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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.58 Lisboa jun. 2018

https://doi.org/10.23906/ri2018.58r03 

RECENSÃO

Crónica de um fracasso anunciado: A tentativa de institucionalização das «direitas extraparlamentares» na democracia portuguesa (1976-1980)

 

André Paris

Instituto de Ciências Sociais – Universidade de Lisboa | Av. Professor Aníbal de Bettencourt, 9, 1600-189 Lisboa, Portugal | andre.mota.paris@hotmail.com

 

RICCARDO MARCHI, A Direita Nunca Existiu: As Direitas Extraparlamentares na Institucionalização da Democracia Portuguesa (1976-1980), Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2017, 480 páginas, ISBN: 978-972-671-397-5

 

A Direita Nunca Existiu constitui um contributo indispensável para todos aqueles que no meio académico ou jornalístico procuram as razões para explicar a irrelevância política e eleitoral da extrema-direita ou da direita radical no Portugal democrático. O título do livro, inspirado nas reflexões amarguradas de dois intelectuais públicos pertencentes a esta área política, Eduardo Freitas da Costa e Manuel Maria Múrias, é um bom indicador daquilo que espera o leitor. A Direita Nunca Existiu é a história de um fracasso.

As causas deste fracasso, como referido pelo autor, têm merecido alguma atenção da literatura. Entre os factores explicativos geralmente apontados encontramos o legado do autoritarismo, a natureza da transição para a democracia e os entraves colocados pelo poder revolucionário no processo de institucionalização dos partidos surgidos à direita do Centro Democrático Social (CDS) durante 1974-1975, o fim do império como elo de união entre as diferentes correntes da direita nacionalista, ou, como em Espanha, a orientação tendencialmente moderada do eleitorado e a sua fraca apetência (ou disponibilidade) para apoiar projectos de recorte saudosista ou radical1 . Um dos grandes méritos deste livro resulta, assim, da procura de um conjunto de razões alternativas e complementares para explicar o fracasso político e eleitoral das «direitas extraparlamentares» na democracia portuguesa.

A reconstituição histórica efectuada pelo autor traça-nos o perfil dos principais partidos, movimentos, publicações ou personalidades que animaram a actividade política da direita extraparlamentar no período que mediou entre o 25 de Novembro de 1975 e as eleições legislativas de 5 de Outubro de 1980. A enumeração dos principais actores das direitas extraparlamentares é acompanhada pela descrição das respectivas bases ideológicas e programáticas, dos apoios internos ou internacionais com que contaram e das linhas estratégicas gizadas ao longo do período em análise. De interesse acrescido é também o retrato que o livro nos traz sobre as relações estabelecidas entre estes sectores e os partidos da direita parlamentar (Partido Social Democrata (PSD) e CDS). É esta reconstituição histórica que, no final do livro, permite ao autor elencar um conjunto de razões, endógenas e exógenas, responsáveis pelo fracasso das direitas extraparlamentares na tentativa de ultrapassar o limiar de representação e, por essa via, alcançar a tão desejada institucionalização na democracia portuguesa.

 

AS RAZÕES ENDÓGENAS

Um dos factores endógenos mais importantes sublinhado por Riccardo Marchi para explicar o insucesso político e eleitoral das direitas extraparlamentares encontra-se na indefinição e incoerência identitária dos actores que procuraram afirmar-se no espaço à direita do CDS. Segundo o autor, nenhum dos partidos ou movimentos assume claramente o legado do autoritarismo salazarista como marca identitária e, exceptuando o grupo do semanário A Rua, tanto o PDC (Partido da Democracia Cristã) como o MIRN (Movimento Independente para a Reconstrução Nacional) manifestam uma grande relutância em se assumirem abertamente como partidos de direita. Este facto, como refere o autor, não deixou de alimentar uma certa dissonância entre as forças políticas situadas na direita extraparlamentar e as características da sua base potencial de apoio.

No entanto, a constatação de que «nenhum dos diferentes sujeitos organizados – partidos ou movimentos – assume abertamente o legado do regime deposto» parece-nos um pouco excessiva (p. 445). É o próprio autor que, em diferentes momentos do livro, nos demonstra o contrário. Por exemplo, referindo-se à Frente Nacional (FN), o autor afirma não só que a «identidade da FN é claramente anti-sistema, à luz da sua incompatibilidade com o regime do 25 de Abril», como, do ponto de vista doutrinário, «reproduz fielmente o ideário nacionalista que também norteava Salazar» (pp. 336-337). A coligação PDC-MIRN/PDP-FN, nas eleições legislativas de 1980, também se apresenta como a «oposição global ao sistema do 25 de Abril» (p. 381). Não sendo a dimensão anti-sistémica necessariamente sinónimo de identidade salazarista, não deixa, ainda assim, de ser um factor que reforça a tendência generalizada para identificar os sectores da direita extraparlamentar com a defesa dos princípios e valores associados ao regime deposto.

O segundo factor endógeno apontado por Riccardo Marchi é o «personalismo da elite dirigente» dos partidos e movimentos que compunham o campo da direita extraparlamentar. A utilização dos partidos como veículos de autopromoção individual é uma constante em toda esta área política, constituindo, ao mesmo tempo, um dos factores que agravaram os elevados níveis de conflitualidade interna que representaram um dos traços que mais penalizou e constrangeu a afirmação dos partidos e movimentos políticos surgidos neste espaço. Para além das incontáveis cisões que dilaceraram partidos como o PDC, o excesso de personalismo também tendeu a agravar as rivalidades existentes entre os partidos e personalidades pertencentes aos diversos grupos situados neste quadrante. É notória, ao longo de todo o período em análise, a tendência para os sectores da direita extraparlamentar se envolverem em campanhas de desqualificação pessoal mútua.

O terceiro factor apresentado pelo autor prende-se com a «fraca radicação territorial» das forças políticas situadas à direita do CDS. A fragilidade organizacional dos principais projectos políticos que surgiram neste espaço constituiu um dos principais constrangimentos à sua afirmação política e eleitoral. Como refere o autor, a penetração territorial destes partidos é praticamente inexistente. Salvo alguns núcleos nas principais cidades (como Lisboa, Porto ou Coimbra), estas organizações não chegaram a penetrar no resto do país. O número de filiados é escasso e a noção de militância um pouco fluida. A própria actividade pública destas forças (como o PDC ou o MIRN) é intermitente. A dificuldade demonstrada pelos sectores da direita extraparlamentar concorrerem autonomamente às eleições autárquicas realizadas durante este período (1976 e 1979) constitui talvez o melhor indicador da dimensão das fragilidades organizacionais acima aludidas.

 

OS FACTORES EXÓGENOS OU UMA OBSESSÃO CHAMADA CDS

Quanto às causas exógenas, de acordo com Riccardo Marchi, o principal factor que condicionou o processo de institucionalização das direitas extraparlamentares foi a indisponibilidade dos partidos da direita parlamentar para se «envolverem oficialmente com as direitas extraparlamentares» (p. 449). Uma indisponibilidade que se fez sentir a dois níveis. Ao nível do discurso político, os partidos sistémicos recusaram-se sempre a caucionar a legitimidade democrática dos partidos, movimentos ou personalidades pertencentes ao espectro da direita extraparlamentar e, ao nível da prática política, rejeitaram não só todas as tentativas de aproximação encetadas por esses sectores (como a estratégia suprapartidária do MIRN em 1977 ou a inclusão de MIRN, PDC e FN na Aliança Democrática), como desenvolveram estratégias de cooptação que progressivamente foram enfraquecendo as alternativas surgidas neste espaço.

Não merece qualquer objecção a importância atribuída à indisponibilidade da direita sistémica para se «misturar» com as forças políticas da direita extraparlamentar. Se uma parte da estratégia concebida por estes sectores passava por uma aposta nessa aproximação, e sendo essa estratégia rejeitada sistematicamente por PSD e CDS, é evidente que esse facto não podia deixar de condenar ao fracasso os intuitos políticos dessas forças. O mesmo é válido para o processo de cooptação que, quando feito numa lógica orgânica, não só agravou a conflitualidade interna de alguns partidos, chegando mesmo a provocar cisões (caso da cisão de Sanches Osório no PDC fomentada em harmonia com a direcção do CDS) ou, sempre que canalizada para a cooptação individual, tendeu a absorver as personalidades mais qualificadas da área extraparlamentar.

Mas, independentemente do que fica dito, parece-nos existir aqui uma contradição entre um dos factores endógenos apontados – a relutância dos partidos e movimentos assumirem uma identidade mais próxima do legado salazarista – e o factor exógeno apresentado como determinante para explicar o fracasso das direitas extraparlamentares. A adopção do ideário salazarista não era compaginável com a estratégia de aproximação aos partidos parlamentares. De resto, com maior ou menor inclinação para assumir o legado salazarista, a adopção reiterada de posições anti-sistema por parte destes sectores também se mostrou contraproducente com essa estratégia.

Por conseguinte, quando o autor afirma «que nenhum dirigente centrista – inclusive os mais à direita – alguma vez tentou legitimar as forças extraparlamentares», cai-se no risco de atribuir ao CDS uma responsabilidade que não lhe pertencia (p. 451). Até porque, como se disse, existe uma questão a jusante, que está relacionada com a natureza democrática ou antidemocrática dos partidos e movimentos que animaram a actividade da direita extraparlamentar neste período. É certo que também aqui a heterogeneidade de posições e a idiossincrasia das personalidades e dos grupos envolvidos é a regra, uma questão para a qual o autor não deixa de alertar logo na introdução. Mas, de qualquer forma, como a leitura atenta do livro demonstra, globalmente, existe uma relação difícil entre os sectores situados à direita do CDS e o regime político pós-abrilista. Uma relação difícil que também se verifica na relutância manifestada por estas forças quanto à virtualidade dos princípios ou dos mecanismos formais da democracia representativa.

Convém, por isso, ter algum cuidado para não empolar a responsabilidade ou a importância do CDS em todo este processo. Este ponto parece-nos particularmente relevante, sobretudo porque um dos aspectos que sobressai ao longo de todo o livro é a tendência para os principais protagonistas da direita extraparlamentar encontrarem no CDS o «bode expiatório» para justificar os seus próprios fracassos.

É verdade que, no que concerne à relação com as forças à sua direita, o comportamento do CDS se pautou por uma certa ambiguidade. Para reafirmar o seu carácter de partido centrista e moderado, o CDS afirmou várias vezes que via com bons olhos o surgimento de um partido político que assumisse a representação do espaço político da direita mas, na prática, sempre que pôde e sentiu necessidade, contribuiu para boicotar os projectos políticos surgidos nesse espaço.

Em todo o caso, quando se diz na conclusão que o CDS foi, de todos os partidos da direita parlamentar, «o mais empenhado no boicote à sua direita», convém acrescentar às razões apresentadas o facto de o CDS também ter constituído o partido mais visado pelos outros actores da direita extraparlamentar (p. 450). Não nos podemos esquecer que os ataques ou tentativas de boicote não têm uma direcção unilateral. O grupo do semanário A Rua não só procurou de forma sistemática imiscuir-se na vida interna do CDS (empurrando o partido para a direita e promovendo a ascensão de Lucas Pires) como, sobretudo a partir do II Governo Constitucional, disfere um rol de críticas e comentários muito pouco cordatos à direcção do partido centrista, tendo como alvo principal Adelino Amaro da Costa2 . E quanto às estratégias de cooptação, convém talvez recordar que as bases militantes do CDS também foram aliciadas por elementos do PDC e do MIRN. Estes factores, conjugados com a perda de um ou outro deputado infligida pelo PDC em 1976, ajudam a explicar o comportamento do CDS.

De resto, o CDS – ao contrário do que poderia parecer de acordo com as posições públicas assumidas por vários protagonistas da área radical – não teve um comportamento diferente do PSD no que concerne à abertura a entendimentos com os partidos à sua direita. Tanto o CDS como o PSD se distanciam de forma categórica da estratégia suprapartidária do MIRN em 1977 e, mais tarde, ambos são responsáveis pela não abertura da Aliança Democrática aos principais partidos e movimentos da área extraparlamentar.

A ideia de que essa exclusão se deveu sobretudo ao CDS é menosprezar por completo aquilo que era a vida interna do PSD nos anos 1970. Apesar das cisões dos «inadiáveis», continuava a existir uma tendência dentro do PSD favorável a um entendimento preferencial com o Partido Socialista (PS)3 . Se não foi fácil fazer vingar no interior do partido a opção por uma coligação com o CDS, não se vislumbra a vontade – ou sequer a margem de manobra – da direcção do PSD para abrir as negociações a sectores conotados com a extrema-direita, a não ser em casos pontuais e numa lógica de adesão individual, como referido pelo autor.

 

O FRACASSO ELEITORAL OU O FIM DE UMA ILUSÃO

Os resultados eleitorais alcançados pelas direitas extraparlamentares ao longo deste período demonstram bem a exiguidade do apoio popular que secundou os projectos políticos surgidos neste espaço. No único momento em que, colocando as rivalidades de parte, os principais partidos à direita do CDS decidem concorrer coligados não conseguem sequer suplantar o escasso resultado eleitoral alcançado pelo PDC em 1976, ficando-se pelos 0,4 por cento dos votos. E quanto às eleições presidenciais, que tanto entusiasmaram alguns dos protagonistas desta área adeptos de um presidencialismo de cariz bonapartista, nunca surgiu um candidato capaz de federar o apoio das diferentes direitas que compunham a área extraparlamentar.

Como retrata o autor, a dimensão do fracasso alcançado nas eleições de 1980 abre um período de crise organizativa na esfera da direita extraparlamentar. Passado pouco tempo, uma parte dos actores (como o semanário A Rua) desaparece do panorama político nacional enquanto alguns dos quadros mais bem preparados decidem refugiar-se naquilo a que o autor chama a «estratégia metapolítica», dinamizando um combate de cariz mais cultural, como foi o caso do grupo da revista Futuro Presente.

Para além de sublinhar as fragilidades intrínsecas que minaram as tentativas de institucionalização das direitas extraparlamentares e de demonstrar a incongruência das estratégias políticas seguidas pelos seus principais protagonistas, o livro, ao retratar a forma como esta fatia da direita olhava para o país e concebia as potencialidades da sua intervenção política, demonstra também a «ilusão» que alimentou uma parte considerável destas forças e personalidades. A tendência foi sempre para fazerem uma leitura muito particular da «direita» e das inclinações do eleitorado. Daí que muitas vezes tendessem a inflacionar a sua importância ou o potencial eleitoral dos partidos e movimentos surgidos neste espaço.

No quadro mental de que partiam não era concebível que o «povo de direita» votasse esmagadoramente em partidos que semanticamente não se assumiam como os seus representantes, o que os levou a alimentar a ideia que, mais tarde ou mais cedo, liberta dos constrangimentos do voto útil, uma parte da direita acabaria por premiar aqueles que, desde o 25 de Abril, sem complexos nem tergiversações, tinham assumido os valores e os princípios da direita política nacional. O descalabro eleitoral de 1980 e a dinâmica introduzida pela ad – ao reforçar a capacidade de atracção dos partidos da coligação no eleitorado e nos quadros políticos da direita – colocam um ponto final neste equívoco.

A Direita Nunca Existiu não é apenas a história de um fracasso político é, também e paralelamente, a história de uma ilusão. Só assim se compreende o verdadeiro significado do desabafo amargurado de Manuel Maria Múrias que autor recupera para o título do livro. 

 

A pedido do autor, o texto não adopta as normas do Novo Acordo Ortográfico.

 

BIBLIOGRAFIA

AMARAL, Diogo Freitas do – A Transição para a Democracia – Memórias Políticas II. Lisboa: Bertrand, 2008.

MARCHI, Riccardo – «A extrema-direita portuguesa na “Rua”: da transição à democracia (1976-1980)». In Locus: Revista de História. Vol. 18, N.º 1, 2012.

MARCHI, Riccardo (coord.) – As Direitas na Democracia Portuguesa – Origens, Percursos, Mudanças e Novos Desafios. Alfragide: Texto, 2016.

PINHEIRO, Miguel – Sá Carneiro – Biografia. 3.ª edição. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2010.

PINTO, Jaime Nogueira – A Direita e as Direitas. Carnaxide: Difel, 1996.

ROSAS, Fernando (coord.) – Portugal e a Transição para a Democracia, 1974-1976. Lisboa: Colibri, 1999.

 

NOTAS

1  MARCHI, Riccardo – «À direita da direita: o desafio da extrema-direita à democracia portuguesa». In MARCHI, Riccardo (coord.) – As Direitas na Democracia Portuguesa – Origens, Percursos, Mudanças e Novos Desafios. Alfragide: Texto, 2016, pp. 219-249. Ver também PINTO, Jaime Nogueira – A Direita e as Direitas. Carnaxide: Difel, 1996; PINTO, António Costa – «Saneamentos políticos e movimentos radicais de direita na transição para a democracia, 1974-1976». In ROSAS, Fernando (coord.) – Portugal e a Transição para a Democracia, 1974-1976. Lisboa: Colibri, 1999, pp. 29-48.

2 MARCHI, Riccardo – «A extrema-direita portuguesa na “Rua”: da transição à democracia (1976-1980)». In Locus: Revista de História. Vol. 18, N.º 1, 2012, pp. 167-186.

3 AMARAL, Diogo Freitas do – A Transição para a Democracia – Memórias Políticas II. Lisboa: Bertrand, 2008. Veja-se também PINHEIRO, Miguel – Sá Carneiro – Biografia. 3.ª edição. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2010.

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