavelmente, parte da agenda dos média nacionais e do debate político.

Tanto a política comparada como a comunicação política têm dedicado especial atenção à análise da crescente visibilidade e saliência das questões europeias nas esferas públicas nacionais dos vários estados-membros. O livro The Euro Crisis in the Media: Journalistic Coverage of Economic Crisis and European Institutions, publicado em 2015 e coordenado por Robert G. Picard, oferece uma recente e bem-sucedida reflexão sobre o papel dos média na europeização1 das esferas públicas. Apesar de a literatura sobre a crise da zona euro ser recente mas bastante profícua2, o presente livro apresenta-nos dados inovadores, abrangentes e, até ao momento, únicos que se refletem num diálogo coerente entre os vários autores e numa narrativa coesa ao longo dos vários capítulos sobre o papel desempenhado pelos média nacionais na cobertura noticiosa da crise. Reunindo académicos incontornáveis da ciência política e comunicação política, os contributos que integram este livro problematizam questões essenciais sobre o papel dos média para a construção de uma identidade europeia, para as instituições da UE e sobre o futuro e os desafios que o projeto europeu enfrenta. Analisando a imprensa escrita sensacionalista, económica e de referência de dez países europeus (Bélgica, Finlândia, França, Alemanha, Grécia, Itália, Holanda, Polónia, Espanha e Reino Unido) entre 2010 e 2012, o livro procura, num primeiro momento, entender de que modo os temas fundamentais da crise económica e os atores envolvidos foram noticiados e retratados para, numa segunda fase, analisar quais as implicações dessa cobertura noticiosa na formação de uma identidade europeia e europeização das esferas públicas nacionais.

O livro encontra-se dividido em 12 capítulos que poderão ser agrupados em quatro partes. As primeiras duas partes oferecem-nos uma perspetiva comparada das diferenças e similitudes relativas à cobertura e enquadramento feito pelos média sobre as causas e soluções para a crise da zona euro: os primeiros três capítulos olham para o discurso dos atores nacionais e europeus e os quatro capítulos seguintes dedicam-se a perceber de que modo a crise foi enquadrada pelos média. A terceira parte tem como ambição apresentar-nos os fatores explicativos dos padrões de cobertura e enquadramento noticioso observados durante a crise. Por fim, a quarta e última parte reflete sobre o impacto que esses padrões têm na UE e que desafios se impõem no futuro. Vejamos, então, um pouco mais em detalhe cada uma das secções.

 

ORIGENS E SOLUÇÕES DA CRISE DA ZONA EURO

Em 2001, Jurgen Habermas3 avançava com a premissa de que o défice democrático que a UE enfrentava só poderia ser superado na presença de uma esfera pública europeia. No rescaldo do Tratado de Lisboa (2007)4, o argumento de Habermas ganha fôlego, tendo sido aprofundado por vários académicos5, que argumentaram que a europeização das esferas públicas só poderá ocorrer quando os vários média nacionais discutirem ao mesmo tempo e com o mesmo nível de atenção os temas europeus. E é, exatamente, a ideia de que uma identidade europeia só se consolida através da partilha de significado e importância sobre o mesmo tópico europeu nas esferas públicas nacionais que dá o mote para o início deste livro.

 

COBERTURA E ENQUADRAMENTO

O livro inicia-se com os capítulos de Nienstedt, Kepplinger e Quiring (pp. 19-44) e Kepplinger, Köhler e Post (pp. 45-62), em que, através da análise da cobertura noticiosa, os autores procuram perceber de que forma a origem da crise e os caminhos para a sua solução foram abordados nos média nacionais. A partir dos dados recolhidos, ambos os capítulos destacam uma domesticação da cobertura noticiosa, atribuindo às políticas económicas nacionais a principal causa da crise. O primeiro capítulo, no entanto, salienta uma europeização da solução para a crise, imputando aos países da zona euro e às instituições europeias a responsabilidade; enquanto o segundo conclui que a diferente visão, quer nos média quer na opinião pública, sobre a origem e solução da crise é definida em função de ideias preexistentes relativas a uma maior ou menor integração europeia. Barbieri e Campus (pp. 63-82) terminam esta seção testando em que medida é que a crise económica ativou uma esfera pública europeia caracterizada por uma agenda única e interesses convergentes. No geral, os autores observaram uma elevada consonância e homogeneidade nos média nacionais no que concerne à cobertura dos temas europeus quer em função do tipo de jornal, quer quanto ao seu alinhamento partidário.

Com um enfoque muito claro no modo como a crise foi enquadrada e interpretada nos média nacionais, a domesticação da crise nas suas causas e soluções é reforçada pelos capítulos que se seguem. Por conseguinte, o capítulo de Hubé, Salgado e Puustinem (pp. 83-102) pouco acrescenta sobre a acentuada domesticação na cobertura jornalística da crise. Mesmo colocando a ênfase na presença e caracterização dos atores políticos, continuam a ser os líderes dos governos nacionais os que mais se encontram presentes na cobertura noticiosa e retratados como os mais relevantes, salientando-se, porém, uma forte presença de alguns atores europeus, com destaque para Angela Merkel. Já relativamente ao pluralismo e consonância entre os média sobre as causas e soluções da crise, Salgado, Nienstedt e Schneider (pp. 103-124) apresentam-nos conclusões inovadoras das quais se ressaltam três aspetos relevantes: elevada consonância interna dos média; os países com dívidas soberanas aparentam ter mais pluralismo do que os países sem dívidas; e a não existência de diferenças significativas na abordagem à crise entre os países da Europa do Norte e do Sul. Já o capítulo de Joris, Puustinem, Sobieraj e d’Haenens (pp. 125-148) foca-se nas metáforas mais proeminentes na cobertura noticiosa da crise, evidenciando a prevalência de cinco: guerra, doença, desastre natural, construção e jogo.

 

COMO EXPLICAR A DOMESTICAÇÃO

No entanto, o que explica a acentuada domesticação da cobertura noticiosa das causas e soluções da crise? Quais os fatores determinantes para os padrões assinalados nos capítulos anteriores? É a esta pergunta que os próximos capítulos procuram dar resposta. Primeiramente, Arrese e Vara (pp. 179-176), focando-se nas dissimilitudes intramédia, concluíram que o tipo de jornal condiciona a saliência e enquadramento da crise. Contudo, são as regras de produção jornalística e a sua instrumentalização por parte das elites que mais influenciam a cobertura jornalística. Esta interpretação não surpreende depois de lermos os capítulos de Mancini e Mazzoni (pp. 177-194) e Picard e Salgado (pp. 195-220). Na análise de Mancini e Manzonni, se à partida o sistema de média e a cultura jornalística de cada país poderiam explicar os padrões de cobertura jornalística da crise espelhando uma maior europeização, a verdade é que é a identidade nacional de cada jornal que assume um papel preponderante na visibilidade e enquadramento da crise, o que conduz a uma acentuada domesticação do fenómeno. O problema, no entender de Picard e Salgado, é o facto de a existência de uma vasta literatura sobre a tipologia dos sistemas mediáticos e cultura jornalística só conseguir explicar de forma limitada os padrões de domesticação. Neste sentido, é assinalado que as futuras agendas de investigação na área devem ter em conta os atores envolvidos, assim como variáveis contextuais, como por exemplo as diferenças económicas entre países.

 

JANELA QUE SE FECHA, PORTA QUE SE ABRE? O FUTURO DA UE

Na introdução do livro, Robert Picard (pp. 1-18) sintetiza os desafios que a crise da zona euro colocou à UE e de que modo os média desempenham um papel fundamental na relação entre cidadãos, governos nacionais e elites europeias. São duas as ideias principais: em primeiro lugar, a forma como os média enquadram e dão visibilidade às questões europeias tem implicações significativas na construção de uma identidade europeia e no aprofundamento da integração da UE; e, em segundo, a domesticação ou europeização da cobertura noticiosa da crise da zona euro, das suas origens, responsabilidades e soluções, terá impacto no processo de emergência de uma esfera pública europeia. Tanto Herkman e Harjuniemi (pp. 221-236) como Picard (pp. 237-442) refletem sobre estas questões nos capítulos finais do livro, de onde se destaca a ideia de que a janela de oportunidade que a crise poderia criar para uma esfera pública europeia, com a saliência dos temas europeus nas arenas nacionais, ficou aquém do esperado.

O desenrolar dos acontecimentos no pós-crise da zona euro irá esclarecer em que medida a elevada visibilidade dos tópicos europeus nas esferas públicas nacionais e a sua politização pelos média e atores políticos poderá ou não contribuir para a consolidação de uma verdadeira esfera pública europeia, para a construção de uma identidade europeia e superação do défice democrático que a UE enfrenta. Por um lado, não deixa de ser verdade que a crescente presença das questões europeias nos média nacionais aponta para que a Europa tenha entrado definitivamente na agenda política e mediática dos países da UE com uma partilha de importância dos problemas europeus. Por outro lado, também não deixa de ser verdade que a domesticação do fenómeno parece demonstrar que o sentimento de pertença a um espaço comum, com partilha de responsabilidade na origem e solução do problema, ainda não está completamente instituído nas esferas públicas nacionais. Tal como Trenz6 e Van de Steeg7 haviam afirmado, só é possível ter uma esfera pública europeia se, além da saliência dos temas europeus, existir uma partilha de significado entre os estados-membros e se os média concordaram num sistema comum de significado sobre as questões.

Apesar de os dados e conclusões apresentados neste livro estarem circunscritos ao pico da crise da zona euro, fornecem-nos pistas relevantes e pertinentes sobre o futuro da UE. Os vários contributos que integram o livro organizado por Robert G. Picard reforçam a ideia de que enquanto os média nacionais apresentarem um discurso e uma cobertura noticiosa domesticados, a emergência de uma esfera pública europeia estará comprometida. Como formadores e construtores de opinião pública, os média têm a responsabilidade de permitir a criação de um sentido de pertença e de partilha dos problemas europeus que se consubstanciará numa europeização da cobertura noticiosa das questões europeias.

The Euro Crisis in the Media: Journalistic Coverage of Economic Crisis and European Institutions é essencial para perceber o papel dos média no futuro da UE e qual a repercussão da cobertura jornalística da crise na criação de uma esfera pública europeia e por consequência numa identidade europeia e superação do défice democrático da UE. Apresenta-se, portanto, como uma ferramenta relevante na compreensão dos temas emergentes na UE tanto na área da comunicação política, como da ciência política e estudos europeus.

Susana Rogeiro Nina Doutoranda em Política Comparada no ICS-UL, com uma bolsa financiada pelo European Research Council (ERC) através do projeto maple, coordenado pela Dr.ª Marina Costa Lobo. Possui um mestrado em Ciência Política pelo ISCTE-IUL (2016) e completou a licenciatura em Ciência Política na Universidade da Beira Interior, na Covilhã (2014). Os seus interesses de investigação incluem comunicação política, efeitos dos média, campanhas eleitorais, comportamento político, opinião pública, e União Europeia.

 

BIBLIOGRAFIA

BORZEL, Tanja A., e RISSE, Thomas – «From the euro to the Schengen crises: European integration theories, politicization, and identity politics». In Journal of European Public Policy. Vol. 25, N.º 1, 2018, pp. 83-108.

FREIRE, André, LISI, Marco, ANDREADIS, Ioannis, e VIEGAS, José Leite – Political Representation in Times of Bailout: Evidence from Greece and Portugal. Routledge, 2017.

HABERMAS, Jurgen – «Why Europe need a Constitution». In New Left Review. Vol. 11, 2001, pp. 5-26.

KRIESI, Hanspeter, e GRANDE, Edgar – The Euro Crisis: A Boost to the Politicization of European Integration. Cambridge: Cambridge University Press, 2016.

PFETSCH, Barbara, ADAM, Silke, e ESCHNER, Barbara – «The contribution of press to Europeanisation of public debates: a comparative study of issue salience and conflict lines of European integration». In Journalism. Vol. 9, N.º 4, 2008, pp. 465-492.

RISSE, Thomas – A Community of Europeans? Transnational Identities and Public Spheres. Ithaca: Cornell University Press, 2010.

RISSE, Thomas – European Public Sphere. Cambridge: Cambridge University Press, 2015.

TRENZ, Hans-jorg – «The democratizing role of a european public sphere. Towards a model of democratic functionalism». In Journal of European Social Theory. Vol. 7, N.º 1, 2004, pp. 273-284.

TRENZ, Hans-Jorg – «Measuring the Europeanisation of public communication: the question of standards». In European Political Science. Vol. 7, N.º 3, 2008, pp. 273-284.

VAN DE STEEG, Marianne – «Rethinking the conditions for a public sphere in European Union». In European Journal of Social Theory. Vol. 5, N.º 4, 2002, pp. 499-519.

 

NOTAS

1 O conceito de europeização refere-se ao impacto e à forma como as instituições da UE afetam as políticas e instituições dos estados-membros. O conceito comporta três dimensões de análise que permitem observar a europeização das esferas públicas nacionais: 1) saliência dos temas europeus; 2) presença de atores (tanto vertical como horizontal); e 3) conteúdo da comunicação. Cf. RISSE, Thomas – A Community of Europeans? Transnational Identities and Public Spheres. Ithaca: Cornell University Press, 2010; RISSE, Thomas – European Public Sphere. Cambridge: Cambridge University Press, 2015.

2 FREIRE, André, LISI, Marco, ANDREADIS, Ioannis, e VIEGAS, José Leite – Political Representation in Times of Bailout: Evidence from Greece and Portugal. Routledge, 2017; KRIESI, Hanspeter, e GRANDE, Edgar – The Euro Crisis: A Boost to the Politicization of European Integration. Cambridge: Cambridge University Press, 2016; BORZEL, Tanja A., e RISSE, Thomas – «From the euro to the Schengen crises: European integration theories, politicization, and identity politics». In Journal of European Public Policy. Vol. 25, N.º 1, 2018, pp. 83-108.

3 HABERMAS, Jurgen – «Why Europe need a Constitution». In New Left Review. Vol. 11, 2001, pp. 5-26.

4 O Tratado de Lisboa ficou marcado pelo amplo debate em torno da crise da legitimidade democrática da UE e pela implementação de reformas institucionais para a superação de questões como o défice democrático e a falta de identidade europeia.

5 TRENZ, Hans-Jorg – «Measuring the Europeanisation of public communication: the question of standards». In European Political Science. Vol. 7, N.º 3, 2008, pp. 273-284; PFETSCH, Barbara, ADAM, Silke, e ESCHNER, Barbara – «The contribution of press to Europeanisation of public debates: a comparative study of issue salience and conflict lines of European integration». In Journalism. Vol. 9, N.º 4, 2008, pp. 465-492; RISSE, Thomas – A Community of Europeans?.

6 Trenz, Hans-Jorg – «The democratizing role of a european public sphere. Towards a model of democratic functionalism». In Journal of European Social Theory. Vol. 7, N.º 1, 2004, pp. 273-284.

7 VAN DE STEEG, Marianne – «Rethinking the conditions for a public sphere in European Union». In European Journal of Social Theory. Vol. 5, N.º 4, 2002, pp. 499-519.

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