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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.58 Lisboa jun. 2018

https://doi.org/10.23906/ri2018.58r01 

RECENSÃO

 

Exposto ao mundo: O Estado Novo confronta o mundo

 

Norrie MacQueen

School of International Relations, University of St Andrews | School of International Relations, Arts Faculty Building, The Scores, St Andrews | Fife, KY16 9AX, Scotland, UK | nm47@st-andrews.ac.uk

 

AURORA ALMADA E SANTOS, A Organização das Nações Unidas e a Questão Colonial Portuguesa: 1960-1974, Lisboa, Instituto de Defesa Nacional, 2017, 348 páginas + 16 ilustrações, ISBN: 978-972-9393-39-6

 

Nos últimos anos, uma geração de historiadores portugueses nascidos por altura da Revolução de 1974 tem vindo a oferecer um conjunto de análises sistemáticas das principais relações bilaterais do Estado Novo no pós-Segunda Guerra Mundial. Estes estudos tendem a concentrar-se nos aliados de Portugal na nato. Por exemplo, excelentes trabalhos foram publicados por Pedro Aires Oliveira sobre a Grã-Bretanha, por Luís Nuno Rodrigues sobre os Estados Unidos, e por Rui Lopes sobre a Alemanha Ocidental. Aurora Almada e Santos pode ser considerada uma representante da geração seguinte de historiadores diplomáticos portugueses. Neste livro, a autora muda o foco da bilateralidade para a multilateralidade das relações entre Lisboa e outras capitais, para o destino das políticas portuguesas quando projetadas num contexto global. Ao fazer isso, oferece uma análise abrangente das vicissitudes da experiência portuguesa nas Nações Unidas (ONU) durante catorze anos, desde 1960, na véspera da revolta angolana, até ao período antecedente à Revolução dos Cravos.

A preocupação do livro com a «questão colonial» fica bem patente no título, mas na verdade este é quase um detalhe redundante. O facto incontornável é que, durante estes anos, quase tudo o que era importante na relação de Portugal com as Nações Unidas tinha que ver com o Ultramar.  A questão de Goa, a revolta angolana, as guerras tanto em Angola como em Moçambique e na Guiné-Bissau (bem como as relações internacionais regionais em África por elas afetadas) praticamente se confundem com a totalidade das relações entre a ONU e Portugal.

 

DE PERFIL MAIS DISCRETO A ALVO MAIS FÁCIL: A EVOLUÇÃO DO ESTATUTO DE PORTUGAL NAS NAÇÕES UNIDAS

Refletindo talvez as suas origens numa tese de doutoramento, a estrutura do livro é um pouco mecanicista. O período examinado é dividido, de forma mais ou menos igualitária, em capítulos que cobrem parcelas de três anos, com algumas pequenas variações no início e no final do período. O efeito, devemos dizê-lo, é um pouco desinspirado. A rigidez cronológica parece por vezes ter prioridade sobre o contexto político. Registam-se algumas tentativas de atribuir um significado especial a cada uma das parcelas – 1962-1964 representa «Uma recuperação notável», após a «Questão prioritária» de 1960-1962 e antes da «Fonte de inquietações particulares» de 1965-1967. Porém, talvez tivesse sido melhor para o argumento que os capítulos fossem organizados num formato mais conceptual, baseado em áreas temáticas, refletindo desta forma tendências mais amplas na política portuguesa e nas próprias Nações Unidas.

Organizar o argumento desta forma poderia, por exemplo, permitir uma explicação mais clara da mudança (ou, melhor dizendo, da falta dela) durante a transição de Salazar para Caetano. Sem os limites cronológicos rigorosos de 1971 a 1974, poder-se-ia também explicar de melhor forma o longo processo doméstico através do qual a era colonial conheceu o seu fim. De igual modo, teria sido possível alcançar uma melhor noção do impacto da descolonização em geral e da consequente mudança no equilíbrio de poder dentro das Nações Unidas através de uma perspetiva histórica mais ampla do que estes capítulos, circunscritos temporalmente, conseguiram oferecer. Essas mudanças afetaram fundamentalmente a posição de Portugal na organização – e estiveram na raiz de um crescente desconforto entre os seus aliados no Ocidente.

Da mesma forma, a «questão colonial portuguesa» só surgiu nas Nações Unidas porque, evidentemente, Portugal tinha colónias. A individualidade de cada uma delas – e a consequente variação na resposta da ONU a cada situação – fica obviamente limitada por uma estrutura vinculada à cronologia. Por exemplo, a Guiné-Bissau foi um dos principais focos de preocupação da ONU por causa das incursões portuguesas, ao longo de muitos anos, na Guiné-Conacri e no Senegal.  A Guiné-Bissau tinha uma outra particularidade em virtude da declaração unilateral de independência do PAIGC em 1973, e do amplo apoio que esta recebeu na Assembleia Geral da ONU. Por outras palavras, a Guiné poderia ter justificado uma abordagem «longitudinal» mais sistemática – tal como Angola e Moçambique. Também Goa foi uma questão com especial significado para as Nações Unidas, tanto a nível legal quanto a nível político, em particular porque a Índia era amplamente reconhecida como líder do bloco afro-asiático da ONU no início dos anos 1960. Portanto, teria sido útil apresentar uma análise mais focada nos territórios individuais (o que, claro está, não significaria necessariamente capítulos totalmente separados) e nas questões específicas que estes apresentaram.

Apesar de tudo, a autora demonstra um entendimento claro da importância de certos eventos-chave no desenvolvimento do que pode ser chamado de política anticolonial da ONU durante a década de 1960. Por exemplo, é dada devida atenção à chamada «Magna Carta da Descolonização» – a Resolução 1514 (XV) da Assembleia Geral de 1961 a respeito da «Declaração sobre a Concessão da Independência aos Países e Povos Coloniais».

A rejeição inequívoca do colonialismo formal através desta resolução marcante estabeleceu, em muitos aspetos, uma separação clara entre o Estado Novo e a ONU. Nos primeiros anos depois de ter sido admitido em 1955 (como parte mais ocidental de um acordo que estendeu a filiação aos satélites soviéticos na Europa Oriental), Portugal escapou em grande medida de atenções desfavoráveis. Até mesmo a resposta brutal à revolta angolana de 1961 foi de certa forma ofuscada na ONU pelos eventos no vizinho Congo, nos quais a própria força de manutenção da paz da organização esteve envolta em controvérsias. No entanto, os termos da Resolução 1514 chocavam frontalmente com a doutrina salazarista de um Ultramar pluricontinental. Estava, portanto, criado o cenário para mais de uma década de confrontação, que se intensificou a cada passo com a crescente influência do bloco afro-asiático na ONU.

Este processo é acompanhado por Almada e Santos de forma extremamente precisa, recorrendo a várias fontes ao longo do livro. O trabalho com fontes de arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros e com documentação da ONU é impressionante. Dito isto, o nível de detalhe apresentado pela autora pode ser às vezes tão extenuante quanto exaustivo. Porém, de entre todos os detalhes, surgem alguns desafios às crenças convencionais acerca da posição de Portugal na ONU.

 

SEGURO ENTRE ALIADOS? OS LIMITES DA AMIZADE NAS NAÇÕES UNIDAS

Apesar de ser uma organização multilateral, a política da ONU é profundamente marcada pelas políticas externas individuais dos seus estados-membros. Neste contexto, Portugal representou um grande dilema para muitos dos seus tradicionais amigos. Ao longo dos anos, a sua experiência em Nova York foi determinada fundamentalmente pelas posições tomadas (ou, às vezes, pelas posições não tomadas) pelos seus aliados formais. Três deles – Estados Unidos, França e Grã-Bretanha – ocuparam lugares permanentes no Conselho de Segurança.

Segundo uma teoria amplamente aceite, Portugal foi acolhido e protegido na ONU devido à influência destas potências. De acordo com esta visão, a coesão e eficácia das alianças sempre tiveram prioridade sobre a moralidade anticolonial. Em suma, a importância de questões como as bases aéreas das Lajes e de Beja sempre foram mais importantes que as dúvidas dos aliados acerca das guerras coloniais e da recusa por parte de Salazar e de Caetano em contemplar qualquer mudança significativa de direção. Mais crucial, a exclusão da Espanha franquista da nato deixou a Portugal o papel de guardião do flanco europeu ocidental. No entanto, a realidade foi mais complexa. Portugal raramente conseguiu contar com o apoio incondicional dos seus parceiros da nato nas Nações Unidas.

A este respeito, Almada e Santos, em outras situações uma autora diligente, poderia ter feito uma análise sistemática do comportamento eleitoral dos aliados nas votações do Conselho de Segurança em assuntos relacionados com o colonialismo português. Se tivesse feito isso, teria acrescentado peso e concisão ao argumento mais geral que emerge da sua narrativa. Apenas uma resolução atacando o colonialismo português foi realmente vetada por qualquer uma das potências ocidentais no Conselho de Segurança. Esta resolução, de maio de 1973, pedia sanções económicas contra Angola e Moçambique (territórios portugueses) e o alargamento do bloqueio naval da Beira para incluir Lourenço Marques. A Grã-Bretanha e os Estados Unidos recorreram aos seus vetos neste caso, e a França absteve-se. Para além desta ocasião, o veto do Conselho de Segurança nunca foi usado para apoiar Portugal. O melhor que Lisboa podia esperar era a abstenção, e nem isso estava garantido. Durante os anos de Caetano (1969-1973) foram analisadas pelo Conselho de Segurança, e aprovadas, 16 resoluções críticas ao colonialismo português.

As posições ocidentais sobre Portugal no seio da ONU eram elas próprias alvo de contestação. Havia divisões entre aliados e entre sucessivos governos dos aliados. Posições opostas foram tomadas até por diferentes setores do mesmo governo. A visão americana foi moldada pelo contexto específico das administrações na Casa Branca. O tom crítico da presidência de Kennedy acabou por dar lugar a uma posição mais compreensiva em relação a Lisboa quando o republicano Richard Nixon chegou ao cargo. A relação anglo-portuguesa era ainda mais complicada, com a Rodésia rebelde, governada por uma minoria branca, a separar e unir Londres e Lisboa na ONU em diferentes momentos. A França foi talvez a mais crítica de Portugal – com razões neocolonialistas bastante paradoxais: as agressões portuguesas contra os vizinhos francófonos da Guiné-Bissau provocaram forte hostilidade em Paris. Em Washington, mesmo durante os anos de Nixon, o Departamento de Estado tendia a ser mais hostil a Portugal, pois os diplomatas de carreira procuravam estabelecer relações fortes com a África negra. Em Londres, as divisões foram ainda mais complexas, com diferentes secções dentro do Ministério dos Negócios Estrangeiros a apelarem a posições opostas nas Nações Unidas. Responsáveis pelos assuntos africanos e pela Europa do Sul basearam as suas posições respetivas em relação às políticas coloniais de Portugal. Uma maior ênfase nestas questões mais amplas de política externa e de relações internacionais na década de 1960 teria proporcionado um equilíbrio útil para a análise documental, às vezes bastante estreita, deste livro.

Uma outra questão surge com a janela temporal do livro. Embora anunciada no título como abrangendo o período de 1960 a 1974, na verdade a análise termina em 1973. Um relato do impacto do 25 de Abril na ONU teria sido muito bem-vindo. De que forma o sistema da ONU lidou com a súbita transformação da situação em África (e também em Timor-Leste)? Especificamente, qual foi a reação das Nações Unidas às diferentes posições adotadas face ao Ultramar pelos sucessivos governos provisórios de Portugal nas semanas e meses subsequentes a abril de 1974? O que se pode inferir dos discursos de Mário Soares, Ernesto Melo Antunes e António de Almeida Santos na Assembleia Geral, e como foram estes recebidos?

Mas é sempre importante resistir à tentação de reescrever o livro que estamos a rever. No geral, Almada e Santos produziu um relato sólido, cuidadoso e meticuloso da reação das Nações Unidas ao colonialismo tardio português. Também fornece, por sua vez, uma análise importante das reações do Estado Novo, um regime enclausurado e voltado para dentro, quando confrontado com o escrutínio global das suas políticas. A incompreensão mútua no cerne deste processo duplo emerge de forma poderosa da narrativa detalhada oferecida pelo livro. 

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