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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.58 Lisboa jun. 2018

https://doi.org/10.23906/ri2018.58a01 

HANS MORGENTHAU E POLITICS AMONG NATIONS

Nota introdutória:  Hans Morgenthau e Politics among Nations

 

Luís Lobo-Fernandes, Carlos Gaspar e Guilherme Marques Pedro

* Universidade do Minho | Campus de Gualtar, 4710-057 Braga | luislobo@eeg.uminho.pt

** IPRI-NOVA | Rua de D. Estefânia, 195, 5.º Dt.º, 1000-155, Lisboa | c.gaspar@ipri.pt

*** Departamento de Filosofia, Universidade de Uppsala | Box 627, 751 – 26 Uppsala, Suécia | guilhermemarquespedro@gmail.com

 

«It can’t last out the necessary timespan, which is roughly between now and the death of the sun.»1

Martin Amis, Einstein’s Monsters, 1987

Amis referia-se assim à balança de poder precária, propriamente chamada de mutually assured destruction ou MAD, e que assegurou a paz mundial durante a Guerra Fria2. Após o surgimento da «Bomba», o conflito na Coreia parecia mostrar que a escalada nuclear entre as potências saídas da Segunda Guerra não era inevitável, apontando no sentido inverso da contenção regional de guerras «quentes» e convencionais. Mas essa não foi sempre a visão dominante. Em face da nuclearização, a proposta teórica de um «Estado Mundial» não tardará a figurar nos escritos de muitos realistas logo nos anos 1940, como Reinhold Niebuhr, Frederick Schuman, ou John Herz – ora para a defender, ora para a atacar. O «Estado Mundial» foi de facto a «batata quente» de boa parte do realismo anglo-americano, precisamente aquele que procurava fazer transitar o ceticismo anti-wilsoniano do entre guerras para um pós-guerra em que os Estados Unidos emergem como grande potência e onde as suas responsabilidades neo-imperiais, partilhadas com outro poder nuclear, encaixam mal no isolacionismo inspirado na doutrina de Monroe.

É neste contexto de habituação a um mundo novo, e de tensão interna à própria tradição realista, que surge o Politics among Nations. Nele, Hans J. Morgenthau confronta a possibilidade da criação de um «Estado Mundial» e avança um argumento que pode numa primeira leitura ser lido como uma rejeição em toda a linha daquela que ele considera ser a pré-condição ontológica necessária para a construção de um Estado do tamanho do mundo, e que Niebuhr tinha já apelidado como uma impossible possibility: o da existência de uma comunidade mundial. Todavia, uma leitura alternativa, que parta daquele capítulo para o resto do livro, sugere que toda a tradição, e não apenas o pensamento de Morgenthau, pode ser lido de forma distinta: de facto, o não-objeto de estudo das relações internacionais (RI) – a anarquia – não é sem ordem. Pelo contrário, é o caráter distinto desta ordem que Morgenthau procura explicitar no Politics among Nations, e, lido assim, o livro pode de facto ser colocado na esteira da Escola Inglesa, do funcionalismo de que muitos teóricos «críticos» se apropriaram, e mesmo do construtivismo de tendência cosmopolita3.

A par com uma reconstrução cuidada da bagagem conceptual do Politics among Nations, o presente volume oferece um espectro diverso de interpretações possíveis do realismo de Morgenthau e aqui reside porventura o seu contributo mais interessante. Apesar de não visar dirimir de forma definitiva a grande polémica sobre as «falsas polaridades», que tanto têm contribuído para a redefinição da identidade disciplinar das RI, ele insere-se num caminho que tem vindo a ser desbravado de desmistificação dos cânones metateóricos que circunscrevem as «grandes tradições» da disciplina e, assim, determinam a sua diferenciação interna4. Esse trabalho de desconstrução não passa apenas pelas chamadas «assunções ontológicas» tão assacadas a uma tradição – a obtusa, apologista e ultrapassada «tradição realista» – por reproduzir o statu quo de uma certa retórica importada sem filtro crítico dos bastidores do Pentágono e da Casa Branca. De facto, a transumância entre estes e a universidade americana contribuiu muito para a formação de um habitus social e intelectual tão marcado pela angst do entre guerras e do pós-guerra. Mas ao desmascarar esses pressupostos, a teoria crítica recaiu no erro anacrónico que acusava no realismo: o de uma leitura superficial que com o propósito de destronar alguns fetiches que tinham tomado conta da disciplina, acabou por enfeitiçar ainda mais uma tradição altamente eclética e ambígua, rica de contradições e de liaisons dangereuses, e até de profundos desacordos que não raro redundaram em ódios de estimação5.

Entre outras coisas, o fetichismo classificatório que arrumou a tradição realista, quer na gaveta da rejeição abrupta do papel estabilizador do direito internacional, quer na da obsessão estatocêntrica pelo «interesse nacional definido em termos de poder», constitui mais um desses strawmen que povoam as RI, e obscurecem qualquer tentativa de narrar as suas «estórias» intelectuais, apesar dos já constantes assaltos à textbook mythology em torno dos «debates disciplinares» e da ideia que lhe está subjacente: a de tradições herméticas que confrontam argumentos sem contaminação mútua – para não falar, é claro, das próprias tergiversações internas à obra de cada «autor», amiúde ignoradas. É sabido que a «atitude» realista remete para uma certa prudência aristotélica cujo espírito apolíneo se terá rendido ao longo do tempo – e sobretudo em tempo de guerra – às incursões mais cínicas (com Maquiavel), mais nominalistas (com Hobbes), ou mais dionisíacas (com Nietzsche)6. Esta última etapa precipitou, por sua vez, alguns realistas como Niebuhr para um sentido trágico da história, capaz de acomodar quer uma certa cosmologia estóica à la Kierkegaard, quer a crítica teológica à idolatria imperial de um Agostinho – a que acresce ainda, como não poderia deixar de ser, a psicologia da angústia, muito mais espessa e esguia do que o medo austero e protestante de Hobbes, e que Heidegger e Freud colocaram no coração de uma Europa outra vez em guerra civil.

Como no caso de muitas (re)leituras atuais de Max Weber, verdadeiro pano de fundo intelectual para todo o establishment intelectual alemão daquele período, seria contudo demasiado fácil o recurso ao romantismo alemão para justificar a crítica acérrima de Morgenthau ao racionalismo liberal subjacente ao então nascente Homo scientificus7, tão farisaico na rejeição de metafísicas pré-modernas quanto reencantado pelos poderes mágicos da positividade tecnoburocrática do Estado administrativo, sempre concebida em contraposição a uma multidão de indivíduos em estado de natureza, que esperam assim o resgate por parte de um deus ex machina. A par com o zeitgeist de uma elite intelectual que em grande parte viria a emigrar para a América, existiram também condições de facto da construção de um Estado – e, por arrasto, de instituições internacionais – concebido como abstração técnico-jurídica. De facto, e apesar das deificações coletivistas que Nietzsche antecipara já com o prenúncio da morte de Deus, só o século XX poderia ter criado as condições tecnológicas que tornavam possível a crença na capacidade de um deus aparentemente mortal se imortalizar, para além de todas as revoluções e de todas as guerras. É neste sentido que para Woodrow Wilson a «paz democrática» era um ponto sem retorno para o qual a «mão de Deus», bastante visível pelo menos para ele, tinha conduzido a América. A federação planetária dependia portanto da América fazer sua essa missão divina.

Curiosamente, era precisamente contra este Leviatã escolhido por Deus que o realismo de Morgenthau – neste particular dando plena sequência ao de Niebuhr – nos alertava, ao recorrer, não sem problemas, a uma conceção mais orgânica do direito e a partir do qual Morgenthau desenvolve então uma conceção que denomina propriamente «realista». É precisamente à filosofia do direito, e não à teoria política, que Morgenthau iria buscar o seu realismo, ainda numa fase da sua vida sobre a qual Henry Kissinger afirma nunca lhe ter ouvido uma palavra8. Paradoxalmente, foi precisamente esse realismo que um dos maiores arautos do positivismo jurídico, Hans Kelsen, viria a elogiar, como membro da comissão avaliadora da tese doutoral que Morgenthau completou aos  25 anos, com o título, tão breve quanto germânico Die internationale Rechtspflege, das Wesen ihrer Organe und die Grenzen ihrer Anwendung; insbesondere der Begriff des Politischen im Völkerrecht («A função judicial na esfera internacional, a natura dos seus órgãos e os limites da sua aplicação; em particular, o conceito do político no direito internacional»)9. Kelsen afirmara então que

«Augura bem pela seriedade e vigor dos esforços académicos de Herr Morgenthau que tenha escolhido aquele que é provavelmente o problema mais difícil da teoria normativa. E ele atacou este problema não apenas com um conhecimento extraordinário da extensa literatura, não apenas com um olhar profundo sobre muitas das questões relacionadas, mas também com independência e ideias profundamente originais. Este estudo demonstra que Herr Morgenthau é uma daquelas mentes raras que pode ter algo de importante para contribuir para a ciência exata da jurisprudência.»10

Dada a origem essencialmente jurídica do seu realismo, o enfoque deste volume no Politics among Nations serve não apenas o propósito de uma revisitação de uma obra que reivindicou um estatuto científico sem precedentes para a disciplina das relações internacionais, mas fê-lo também porque Morgenthau soube basear o seu realismo em conceções de poder, de interesse e de comunidade que, estando já em germe nos realismos de Niebuhr ou E. H. Carr – mas também de Carl Schmitt e Georg Jellinek – não redundam nem numa rejeição total da possibilidade da descoberta científica de um racional para a interação dos estados, nem tão-pouco numa visão apocalíptica ou resignada da (possibilidade de) ordem internacional. Ora, é precisamente porque a obra de Morgenthau se reveste de contributos para a política e para o direito de hoje que importa revisitá-la. A história – mesmo a história intelectual – é sempre escrita para o presente e não para o passado, e a atenção de Morgenthau ao detalhe sociológico das dinâmicas de poder, e da forma como estas criam novas formas de direito e normatividade, sobressai num momento em que a política externa americana parece dominada por twitters unilaterais e por um isolacionismo que, ao contrário do que muitos analistas alvitram, foi historicamente mais a regra do que a exceção.

Nesta linha, o realismo não pode servir para reconfirmar o anacronismo da velha wisdom, tão cética quanto acomodada, que acredita na repetição cíclica da história. Pelo contrário, é ressuscitando estes diálogos escondidos entre um passado e um presente bem demarcados, e na consciência da sua contiguidade inexorável, que a história intelectual continua a fazer sentido. Não deixemos, assim, de ler o que sempre lemos do passado, com a gradação que o presente nos oferece.

Com o intuito de uma primeira abordagem e contextualização da obra de Morgenthau o volume começa com a revista crítica proposta por Daniel Marcos dos principais temas do livro para depois concluir do contributo do Politics among Nations para a análise da política externa americana, e para as tensões existentes entre as ideias de Morgenthau e as administrações americanas no contexto da Guerra Fria. Prosseguindo este enfoque no contexto e nos conceitos essenciais do realismo de Morgenthau, Maria Regina Soares de Lima desenvolve uma descrição mais aprofundada do realismo propriamente «político» de Morgenthau para explicar precisamente a sua influência quer no seu tempo – e é certo que, a julgar pelo número de reedições, o Politics among Nations teve vários «tempos» –, quer nos escritos de teóricos das ri contemporâneos que ainda reivindicam o legado de Morgenthau.

O volume avança depois para a exploração mais detalhada de temas específicos, propondo abordagens inovadoras a temas mais negligenciados do realismo de Morgenthau e do Politics among Nations. Guilherme Marques Pedro sugere que Morgenthau constrói no Politics among Nations uma teoria do direito internacional: concebido de forma funcionalista, este tem um papel constitutivo não de um «Estado Mundial» a partir do topo para a base, mas de uma comunidade mundial de interesses que é a pré-condição ontológica daquele, num raciocínio que reporta, aliás, a uma conceção lockeana do pacto social e do estado de natureza. Esta preocupação com o direito internacional recoloca Morgenthau na vanguarda dos debates contemporâneos sobre a filosofia do direito, mas não reside apenas aí a sua atualidade. Como revelam Eduardo Uziel e Gelson Fonseca Jr., é ainda no contexto de uma reflexão crítica sobre normas e instituições internacionais que o Politics among Nations levanta questões quanto à existência, atuação, e estrutura da Organização das Nações Unidas, questões essas que, apesar de demonstrarem limitações importantes na análise de Morgenthau, não deixam de constituir um alerta para o futuro daquela instituição.

Como não poderia deixar de ser, a atenção de Morgenthau ao tema da segurança internacional também não passa despercebida a este volume. Por um lado, Pedro Tiago Ferreira olha para a admissibilidade da guerra a partir do tratamento que Morgenthau faz da tradição da guerra justa, conjugando-a, obviamente, com o tema central do poder nuclear das grandes potências. Por outro lado, Hugo Arend desenvolve uma abordagem radicalmente nova ao realismo de Morgenthau, procurando explicar como a obsessão securitária do novo mundo nuclear conduziu a um certo deslumbramento das elites académicas e intelectuais responsáveis por circunscrever um determinado campo discursivo caracterizado por uma linguagem que opera em circuito fechado. Apesar do intuito desconstrutivo inicial que a obra de Morgenthau apresenta – nomeadamente face ao positivismo jurídico e às suas assunções metafísicas –, o realismo de Morgenthau acaba por reestruturar o campo das ri à luz de novos pressupostos ontológicos que se tornam mais ou menos inquestionáveis e, segundo Arend, reproduzem certas identidades e modos de conhecer o mundo, delimitam as regras do discurso científico sobre os conflitos internacionais, e reificam o poder das grandes potências, através de um discurso autolegitimador sobre a Guerra Fria a que Arend, baseado em Foucault, chama de «dispositivo».

O volume conclui com a análise de Luís Lobo-Fernandes sobre o processo de construção da teoria das relações internacionais, explorando as principais proposições do realismo político bem como os seus limites, cujos marcos fundamentais são justamente o magnum opus de Morgenthau e o tratado de Kenneth N. Waltz sobre o estruturalismo realista – a referência comum das principais escolas modernas de ri. Morgenthau é crucial quer no domínio da higiene intelectual – despir os estudos internacionais do moralismo e das ideologias –, quer no domínio da política – recusar a pretensão de universalidade dos sistemas de valores nacionais, o reconhecimento recíproco da legitimidade dos interesses fundamentais de segurança das potências –, quer, sobretudo, no domínio do método, com o enunciado de um paradigma realista, em contraposição ao paradigma idealista. Waltz parte de Morgenthau para enunciar, por sua vez, com mais parcimónia, uma teoria do sistema internacional, que não pode não escapar ao fundador da escola realista clássica, demasiado atento ao emaranhado das relações de poderes entre os estados para encontrar a estrutura do sistema. O realismo complexo de Tucídides pode ser a forma de reconciliar Waltz e Morgenthau, possível critério das diferentes pulsações realistas. 

 

BIBLIOGRAFIA

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FREI, Christoph – Hans J. Morgenthau: An Intellectual Biography. Baton Rouge, LA: Louisiana State University Press, 2001.

JUTERSÖNKE, Oliver – Morgenthau, Law and Realism. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. Doi: 10.1017/cbo9780511780011.

MORGENTHAU, Hans – Scientific Man vs. Power Politics. Londres: Latimer House Limited, 1947.

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PATOMAKI, Heiki – After International Relations: Critical Realism and the (Re)Construction of World Politics. Londres: Routledge, 2003. Doi: 10.4324/9780203119037.

WILLIAMS, Michael – Realism Reconsidered: The Legacy of Hans Morgenthau in International Relations. Oxford: Oxford University Press, 2007.

 

NOTAS

1 BARTEL, Fritz – «Surviving the years of grace: the atomic bomb and the specter of world government». In Diplomatic History. Vol. 39, N.º 2, 2015, p. 275.

2 Citado em CRAIG, Campbell – «The resurgent idea of world government». In Ethics and International Affairs. Vol. 22, N.º 2, verão de 2008, p. 136.

3 MURRAY, Alastair – Reconstructing Realism: Between Power Politics and Cosmopolitan Ethics. Edimburgo: Keele University Press, 1997.

4 WILLIAMS, Michael – Realism Reconsidered: The Legacy of Hans Morgenthau in International Relations. Oxford: Oxford University Press, 2007.

5 Para uma reconstrução crítica da obra de Morgenthau sob o desígnio de um «realismo crítico», ver PATOMAKI, Heiki – After International Relations: Critical Realism and the (Re)Construction of World Politics. Londres: Routledge, 2003.

6 A propósito das várias apropriações do pensamento internacional de Morgenthau, ver WILLIAMS, Michael – Realism Reconsidered.

7 MORGENTHAU, Hans – Scientific Man vs. Power Politics. Londres: Latimer House Limited, 1947.

8 FREI, Christoph – Hans J. Morgenthau: An Intellectual Biography. Baton Rouge, la: Louisiana State University Press, 2001.

9 JUTERSÖNKE, Oliver – Morgenthau, Law and Realism. Cambridge: Cambridge University Press, 2010.

10 FREI, Christoph – Hans J. Morgenthau, p. 48.

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