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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.59 Lisboa set. 2018

https://doi.org/10.23906/ri2018.59r01 

RECENSÃO

Valerá a pena salvar esta democracia?

 

Adam Standring

IPRI-NOVA | Avenida de Berna, 26-C/1069-061 Lisboa | adam.standring@gmail.com

 

STEVEN LEVITSKY E DANIEL ZIBLATT How Democracies Die: What History Reveals about our Future. Nova York, Penguin Random House, 2018, 320 páginas

Em 2008, a rainha Isabel II abriu um novo centro de investigação na London School of Economics (LSE). Nesta visita, colocou uma questão extremamente simples, mas controversa, ao Professor Luis Garicano, o diretor de investigação da LSE. Durante um debate sobre a crise financeira global em curso, Isabel II perguntou: «Por que é que ninguém reparou?». A resposta do Professor Garicano foi indicativa do ponto de viragem que a crise representou para a economia: «A cada etapa, alguém confiava noutra pessoa e todos pensavam que estavam a fazer o mais correto.»1 O fracasso da maioria dos economistas em prever uma crise financeira que, em retrospetiva, parece ter sido bastante óbvia, desencadeou algo como uma crise epistemológica dentro de uma disciplina que até então se posicionava com orgulho mais próximo das ciências naturais do que das ciências sociais.

Talvez mais do que qualquer outra ciência social, a ciência política tem revelado um fascínio pela economia durante a maior parte dos últimos cinquenta anos. Considerando as suas raízes comuns no seio dos estudos de economia política do século XIX, e ressentindo-se da influência conquistada pela economia nos círculos políticos e governamentais, a ciência política desenvolveu uma agenda de investigação cada vez mais positivista, baseada em teorias comportamentais e métodos estatísticos originalmente desenvolvidos na economia, uma tendência que teve origem nas universidades anglo-americanas antes de se espalhar a nível global. No entanto, foi com um certo sentimento de satisfação que os cientistas políticos testemunharam as falhas previsíveis da economia durante a crise financeira – enquanto se revelou difícil explicar a volatilidade da economia global, pelo menos as instituições estatais conseguiram garantir alguma forma de estabilidade, resgatando os bancos e recuperando a economia.

Este sentimento arrogante de autossatisfação não duraria muito, pois 2016 provou ser um annus horribilis para os cientistas políticos, quando uma série de eventos – culminando na decisão do Reino Unido de deixar a União Europeia e na eleição de Donald Trump como Presidente dos Estados Unidos – veio colocar em causa a sua própria capacidade de prever ou mesmo de dar sentido aos eventos políticos. Em How Democracies Die, Levitsky e Ziblatt tentam dar resposta a esta crise epistemológica na ciência política face à ascensão do populismo e aos desafios que essa ascensão representa para a democracia. Em vez de empreenderem uma reavaliação ou análise crítica dos pressupostos e teorias que fundamentam grande parte do trabalho disciplinar, e que se revelaram inadequados na atual conjuntura, Levitsky e Ziblatt levam a cabo uma reavaliação dos factos para produzir uma nova verdade: a onda de populismo a que assistimos globalmente não é uma reação a uma forma ou prática democrática específica, mas sim uma corrupção de uma forma ou prática democrática específica – a democracia liberal. Em particular, a democracia liberal deve ser entendida como o que se verificou nos Estados Unidos sensivelmente entre 1900 e 2015, através do qual uma ordem constitucional de pesos e contrapesos robusta, que Levistsky e Ziblatt enfatizam ser necessária mas não suficiente para que a democracia floresça, foi complementada por um conjunto de práticas institucionais informais que servem para reforçar a Constituição – não é suficiente seguir as regras do jogo uma vez que os jogadores precisam também de entrar no espírito do jogo.

É claro que, tal como acontece com a crise financeira e a economia enquanto disciplina, a ideia de que ninguém compreendeu ou previu os desenvolvimentos políticos dos últimos anos ignora uma extensa literatura produzida fora ou nas margens da ciência política, da teoria política e da sociologia política. Nos últimos vinte anos, estudiosos vêm alertando para o facto de estarmos a testemunhar a crise da democracia, o esvaziamento da democracia ocidental ou mesmo o surgimento da pós-democracia. O que muitos destes estudos têm em comum, e onde fundamentalmente divergem do argumento de Levitsky e Ziblatt, é o facto de defenderem que são as práticas e tensões inerentes à democracia liberal a enfraquecer e desestabilizar a ordem. De facto, uma das tendências mais prevalentes nas democracias ocidentais nos últimos anos tem por base a ideia de que a própria política é uma força desestabilizadora que põe em risco a ordem social e económica. Isto, por sua vez, levou ao aumento da despolitização das políticas e instituições do Estado, bem como da sociedade em geral, e à fetichização de práticas de governança supostamente objetivas ou neutras.

Uma consequência particularmente prejudicial da tendência para despolitizar a política, e surpreendentemente ausente de How Democracies Die, é a forma como a remoção da escolha e da agência da vida social e política está cada vez mais ligada ao domínio de uma única ordem económica – o capitalismo. A democracia americana, na verdade qualquer ordem democrática liberal, está inexoravelmente ligada ao sucesso hegemónico do capitalismo americano. Uma vez que tanto a existência como a subsequente queda da União Soviética pareciam validar a ideia de que «não existe alternativa» a uma ordem democrática liberal baseada num capitalismo (neo)liberal, a própria ideia de existirem opções e possibilidade de escolha na política parecia fantasiosa. O fim da história, acompanhado pelo fim da ideologia, parecia provar uma profecia que se cumpre por si própria. Porém como os eventos de 2007-2008 mostraram, temos um sistema económico e um sistema democrático que funcionam para o benefício de poucos, à custa de muitos. A dívida, a precariedade e a insegurança estão a tornar-se comuns à medida que a ordem existente, e as promessas que ela supostamente devia cumprir, se tornam cada vez mais distantes da realidade de um grande número de pessoas. Pode ser exagerado sugerir que esta é a causa do populismo, do nativismo e da xenofobia que impulsionaram o sucesso de Trump, e o Brexit é mais claramente visível numa geração mais velha, muitas vezes isolada de muitos dos problemas económicos atuais, mas esta insatisfação com a política atual claramente compromete as tentativas de fortalecer a democracia liberal nos Estados Unidos e a democracia social na Europa.

 

A DEMOCRACIA NO SEU LEITO DE MORTE

How Democracies Die (doravante HDD) começa com uma história em jeito de advertência: em 1973, o Chile sofreu um violento golpe de Estado, que substituiu um presidente de esquerda democraticamente eleito por uma junta militar repressiva. É uma advertência no sentido em que demonstra a fragilidade das instituições democráticas diante de uma intervenção militar violenta, simbolizada pelo bombardeamento do palácio presidencial, mas é uma advertência também noutro sentido, pois os autores querem lembrar-nos de que a democracia é suscetível a desafios mais subtis e mais insidiosos do que tanques nas ruas e aviões de combate pelos ares. As próprias instituições democráticas podem ser corrompidas pelas mãos de líderes eleitos que têm pouca paciência para o ritmo lento da mudança democrática e que desejam concentrar o poder nas suas próprias mãos ou nas mãos de um pequeno grupo de acólitos. Como os autores argumentam, o desmantelamento de instituições democráticas por representantes eleitos pode não ser tão rápido, tão dramático ou (inicialmente) tão violento quanto um golpe, mas pode ser tão ou mais destrutivo, pois requer algum nível de legitimidade populista como base. Os populistas estimulam uma secção específica da população, com base na raça, etnia ou religião, construindo um povo «puro» pronto para ser mobilizado contra as elites corruptas.

De acordo com o livro, existem dois conjuntos de regras ou normas necessárias e complementares que servem para salvaguardar a democracia contra as tendências destrutivas populistas e totalitárias: a tolerância mútua e a moderação institucional. A tolerância mútua é descrita como um entendimento generalizado, particularmente prevalente e praticado entre as elites políticas, de que os nossos oponentes políticos têm o direito de existir e competir contra nós «desde que atuem segundo as regras constitucionais» (HDD, p. 102). A moderação institucional é o conceito segundo o qual os atores políticos demonstram contenção ao usar as instituições do governo em proveito próprio – conscientes de que essa contenção irá ser demonstrada pelos seus oponentes se e quando tomarem as rédeas do poder (HDD, p. 107).

HDD apresenta muitas das fraquezas comuns aos tributos – a tendência para ignorar os incidentes mais desconfortáveis do passado ao mesmo tempo que destaca feitos supostamente notáveis e heroicos. Estas fraquezas são igualmente reveladoras no que Levitsky e Ziblatt omitem ou encobrem na sua discussão da democracia americana enquanto exemplo global de tolerância e moderação. É realmente assim tão fácil para um leitor com um mínimo de conhecimento histórico olhar para trás para as salas cheias de fumo, para a corrupção de Tammany Hall, para o movimento dos direitos civis, e ver isso como um farol democrático para os outros seguirem? A seleção de exemplos históricos é também surpreendente para qualquer pessoa com um conhecimento superficial da história global: durante o período mítico da democracia doméstica os Estados Unidos eram os defensores mais ativos de mudanças de regime, quando se acreditava que tais intervenções beneficiariam os interesses comerciais americanos noutros estados. Iniciar o livro com uma referência ao golpe de Pinochet, enquanto se menciona apenas de passagem, e 115 páginas depois, o financiamento da cia à junta parece um pouco negligente por parte dos autores.

Apesar de os autores se basearem em vários exemplos históricos e geográficos para demonstrar a fragilidade da democracia constitucional, o foco da problemática atual permanece resolutamente fixo no caso americano. A eleição de Donald Trump, primeiro como candidato republicano e depois como presidente, é demonstrativa de uma abdicação de poder por parte daqueles – principalmente os próprios partidos – a quem compete policiar a entrada na política. HDD celebra essas práticas – os compadrios na política, as altas barreiras à entrada, as maquinações secretas que, durante grande parte do século XX, mantiveram a política americana como um domínio de homens ricos e brancos – como um reflexo de uma sociedade desigual e dividida, mas também como algo necessário para o funcionamento da ordem democrática. O reconhecimento, aparentemente relutante, de que «as normas democráticas da América nasceram, então, de um contexto de exclusão» (HDD, p. 144), enquadra-se mal num livro que é notavelmente acrítico de algumas das mais gritantes automitologias da democracia norte-americana: «a força do sistema político americano, como é frequentemente dito, repousa no que o economista Gunnar Myrdal, vencedor do Prémio Nobel, chamou de Credo Americano: os princípios da liberdade individual e do igualitarismo» (HDD, p. 213).

Pouco ou nenhum exame crítico é feito às consequências que tais normas e práticas de exclusão exercem sobre as mulheres e as pessoas de cor no processo político, e não se faz nenhuma reflexão sobre o tipo de política que tais práticas reproduzem. É significativo, particularmente no caso norte-americano, que à medida que a política se torna cada vez mais polarizada e partidária o leque de questões sobre as quais tais disputas são travadas se torna cada mais estreito – de tal forma que questões culturais como armas e aborto se tornam mais salientes e diferenciadoras do que questões em torno da economia ou da justiça criminal. HDD negligencia a ideia de diferença económica até praticamente ao último momento. Apesar de não figurar no diagnóstico dos males da democracia, a questão da crescente desigualdade económica aparece surpreendentemente inserida apenas no final, como um possível remédio para um sistema partidário revigorado.

Tradução: João Reis Nunes

 

NOTAS

1 Disponível em: https://www.telegraph.co.uk/news/uknews/theroyalfamily/3386353/The-Queen-asks-why-no-one-saw-the-credit-crunch-coming.html.

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