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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.58 Lisboa jun. 2018

 

OBITUÁRIO

 

Pierre Hassner

(1933-2018)

 

Filósofo e cientista político – «mais próximo do lado político do que do lado da ciência», nas suas palavras –, Pierre Hassner é uma referência incontornável nos estudos de relações internacionais, um dos raríssimos europeus que têm lugar ao lado dos maiores numa disciplina dominada pelos investigadores anglo-saxónicos. Professor e conferencista brilhante – ninguém pode esquecer os seus monólogos prodigiosos –, Pierre Hassner foi um pedagogo da complexidade, que sabia levar os outros a arriscar pensar os problemas até ao fim.

Nasceu em 1933, numa família da burguesia judaica na Roménia que conseguiu sobreviver às perseguições raciais durante a Segunda Guerra Mundial, convertendo-se ao catolicismo. Filho único, fez o Liceu Francês em Bucareste, onde viveu até 1948, altura em que o seu pai decide fugir do regime comunista e atravessar a fronteira a salto com a família. Instalam-se como refugiados em Paris, onde Pierre Hassner faz o baccalauréat aos 16 anos e, em 1952, entra na École Normale Supérieure. Em 1955, é o primeiro classificado na agregação de Filosofia e, dois anos depois, obtém a nacionalidade francesa. Estuda na Sorbonne com Raymond Aron – que o reconhece como o seu melhor aluno – e em Chicago com Leo Strauss –  que ele próprio reconhece como um dos maiores filósofos vivos.

Desde 1959, pertence ao Centre d’Études des Relations Internationales (CERI), onde faz toda a sua carreira até se reformar como directeur de Recherches, ao mesmo tempo que ensina em Sciences Po e, mais tarde, também na Johns Hopkins em Bolonha, assim como em Harvard, em Chicago ou em Montréal. Nas décadas seguintes, é uma presença indispensável nas conferências sobre segurança e política internacional dos dois lados do Atlântico e publica em todas as revistas académicas relevantes – International Affairs, Politique Etrangère, Survival, Foreign Policy, Government and Opposition, Revue Française de Science Politique, Survey, Orbis – assim como nas principais revistas intelectuais – Preuves, Esprit, National Interest, Commentaire, Le Débat, American Interest. Publicou também na Política Internacional e na Relações Internacionais, a cujo Conselho Consultivo pertenceu desde o primeiro número1 .

Pierre Hassner é, em primeiro lugar, um filósofo, que escreveu sobre Rousseau, Hegel e Kant – são seus os capítulos sobre os dois filósofos alemães na History of Political Philosophy editada por Leo Strauss2  –, bem como sobre os problemas da ética e da moral. Em segundo lugar, é um pensador das relações internacionais que, por um lado, integra a filosofia clássica no estudo da política internacional e, por outro, faz a avaliação crítica das teorias de relações internacionais, desde Martin Wight a Kenneth Waltz, de Stanley Hoffmann a Johan Galtung3. Em terceiro lugar, é um analista político que trata os grandes temas contemporâneos da guerra e da paz, da ordem e da desordem internacional, do totalitarismo e do nacionalismo, da violência e do terrorismo, das estratégias das potências e da balança das emoções. Ele próprio dizia ter começado pela filosofia, para depois estudar relações internacionais, antes de regressar, nos últimos anos, à reflexão sobre a alma e as paixões coletivas.

Eclético, nunca se submeteu a nenhuma corrente – a sua boutade sobre Aron, «demasiado realista para ser membro da “escola realista”» –, assenta-lhe bem. Nómada do espírito, cultiva temas sazonais numa desordem aparente, seguindo a fórmula de Pascal que gostava de citar: «Je ferais trop d’honneur à mon sujet si je le traitais avec ordre, puisque je veux démontrer qu’il en est incapable». Nos primeiros anos, a segurança internacional é o tema dominante, que o faz escrever sobre a estratégia nuclear, o arms control, a détente bipolar e a balança europeia na Guerra Fria4. Em 1968, depois da Revolução de Maio e da Primavera de Praga, o seu tema passa a ser as consequências das mudanças dos regimes, das ideias e das sociedades na política internacional. Está em Lisboa durante o «Verão Quente» a convite do Partido Socialista e participa na manifestação da Alameda contra o «gonçalvismo», organiza no CERI um seminário sobre as relações Leste-Oeste – onde passam os dissidentes de todos os países da Europa Oriental, incluindo os dirigentes do Solidarnosc durante a «Revolução Autolimitada» na Polónia. Escreve sobre o «Eurocomunismo» e a détente e sobre a evolução política dos regimes comunistas europeus, à procura dos sinais que anunciam o fim do comunismo e do império soviético5 . No pós-Guerra Fria, depois das polémicas com Francis Fukuyama e, sobretudo, com Samuel Huntington6, o novo tema é o regresso das velhas questões do nacionalismo, das fronteiras e das minorias, que estão na origem das guerras civis, da «limpeza étnica» e da violência identitária e tornam as intervenções militares conjunturalmente decisivas. Pierre Hassner preside ao Comité Kosovo, que denuncia a perseguição da minoria albanesa na Sérvia. Depois do «11 de Setembro», prevalece o tema da ordem imperial e da desordem internacional – as tentações hegemónicas dos Estados Unidos7, a deriva autoritária na Rússia ou a Guerra da Síria, que compara à Guerra Civil de Espanha. Finalmente, desde 2004, o tema das paixões coletivas marca o regresso a Tucídides, Spinoza e Rousseau, e a Elie Halévy, Aron e François Furet para estudar um tema original e clássico que ninguém tinha ousado tratar no domínio da política internacional: «As relações internacionais, como a política em geral, são feitas de um entrelaçamento inextricável entre interesses, ideias e paixões»8. Os textos sobre as emoções, no tempo em que antecipava que a «barbarização dos burgueses» ia tomar o passo sobre o «emburguesamento dos bárbaros», estão reunidos na Revanche des Passions9, o último dos três livros que colecionam os seus ensaios.

Em todos os domínios, seguia regras claras – o respeito escrupuloso pelos factos e pelos argumentos dos outros, o horror dos moralistas e das ideias feitas, a rejeição do fanatismo, da confusão mental e da banalidade. Intransigente no domínio dos princípios intelectuais, era um cultor da amizade – o «círculo hassneriano» não tinha fronteiras nem geográficas, nem linguísticas, nem de idade e incluía os discípulos mais próximos, como Anne-Marie LeGloannec ou Alexandre Smolar10, os confrades, como Pierre Grémion ou Jacques Rupnik, os pares, como Jean-Claude Casanova ou Allan Bloom, e tantos amigos, na companhia dos quais nunca resistia nem a um mot d’esprit, nem a demonstrar a sua joie de vivre

 

Pierre Hassner, membro do Conselho Consultivo da revista R:I, faleceu em Paris, a 26 de Maio de 2018.

 

NOTAS

1 Os textos de Pierre Hassner nas revistas portuguesas incluem uma conferência no Convento da Arrábida sobre «A reinvenção da Europa», a convite da Fundação Oriente, assim como uma entrevista de Teresa de Sousa. HASSNER, Pierre – «A reinvenção da Europa». In Política Internacional. N.º 7-8, pp. 5-18, 1993; HASSNER, Pierre – Entrevista com Teresa de Sousa – «Inquietações de um euro-atlantista». In Relações Internacionais. N.º 1, 2004, pp. 39-44. Ver também HASSNER, Pierre – «Construir modelos enquanto Roma arde?». In Política Internacional. N.º 3, 1991, pp. 81-95.

2 HASSNER, Pierre – «Immanuel Kant». In STRAUSS, Leo, e CROPSEY, Joseph (org.) – History of Political Philosophy. Chicago: Chicago University Press, 1963, pp. 581-621; HASSNER, Pierre – «Georg W. F. Hegel». Traduzido por Allan Bloom. In STRAUSS, Leo, e CROPSEY, Joseph (org.) – History of Political Philosophy, pp. 732-760.

3 HASSNER, Pierre – «Beyond the three traditions: the philosophy of war and peace in historical perspetive». In International Affairs. Vol. 70, N.º 4, 1994; HASSNER, Pierre – «Le Crépuscule des Gulliver ou les mecomptes d’Hoffmann». In Revue Française de Science Politique. Vol. 20, N.º 1, pp. 142-148, 1970; HASSNER, Pierre – «On ne badine pas avec la paix». In Revue Française de Science Politique. Vol. 23, N.º 6, 1973, pp. 1268-1303.

4 Pierre Hassner revê o livro de Raymond Aron sobre a estratégia nuclear – Le Grand débat, publicado em 1963. Mais tarde, prepara para publicação o manuscrito inacabado de Aron – Les Dernières annés du siècle – e organiza um volume com os seus dispersos sobre Clausewitz. HASSNER, Pierre – «Préface». In ARON, Raymond – Sur Clausewitz. Bruxelas: Complexe, 1987.

5 HASSNER, Pierre, e Grémion, Pierre (dirs.) – Vent d‘Est. Vers l‘Europe des Etats de droit?. Paris: PUF, 1990.

6 HASSNER, Pierre – «Un Spengler pour l’après Guerre froide?». In Commentaire. N.º 66, 1994; HASSNER, Pierre – «Huntington’s clash of civilizations: morally objectionable, politically dangerous». In National Interest. N.º 46, 1996, pp. 63-69.

7 HASSNER, Pierre – L’Empire de la force ou la force de l’empire?. Paris: Institut Européen de Sécurité, 2003. Ver também HASSNER, Pierre, e VAISSE, Justin – Washington et le monde. Paris: Autrement, 2003.

8 Pierre Hassner começa a tratar esse tema na recensão do ensaio de Max Weber sobre a ética, publicado em França com uma introdução de Raymond Aron. HASSNER, Pierre – «Weber (Max). Le savant et la politique». In Revue Française de Science Politique. Vol. 9, N.º 4, 1959, pp. 1047-1052.

9 HASSNER, Pierre – La Violence et la paix. De la bombe atomique au nettoyage ethnique. Paris: Seuil, 2000; HASSNER, Pierre – La Violence et la paix II. La Terreur et l’empire. Paris: Seuil, 2003; HASSNER, Pierre – La Revanche des passions. Paris: Fayard, 2015.

10 LEGLOANNEC, Anne-Marie, e SMOLAR, Aleksander (dirs.) – Entre Kant et Kosovo. Études offertes à Pierre Hassner. Paris: Presses de la Fondation des Sciences Politiques, 2003.

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