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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.59 Lisboa set. 2018

https://doi.org/10.23906/ri2018.59a07 

O crescimento do populismo nos Estados Unidos e na Europa no início do século XXI

The growth of populism in the US and Europe since the beginning of the 21st century

 

Rui Chancerelle de Machete

Jurista e advogado. Antigo ministro dos Negócios Estrangeiros e antigo presidente da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento.

 

RESUMO

O artigo faz uma revisão sobre as origens do populismo e a sua presença na política norte-americana e europeia. Evidencia que apesar de não ser um fenómeno novo, a explosão do populismo registada nos Estados Unidos e na União Europeia nos finais do século passado, mas, sobretudo, a partir do século XXI, representa, pelo número de sistemas políticos em que se verifica e pela importância que assume no seu modo de funcionamento, um fenómeno de extrema relevância.

Palavras-chave: Populismo, democracia, Estados Unidos, União Europeia.

 

ABSTRACT

The article reviews the origins of populism and its presence in North-American and European politics. It highlights that, while no novelty, the explosion of populism in the United States and in the European Union, in the late 20th century and particularly from the 21st century, due to the number of political systems in which it prevails and its impact on the way they work, is a phenomenon of extreme relevance.

Keywords: Populism, democracy, United States, European Union.

 

A explosão do populismo – para utilizar o título feliz de John B. Judis1, no seu interessante livro sobre a matéria –, registada nos Estados Unidos e na União Europeia já nos finais do século passado2, mas, sobretudo, a partir do século atual, representa, pelo número de sistemas políticos em que se verifica e pela importância que assume no seu modo de funcionamento, um fenómeno de extrema relevância. Não que o fenómeno fosse desconhecido da história política americana, desde a segunda parte do século XIX, particularmente, no período em que o People’s Party foi ativo; é, sobretudo, porém, com George Wallace, opondo-se, nos anos 1960, à integração racial, e, mais tarde, com Ross Perot e Pat Buchanan, cujas intervenções tiveram forte impacto nas campanhas que moveram contra os candidatos presidenciais designados pelos partidos Republicano e Democrata.

O Tea Party, composto por grupos dispersos de direita, usando com particular eficiência as novas formas de comunicação social propiciadas pela internet, começaram a adquirir relevo mais geral a nível do país, atacando, logo no primeiro mandato do Presidente Obama, o Obamacare e os bancos de investimento e Wall Street, responsabilizando estes últimos pela crise financeira, fazendo a distinção entre «os que fazem» e «os que se apoderam». Um pouco mais tarde, o Occupy Wall Street, caracteristicamente de esquerda, através de sites virulentos, acusava os partidos Republicano e Democrata de terem sido comprados por uma elite económica que ia destruindo deliberadamente o modo de vida dos americanos.

As manifestações de caráter populista atingiram o seu auge, ganhando uma dimensão funcional muito maior, quando se tornaram formas habituais de crítica dos programas eleitorais e do ataque à credibilidade e até à honorabilidade dos candidatos adversários, nas campanhas eleitorais de Bernie Sanders e, especialmente, de Donald Trump. A eleição deste último para Presidente dos Estados Unidos e ainda o facto de, ainda que por forma mais moderada, continuar a usar, no seu Twitter, formulações populistas, fez aumentar o interesse científico pela matéria.

Na Europa pós-Segunda Guerra Mundial, o apoio americano veiculado pelo Plano Marshall, primeiro, a política macroeconómica de cariz keynesiano, praticada pelos partidos democrata-cristãos e social-democratas, que se revezavam no poder, depois, possibilitou uma reconstrução relativamente rápida e um crescimento económico constante durante cerca de trinta anos (as trente glorieuses).

A criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço pelo Tratado de Paris de 1951 (CECA), primeiro, e, sobretudo, a instituição da Comunidade Económica Europeia (CEE) e da Comunidade Europeia de Energia Atómica (CEEA) pelo Tratado de Roma, de 1957, depois, hoje, as três reunidas no Tratado da União Europeia (TUE), através do Tratado de Maastricht de 1992, vieram, com a forte integração política dos estados da Europa Ocidental e Central e a constituição do mercado comum, imprimir uma nova dinâmica à afirmação política e ao progresso económico dos países-membros.

Esse progresso económico permitiu lançar as bases do Estado social e assegurar a estabilidade das instituições do Estado de direito, evidenciando, ao mesmo tempo, as vantagens dos sistemas políticos que sabiam fundir a democracia liberal e o funcionamento dos mercados, com mais criação de riqueza e maior justiça social.

Na acérrima competição da Guerra Fria, essa não foi, por certo, a menor vantagem do Ocidente.

Na segunda metade dos anos 1980, porém, as coisas começaram a mudar. A progressiva globalização da economia, no domínio, primeiro, das operações financeiras, depois, rapidamente extensivo aos restantes mercados, por um lado, as substanciais mutações na estrutura produtiva dos Estados Unidos e, mais tarde na da União Europeia (UE), por outro, se facilitaram a emergência das economias dos países asiáticos, criaram também condições favoráveis às crises financeiras de 2008-2009 e de 2011-2013, com as suas repercussões nas empresas, no emprego, e nas dívidas soberanas de muitos estados3.

Deste modo, de um e do outro lado do Atlântico Norte, temos vindo a assistir, no começo do século XXI, a uma verdadeira explosão dos movimentos populistas.

 

O QUE É O POPULISMO?

É frequente observar, na literatura da especialidade, não ser fácil dar uma definição compreensiva e suficientemente abrangente do que seja o populismo.

Guido Germany, por exemplo, no seu livro sobre a matéria, faz-nos uma descrição das principais notas que caracterizam este fenómeno, a um tempo político e social, evitando, todavia, indicar a sua differentia specifica:

«O populismo tende em si a negar qualquer identificação ou classificação com a dicotomia direita/esquerda. É um movimento pluriclassista, embora nem todos os movimentos multiclassistas possam ser considerados como populistas. O populismo provavelmente recusa qualquer definição compreensiva. Deixando momentaneamente de lado este problema, o populismo inclui habitualmente componentes entre si contrastantes, como sejam a reivindicação pela igualdade dos direitos políticos, e pela participação de todo o povo na vida política, mas misturado com algum tipo de autoritarismo, frequentemente sob uma liderança carismática. Inclui também exigências socialistas (ou, pelo menos, reivindicações de justiça social), uma defesa vigorosa da pequena propriedade, fortes componentes nacionalistas e uma recusa da importância da classe social, acompanhada pela afirmação dos direitos do povo face ao grupo dos interesses privilegiados, considerados habitualmente como inimigos do povo e da nação. Quaisquer destes elementos podem ser enfatizados em função das condições culturais ou sociais, mas todos estão presentes na maioria dos movimentos populistas»4.

Para além das dificuldades ou erros metodológicos referidos por Laclau, quanto ao modo de recortar e trabalhar a realidade que deve ser objeto de estudo quando se fala de populismo, estabelecendo as fronteiras da sua especificidade, há que reconhecer que essa própria realidade diverge em medida apreciável consoante encaramos as manifestações ou movimentos qualificados como populistas nos Estados Unidos ou na Europa. Os primeiros não parecem poder movimentar-se num quadro exclusivamente dualista, em que o povo abranja todo o povo dos estados federados americanos e as elites incluam todos os representantes políticos pertencentes ao Governo em Washington ou até, também, o alto funcionalismo das agencies federais. Em última análise, o populismo tem a sua razão de ser e dirige as suas críticas às deficiências da democracia representativa que não reflete o pensar e o querer do povo. Por culpa das manipulações e interesses próprios das elites, é distorcido o funcionamento correto do instituto da representação e, assim, o povo não está presente, não consegue fazer-se ouvir na tomada das decisões que devem corresponder às suas necessidades e reivindicações. Só assim não acontecerá quando o movimento populista alcançar força suficiente para conseguir a realização de um referendo vinculativo, ou que seja respeitado como se o fosse vencendo ainda os eventuais obstáculos que a constituição do Estado em que se situa oponha à sua realização, ou ainda se se transformar ou passar a controlar um partido forte de âmbito nacional.

Na Europa, a menor dimensão territorial de cada Estado e do, com ele coincidente, sistema político facilita a construção do conceito de povo como entidade única que se contrapõe às elites políticas, também elas passíveis de uma redução unitária no seu papel de representação política e de consequente tomada de decisões em nome do primeiro.

A UE, com o seu pendor, misto de federalismo e de confederação, assume, na zona das suas competências próprias, o papel dos estados-membros, e substitui-os como alvo das críticas ao deficiente funcionamento da democracia representativa e da sua burocracia, para além de, também, propiciar um alvo particularmente favorável à manifestação exacerbada dos nacionalismos existentes em cada país. Mas, tudo somado, os esquemas interpretativos do populismo dos movimentos e dos partidos, válidos para os estados-membros, são, mutatis mutandis, igualmente válidos para a UE.

 

O POPULISMO NORTE-AMERICANO

Michael Kazin, em recente artigo dedicado ao populismo norte-americano, publicado na Foreign Affairs5, distingue entre dois tipos ou tradições de populismo que se têm afirmado na vida política americana. O primeiro dirige as suas críticas às elites económicas das grandes empresas e dos governantes que as apoiam e partilham interesses comuns, em detrimento dos cidadãos comuns que constituem a força de trabalho essencial da nação. Os que defendem este «nacionalismo cívico» (Gary Gerstle), entendem-no como a convicção da fundamental igualdade de todos os seres humanos, e nos seus direitos inalienáveis à vida, à liberdade e à procura da felicidade, sob a égide de um governo democrático que deriva a sua legitimidade do consenso popular.

Já os que, como o Presidente Trump, aderem à segunda tradição, considerando igualmente as elites do big business e dos seus companheiros do governo como prejudicando os interesses do cidadão comum e desrespeitando as suas liberdades políticas, têm uma conceção mais restritiva do povo, caracterizada por notas de natureza étnica e classista. Os valores patrióticos e interesses económicos dos cidadãos brancos – normalmente descendentes de europeus – são considerados como ameaçados por grupos de negros americanos, ou de emigrantes de etnias africanas, chinesa, japonesa, árabe ou outra, regra geral em conjunção com conflitos internos, ou com crises internacionais de caráter militar, terrorista, ou de concorrência económica, demarcam a fronteira entre os que adotam como lema «America First»6.

 

O POPULISMO EUROPEU

O populismo, na Europa, registou, no começo deste século, tal como nos Estados Unidos e em grande parte pelas mesmas causas, um enorme incremento. Com efeito, também nos estados europeus a globalização e a crise económico-financeira diminuíram o investimento, impedindo ou retardando o desenvolvimento económico e aumentando o desemprego. Em resultado, generalizou-se, nos países do Sul e do Leste da UE, um sentimento de insegurança quanto ao futuro, reforçado pelos efeitos restritivos das medidas de austeridade que os respetivos governos foram obrigados a aplicar.

À crise do euro, ao risco de bancarrota, derivado da insustentabilidade da dívida externa enfrentado pela Grécia e Portugal, à debilidade das instituições financeiras da Irlanda e da Espanha, e às dúvidas que se começaram a levantar sobre a resistência a médio prazo dos sistemas financeiros italiano e francês, juntaram-se as preocupações resultantes da anexação manu militare da Crimeia pela Rússia e o apoio claro das forças armadas desta à guerra civil desencadeada contra o Governo de Kiev nas províncias orientais da Ucrânia. Estes factos tornaram evidente que a Rússia pretendia pôr um ponto final na extensão para o Leste da Europa dos membros da UE e da nato e obrigar os Estados Unidos a um confronto diplomático e de esferas de influência que lhe permitissem a recuperação, até aonde fosse possível, do anterior estatuto da União Soviética.

No Médio Oriente, o incremento da desordem que adveio na região com a criação do Estado Islâmico e as suas ações militares e terroristas, a intensificação da guerra na Síria e no Iraque, o aumento dos contendores na área, incluindo as intervenções russa, turca e iraniana, o maior empenhamento da coligação liderada pelos americanos, e ainda os ataques jihadistas em diversos países do Magrebe e da África Subsariana conduziram a uma multiplicação exponencial dos refugiados que procuraram abrigo na Europa.

A vaga de emigrantes forçados a sair em razão da situação de insegurança provocada pelo estado de guerra que atingiu as suas cidades e campos, criou problemas humanitários terríveis ao tentarem atravessar o Mediterrâneo sem as menores garantias de segurança, tendo já perecido em naufrágios, nos últimos quatro anos, para cima de três milhares. Essa imigração ocasiona graves problemas de acolhimento nos países de chegada, e depois também dificuldades no seu encaminhamento para os estados onde fixarão residência duradoura. Esses problemas têm repercussões políticas, graves, quer nos países de desembarque, quer nos países de percurso, quer ainda nos locais de destino final, por motivos de dificuldades de convivência cultural, religiosa ou histórica, ou ainda por receio de concorrência no mercado de trabalho ou de com os imigrantes se infiltrarem, também, terroristas islâmicos.

 

OS DESAFIOS EUROPEUS

As dificuldades no controlo das fronteiras face à vaga de imigrantes que fogem dos conflitos militares e da insegurança nos seus países, o receio da sua instalação definitiva e da concorrência no mercado de trabalho e reminiscências históricas desagradáveis, têm levado os governos apoiados por partidos de direita ou de extrema-direita, na Hungria de Orbán, na Polónia de Jaroslaw Kaczynski, e agora na Áustria de Sebastian Kurz em coligação com o Partido da Liberdade da Áustria (FPÖ), a adotarem políticas violadoras dos direitos fundamentais e da democracia liberal defendidos pela UE. Na Grécia, o partido de extrema-esquerda Syriza, liderado por Alexis Tsipras, nascido da reação à austeridade imposta pela troika (FMI, Comissão Europeia e BCE) destrona o velho Partido Socialista e tenta em vão libertar-se do condicionalismo por aquela imposto7. Em Espanha, pelos mesmos motivos e com a mesma política de reação à política de austeridade e à defesa do euro, surge o Podemos, embora sem conseguir chegar ao poder. Em Portugal, com menor relevo político, é a mesma orientação que inspira o Bloco de Esquerda, que, em 2015, juntamente com o Partido Comunista, pertence à coligação parlamentar que, fazendo maioria com o Partido Socialista, apoia o atual Governo de António Costa.

Marine Le Pen, a líder da Frente Nacional, o grande partido da extrema-direita francesa, apresentava-se, antes do êxito surpreendente de Macron, como uma séria candidata à vitória na recente eleição presidencial, gerando grandes receios quanto à sobrevivência do projeto europeu.

Numa importante entrevista que concedeu à Foreign Affairs – em que, com maestria, resumiu o essencial do credo populista europeu de extrema-direita no momento presente –, interrogada sobre as razões por que os partidos anti-establishment, como a Frente Nacional, estão obtendo tanto relevo na Europa, Madame Le Pen respondeu:

«Creio que todos os povos aspiram a ser livres. Os povos dos países da União Europeia, e talvez também os americanos, terão tido durante demasiado tempo a sensação de que os líderes políticos não estão defendendo os seus interesses (os do povo), mas antes, interesses particulares (special interests). Há uma espécie de revolta da parte do povo contra o sistema, que já não os serve mais a eles, mas antes a si próprio»8.

Mais adiante, a propósito da elevada percentagem do desemprego, manifesta-se contra a liberdade do comércio internacional e o TTIP (Tratado Transatlântico de Comércio e Investimento), o dumping social e ambiental e, a respeito do euro, do dumping monetário feito pela Alemanha que, no momento da conversão do marco, o desvalorizou em 15/00, enquanto o franco se valorizou em 6/00. Insurge-se igualmente contra a supressão do «Estado estratégico» herdado da política gaulista, resultante da integração europeia, que impossibilita o desenvolvimento económico francês baseado nos seus «campeões industriais».

Particularmente significativas são as suas considerações em relação ao surto do fundamentalismo islâmico, por cujo aparecimento responsabiliza as guerras do Presidente Clinton no Iraque, Líbia e Síria. Le Pen reivindica o controlo nacional das fronteiras para prevenir a entrada maciça de migrantes muçulmanos e com eles a infiltração de terroristas, e preconiza a extinção da concessão automática da nacionalidade francesa aos muçulmanos nascidos em território francês.

A posição geral da Sr.ª Le Pen pode resumir-se numa defesa exasperada e acrítica do nacionalismo do Estado francês, da independência deste na política internacional e no domínio económico, e numa consequente aversão profunda à ue e ao euro, chegando a dizer que aquela se tem progressivamente transformado numa espécie de «União Soviética Europeia»…

O Brexit constitui um bom exemplo de populismo na sua articulação com a democracia direta através do uso do referendo, da discussão pública que o precedeu, e do debate político que ainda prossegue, após a sua realização.

Num artigo sobre o referendum do Economist, na sua secção «Bagehot»9, e muitíssimo crítico e publicado já meses depois da realização da consulta popular, tendo como pano de fundo a posição clássica tradicional dos constitucionalistas ingleses sobre a soberania do Parlamento britânico, tão bem expressa por A. V. Dicey na «II Lecture» da sua célebre obra Lectures Introductory to the Study of the Law of the Constitution e no seu comentário específico, sobre o referendo, feito pelo grande Professor, na nova introdução à 8.ª edição do mesmo livro10, o articulista escreve:

«Contudo, a política britânica, está, na verdade, a ser reformada, pelo populismo. (…) «A essência do populismo consiste em acreditar que a sociedade pode ser dividida em duas classes antagónicas: o povo e os poderosos. O povo é suposto ter uma única vontade. Os poderosos são por natureza desonestos e corruptos, determinados a enriquecer o seu próprio ninho e dispostos a usar instituições intermediárias (tribunais, meios de comunicação social, partidos políticos) para enganar o povo».

E, mais adiante: «A Grã-Bretanha sucumbiu ao vírus populista porque decidiu aplicar o mais o poderoso instrumento da caixa de ferramentas do populismo – o referendo –, à mais complexa questão da política económica da Grã-Bretanha, ao relacionamento com o seu mais importante parceiro político e económico».

 

O POPULISMO E A DEMOCRACIA

Já tivemos oportunidade de observar que o populismo, com a sua versão simplista da composição dualista da sociedade civil, assenta nas deficiências da democracia representativa, certeiramente denunciadas por Rousseau, que os adeptos daquela gostariam de ver substituída por um multiplicar de instituições de democracia direta, ou, pelo menos, mais próxima desse modelo ideal. No Contrato Social, Rousseau escreve, a propósito dos deputados ou representantes:

«A soberania não pode ser representada, pela mesma razão porque não pode ser alienada; ela consiste essencialmente na vontade geral, e a vontade não se representa: ela é ela própria, ou é outra; não há meio-termo. Os deputados do povo, por conseguinte, não são, nem podem ser, seus representantes, são apenas seus comissários; não podem concluir nada em definitivo. Qualquer lei que o povo em pessoa não tenha ratificado é nula; não, de modo nenhum, uma lei. O povo inglês pensa ser livre, mas engana-se muito; é-o apenas durante a eleição dos membros do parlamento; logo que que estes são eleitos, é escravo; não é nada. Nos curtos momentos da sua liberdade, o uso que dela faz, merece bem que a perca.»11

Os Estados Gerais, na França revolucionária de 1789, convocaram ainda os três estados como ordens separadas, de acordo com a representação feudal. A relação de representação era claramente uma relação jurídica de mandato ou de delegação. Mas, logo que estes se reuniram, deliberaram transformar-se em Assembleia Nacional, e esta mudou radicalmente o sistema representativo do feudalismo do Ancien Régime: o deputado já não é mais o representante do grupo particular que o elegeu, mas torna-se o representante de toda a nação; depois, a nação é concebida como una e indivisível, não representando cada deputado o departamento que o elegeu – aliás uma simples circunscrição administrativa –, mas o todo nacional; a submissão do deputado às instruções dos seus eleitores, o mandato imperativo, acabou, tornando-se aquele independente da vontade ou orientações de quem nele votou como membro do colégio eleitoral.

Com este último ponto, designado como mandato representativo, em conjugação com o modo de encontrar a vontade geral através do princípio da maioria, tal como preconizado por Rousseau, nasce o governo representativo, consagrado na Constituição de 1791. E marca-se também a diferença entre a democracia direta e a democracia representativa.

O facto de o mecanismo representativo, que legitima os poderes dos deputados, ter substituído o instituto medieval, inspirado no direito civil, e habitualmente designado como mandato imperativo, levou a generalizar-se a designação do novo instituto como mandato representativo. A expressão é, porém, enganosa, porquanto não se trata de um «contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais atos jurídicos por conta da outra» – definição de mandato dada pelo artigo 1157.º do nosso Código Civil, mas noção, no essencial, similar nos diversos ordenamentos jurídicos romano-germânicos.

Por fim, a Assembleia Nacional exprime soberanamente a vontade nacional, isto é, as suas deliberações, respeitado o princípio da separação de poderes, não carecem, para ser tomadas como manifestações da vontade da nação, de ser aprovadas pelo soberano12.

A discussão a respeito do modo de estruturar juridicamente a representação política ao nível dos órgãos superiores do Estado passou a beneficiar de uma outra clareza quando a teoria do órgão facilitou a compreensão do modo de imputar os atos e os efeitos jurídicos às pessoas coletivas, e com isso dando também um passo em frente no modo de estruturar a organização das pessoas jurídicas, em particular, as de direito público, incluindo a pessoa coletiva Estado13.

O populismo e a representação política são fenómenos essencialmente políticos, sem prejuízo de, em alguns dos seus aspetos, poderem ser tratados também de um ângulo jurídico. Vale, por isso, a pena, enunciar sucintamente as funções principais que incumbem à representação e de vermos como se inter-relacionam com as manifestações populistas.

O Professor A. H. Birch, autor de um pequeno, mas substancial, livro sobre a representação14, depois de classificar esta em quatro tipos, consoante o conceito básico em que assentam – a representação simbólica, a delegada, a microcósmica e a eletiva –, divide as funções que todas exercem em dois grupos: funções gerais e funções específicas.

São funções de caráter geral: a de controlo popular, que proporciona um certo grau de controlo sobre o governo; a de liderança, que faculta a liderança e a responsabilidade pela tomada de decisões; e a função de manutenção ou de preservação do sistema, que visa contribuir para que o sistema político se mantenha e funcione sem perturbações procurando o apoio dos cidadãos.

Podem definir-se como funções específicas:

  • de reação responsável, procurando assegurar que os responsáveis pela tomada de decisões sejam sensíveis aos interesses e opiniões do público;
  • responsabilidade e transparência proporcionando meios e processos que tornem os líderes políticos responsáveis publicamente pelas suas ações;
  • mudança pacífica, através da criação de mecanismos de substituição de equipas de líderes por outras sem que haja recurso à violência;
  • liderança, promovendo o recrutamento de líderes políticos e a mobilização necessária para o seu desenvolvimento das suas carreiras e o seu êxito;
  • sentido de missão, encorajando os líderes políticos a defender os interesses nacionais de longo prazo bem como a sua capacidade de reação a pressões imediatas;
  • de legitimação, dotando o governo com uma particular forma de legitimidade;
  • de consentimento e consenso, proporcionando canais de comunicação através dos quais o governo possa mobilizar apoios para determinadas políticas;
  • alívios de pressão, providenciando válvulas de escape e que permitam aos cidadãos que se sintam agravados descarregar a sua pressão e desarmar potenciais revolucionários, empenhando-os em formas de atividade que sejam constitucionais15.

Trata-se, é bem de ver, de categorias funcionais que usam conceitos com um grau de indeterminação elevado, e cujo elenco pode variar um pouco de autor para autor. Têm, porém, a vantagem de constituir uma grelha orientada para os órgãos superiores do sistema político, com preocupações descritivas e não normativas.

A representação constitui um mecanismo institucional que procura preservar os sistemas políticos, assegurando a fluidez do seu funcionamento, e a flexibilidade da sua mudança parcial por modo pacífico, evitando a ocorrência de conflitos graves e desestabilizadores. A sua existência aparece muitas vezes apenas ligada às democracias liberais, mas o instituto faz parte necessariamente da estrutura das ditaduras e dos estados totalitários, ou de qualquer outro sistema político, muito embora com funções mais atrofiadas.

Ernesto Laclau, no seu brilhante estudo sobre a matéria de que nos ocupamos, considera não poder haver populismo num dado sistema político sem a formação de um povo, e atribui à relação entre o representante e os representados, trabalhando, nos dois sentidos, o papel principal na construção daquele.

A construção de Laclau assenta numa relação em que o sujeito das manifestações populistas é necessariamente o povo, que se constitui como unidade homogénea na relação dialética que mantém com o representante. Essa metamorfose é feita recorrendo a fenómenos culturais e psíquicos do subconsciente dos indivíduos membros do grupo que gradualmente se transforma, e no construtivismo das opções filosóficas do autor, que assim procura fugir ao que considera excesso de racionalismo das posições de Habermas e da corrente da chamada «democracia deliberativa»16. Sem podermos aqui analisar o complexo caminho percorrido pelo autor e reconhecendo o interesse de não descurar a importância dos sentimentos e da simbologia e da mass psychology de Freud, afigura-se-nos que há populismos que não se apresentam como tendo como sujeitos grupos que sejam necessariamente povos ou grupos em trânsito de o serem, e que o fenómeno populista, como é reconhecido em alguns casos analisados pelo próprio Laclau, pode surgir em sistemas políticos não democráticos. Exemplo dos primeiros, é o populismo de Trump, que não parece apesar de tudo estar em vias de se tornar, apesar de todos os excessos, o líder de um povo separado dos restantes americanos; exemplo do segundo, foi, v.g., o peronismo na Argentina.

 

CONCLUSÃO

O populismo, quer se traduza em críticas isoladas, quer em pressões de espetro mais largo, dirigidas ao governo, a setores da administração pública, ou a organizações privadas com relevância na a vida económica ou social, é, pela sua pouca racionalidade, falta de fundamentação científica e de coerência com outros valores e medidas que igualmente defende, um fator disruptor do funcionamento do sistema político. Representa, particularmente nos sistemas democráticos, um afastamento dos canais normativamente previstos para a definição do interesse geral e para a mudança social e política, desrespeitando os direitos fundamentais da liberdade e da igualdade e da tolerância garantes da dignidade da pessoa humana, pondo também em risco o Estado de direito que os salvaguarda.

Os remédios a adotar perante esta ameaça têm de estar à altura do enorme perigo que significa. Distribuem-se praticamente por todos os domínios da ação humana, aos níveis micro e macro, indo desde o refinamento das teorias filosóficas sobre os critérios do que deve ser uma sociedade mais justa e simultaneamente mais livre, à aplicação concreta das políticas que promovam um maior desenvolvimento económico, maior repartição da riqueza e maior segurança, ou que elevem o nível educativo e cultural dos povos.

Nesta época de grandes perigos, o populismo, ao corromper, por forma insidiosa, valores e procedimentos essenciais da democracia, deve constituir um dos grandes objetivos a combater na defesa do progresso de uma sociedade que seja cada vez mais respeitadora da dignidade da pessoa humana.

 

BIBLIOGRAFIA

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Data de receção: 30 de dezembro de 2017 | Data de aprovação: 10 de fevereiro de 2018

 

NOTAS

1 JUDIS, John B. – The Populist Explosion: How the Great Recession Transformed American and European Politics. Nova York: Columbia Global Reports, 2016. Existe tradução portuguesa: JUDIS, John B. – A Explosão do Populismo: Como a Grande Recessão Transformou a Política nos Estados Unidos e na Europa. Lisboa: Editorial Presença, 2017.

2 Nos Estados Unidos, Andrew Jackson foi o primeiro presidente que marcou o seu mandato por ideias que poderemos considerar como manifestações populistas por serem contra os privilégios da aristocracia de cavalheiros influentes em Washington, mas não tinha uma visão sistemática e caracterizadamente dualista da jovem sociedade civil americana. A importância que atribuiu como presidente à ação política internacional como meio necessário para o engrandecimento territorial e económico dos Estados Unidos, bem como a política de remoção dos nativos índios para o Sudoeste, relegaram para segundo plano atos que, noutra ambiência, poderiam ter uma leitura mais tipicamente populista. Vejam-se, HERRING, George – From Colony to Superpower. Oxford: Oxford University Press, 2008, pp. 164 e segs., e 131 e segs.; KAGAN, Robert – Dangerous Nation: America’s Foreign Policy from Its Earliest Days to the Dawn of the Twentieth Century. Nova York: Vintage Books, 2006, pp. 200 e segs., e, acentuando o caráter populista de Jackson, PINTO, Jaime Nogueira – Bárbaros e Iluminados: Populismo e Utopia no Século XXI. Lisboa: Dom Quixote, 2017, pp. 308 e segs.

3 Vejam-se, entre a enorme bibliografia sobre o assunto, os trabalhos de síntese crítica de Joseph E. Stiglitz, Globalization and Its Discontents. Nova York: W. W. Norton & Company, 2002; Making Globalization Work. Nova York: W. W. Norton & Company, 2006; e The Price of Inequality. Nova York: W. W. Norton & Company, 2012.

4 GERMANI, Gino – Authoritarianism, Fascism and National Populism. New Brunswick: Transaction Books, 1978, p. 88, citado em LACLAU, Ernesto – On Populist Reason. Londres: Verso, 2005, p. 4, o qual, aliás, dá mais exemplos de outros autores que, de modo análogo, procuram obviar à dificuldade de dar definições precisas, e aproveita o ensejo para referir que os obstáculos encontrados se devem às metodologias utilizadas (Ibidem, pp. 4 e segs.). A construção sofisticada de Laclau assenta no conceito de povo como o principal ator coletivo do sistema político cujo dinamismo lembra, ainda que remotamente, alguns aspetos do discurso racional e crítico sobre a «esfera pública» do seminal livro de J. Habermas sobre a transformação estrutural da esfera pública (The Structural Transformation of the Public Sphere: An Inquiry into a Category of Bourgeois Society. Cambridge: Polity, 1962).

5 KAZIN, Michael – «Trump and American populism-old whine, new bottles». In Foreign Affairs. Nova York. Vol. 95, N.º 6, 2016, pp. 17 e segs.

6 Veja-se, também, o clássico livro de Richard Hofstadter, The Age of Reform, de 1955, e o comentário sobre o mesmo, de Alan Brinkley (BRINKLEY, Alan – «Hofstadter the age of reform reconsidered». In Liberalismo and Its Discontents. Cambridge, 1998, pp. 132 e segs.

7 A perspetiva e a argumentação da resistência à política de austeridade imposta à Grécia pela União Europeia é narrada com pormenor no livro de um dos seus principais protagonistas, o ministro das Finanças grego, Yanis Varoufakis (VAROUFAKIS, Yanis – Adults in the Room: My Battle with Europe’s Deep Establishment. Londres: Bodley Head, 2017).

8 LE PEN, Marine – «France’s next revolution?». In Foreign Affairs. Novembro-dezembro de 2006.

9 Publicado na sua edição de 18 de novembro de 2017.

10 ALLISON, J. W. F. – «The law of the Constitution». In The Oxford Edition of Dicey. Oxford: Oxford University Press, 2013, pp. 27 e segs., e 474 e segs.

11 ROUSSEAU, Jean-Jacques – Du contrat social. Paris: Montaigne, 1943, pp. 339--400.

12 Para um bom resumo das mutações introduzidas pela Assembleia Constituinte e que ditaram as notas características do governo representativo, veja-se MALBERG, Raymond – Contribution à la théorie générale de l’état: spécialement d’après les données fournies par le droit constitutionnel français. Tomo II, reimpressão da edição de 1922. Paris: Dalloz, 1920, pp. 199 e segs.

13 Sobre a teoria do órgão e do deu papel na teoria geral das pessoas coletivas, cujos desenvolvimentos fundamentais cabem à doutrina germânica, e de que, em França, Carré de Malberg foi, no direito público, um dos primeiros introdutores, veja-se a síntese de GIANNINI, Massimo Severo – «Organi (teoria generale)». In Enciclopedia del Diritto. Vol. XXXI, 1981, pp. 37 e segs.

14 BIRCH, Anthony Harold – «Representation». In Key Concepts in Political Science. Basingstoke: Palgrave, 1972.

15 Ibidem, pp. 106 e segs.

16 Ibidem, pp. 157 e segs.

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