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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.57 Lisboa mar. 2018

https://doi.org/10.23906/ri2018.57r02 

RECENSÃO

 

A ideologia fascista e a abordagem transnacional

 

Carlos Martins

ICS-UL | Instituto de Ciências Sociais, Av. Professor Aníbal de Bettencourt, 9, 1600-189 Lisboa | cmmartins@ics.ul.pt

 

MATTEO ALBANESE e PABLO DEL HIERRO, Transnational Fascism in the Twentieth Century: Spain, Italy and the Global Neo-Fascist Network. Londres, Bloomsbury Publishing, 2016, 240 páginas. ISBN 9781472522504

 

INTRODUÇÃO

Benito Mussolini referiu certa vez que «Fascism is not goods for export»1, dando assim a entender que o fascismo era um fenómeno puramente italiano. Contudo, um considerável número das decisões políticas tomadas pelo seu regime contradiz totalmente as implicações desta afirmação, pois foram realizadas diversas tentativas para estabelecer ligações com movimentos e regimes similares de outros países. Um momento particularmente importante foi o Congresso de Montreux, que reuniu diversos movimentos numa tentativa de criar uma «internacional fascista».

No entanto, uma grande porção dos estudos sobre o fascismo subestimou este caráter internacional da ideologia, optando por não colocar em causa o «paradigma nacional». O livro de Matteo Albanese e Pablo Del Hierro, Transnational Fascism in the Twentieth Century: Spain, Italy and the Global Neo-Fascist Network, deve ser visto como um esforço para colmatar esta lacuna e estudar o fascismo numa perspetiva transnacional. Uma das principais motivações para a redação deste livro foi a convicção de que «fascism, as an ideology, is transnational by nature» (p. 4). Por outras palavras, se a análise não for além dos limites das fronteiras nacionais e não levar em conta as conexões estabelecidas entre os diferentes países, permaneceremos no desconhecimento em relação a aspetos essenciais da história do fascismo.

Neste contexto transnacional, argumentam os autores, a cooperação transfronteiriça entre fascistas levou ao surgimento de uma rede hispano-italiana, que é o principal tema deste livro. Apesar de esta não ter sido a única rede, a sua importância torna-se evidente se se pensar que sobreviveu à derrota do fascismo na Segunda Guerra Mundial, numa altura em que o regime franquista serviu de refúgio para muitos militantes de extrema-direita. Assim, ao focar-se na evolução desta rede entre os anos que vão de 1922 a 1981, este estudo pretende clarificar alguns aspetos acerca da ideologia fascista e sua época, bem como da evolução do neofascismo depois dos anos 1940. De acordo com os autores, «The focus is on the formation, evolution and composition of the network in an attempt to explain how it became a crucial channel for communication, exchange of ideas and even cooperation within the neo-fascist political field» (pp. 3-4).

 

A REDE HISPANO-ITALIANA: EVOLUÇÃO E RECONFIGURAÇÃO

Seguindo uma perspetiva cronológica, os capítulos analisam diferentes períodos temporais e os diversos desafios que cada um deles colocou para a evolução e sobrevivência da rede. O primeiro capítulo foca-se, pois, nas origens da rede, logo após a «Marcha sobre Roma». Tratava-se esta de uma época em que as relações pessoais entre figuras relevantes, tais como Ezio Maria Gray, José Antonio Primo de Rivera e Giménez Caballero, eram mais importantes do que a troca de ideias. No entanto, os autores também prestam atenção a organizações políticas como os Fasci all’Estero e a Falange espanhola e ainda às influências ideológicas na reforma laboral de Aunós durante o regime de Miguel Primo de Rivera. O fortalecimento da rede apenas aconteceria depois de 1936, como é explicado no capítulo seguinte, com o início da Guerra Civil Espanhola. Foi este um evento que fomentou os laços entre soldados espanhóis e os voluntários italianos no Corpo di Truppe Volontarie. 

O estabelecimento da ditadura franquista, com a influência que o regime italiano sobre ela exerceu, foi um acontecimento importante para a consolidação da rede durante a Segunda Guerra Mundial, ainda que o próprio Franco mais tarde retirasse progressivamente o seu apoio ao Eixo.

Como mostram os autores nos dois capítulos seguintes, a rede não desapareceu totalmente nos anos que se seguiram à guerra, e os laços estabelecidos anteriormente foram fundamentais para ajudar alguns fascistas a escapar para a América Latina ou simplesmente dar-lhes refúgio na Espanha franquista. Este contexto permitiu a reconstrução de uma rede que incluía refugiados italianos em Espanha e o partido neofascista Movimento Sociale Italiano (MSI), mesmo que a sua principal preocupação fosse a sobrevivência e não a troca de ideias. Mais tarde, o contexto internacional dos anos 1950 levou à consolidação da nova rede transnacional e do seu laço hispano-italiano, pois a prioridade dada pelas democracias ocidentais à luta contra o comunismo deu aos grupos neofascistas uma maior liberdade para agir. Durante este período, o MSI optou por uma estratégia legal e mais moderada para tentar conquistar o poder e houve uma melhoria nas relações entre este partido e o regime espanhol. Entretanto, a redefinição do conceito de «Europa» como um lugar de civilização na luta contra o comunismo levou às primeiras tentativas para internacionalizar a rede (tais como o encontro em Malmö, em 1951, e subsequente criação do Movimento Social Europeu).

Os dois capítulos finais lidam com o período de radicalização nos anos 1960 e 1970, radicalização essa que ficou a dever-se sobretudo a grupos como o Ordine Nuovo, que surgiu de uma fação que se separou do MSI, e a Avanguardia Nazionale. A análise deste período é particularmente relevante, uma vez que pode esclarecer alguns aspetos sobre um período de violência política e ataques terroristas que têm implicações políticas e sociais até os dias de hoje. Contudo, no contexto dos estudos sobre o fascismo transnacional, o maior contributo deste livro é o de ajudar a compreender que a rede, e especialmente os laços entre Espanha e Itália, desempenharam um papel importante nesta onda de terrorismo. Quatro ataques terroristas em Espanha e Itália (o ataque na Piazza Fontana, em 1969; na Piazza dela Loggia, em 1974; e os massacres de Montejurra e Atocha, que tiveram lugar em 1976 e 1977, respetivamente) surgem-nos como ações que fizeram parte de um movimento radicalizado de dimensão internacional, e que era composto por diferentes grupos que cooperavam entre si com estratégias e objetivos comuns.

 

OBSERVAÇÕES FINAIS: A ABORDAGEM TRANSNACIONAL PARA ALÉM DA REDE HISPANO-ITALIANA

A leitura deste livro é bastante útil para desconstruir a ideia de que a ideologia fascista apenas pode ser entendida no contexto nacional. De acordo com uma obra recente de Arnd Bauerkamper e Grzegorz Rossolinski-Liebe, a abordagem transnacional da ideologia fascista inclui «comparative studies as well as investigations of transfers, exchanges, and even entanglements», um vez que «leaders as well as minor functionaries (…) met on innumerable occasions and different levels, not only to exchange views on ideological questions and policies, but also to communicate on political styles and representations»2. Um dos pontos de maior interesse do livro de Albanese e Del Hierro é precisamente a sua capacidade de destacar estes processos de troca de ideias em três diferentes níveis de análise: indivíduos, organizações e aparelhos estatais. Sem esquecer as personalidades relevantes, os autores vão além do nível individual e abordam a rede transnacional em toda a sua complexidade e dinamismo, incluindo o envolvimento dos regimes italiano e espanhol. Como referem, esta abordagem multifacetada «helps to establish a better grasp on the extent, dynamics and mechanisms of particular transnational connections, and highlights the entanglement and mutual constitution of cultures and societies in a more general sense» (p. 7).

Ademais, é importante referir que, graças a este foco na rede, é possível formar uma visão mais esclarecida a propósito do neofascismo e da forma como os grupos de extrema-direita se desenvolveram depois da guerra. Uma vez que muitos autores permanecem céticos em relação à existência de movimentos e partidos neofascistas, esta abordagem é útil para esclarecer algumas questões e ajudar a compreender que a reconstrução da rede efetivamente representou uma continuação da ideologia fascista, ainda qua sob novas roupagens. Por último, refira-se que esta abordagem transnacional leva sempre em conta o contexto internacional no qual a rede se desenvolveu e a forma como ela se reconfigurou de acordo com o ambiente da época.

Esta perspetiva transnacional não é, por certo, suficiente para compreender todos os aspetos da ideologia fascista (como, de resto, os próprios autores reconhecem), e o crescente interesse pelo fascismo internacional não deve levar a que os investigadores adotem a abordagem oposta, menosprezando o hipernacionalismo e a importância dos contextos nacionais no desenvolvimento dos movimentos e regimes. Contudo, há ainda muito por explorar a respeito das interações entre fascistas a nível internacional. Assim, um dos pontos mais importantes deste livro é a sua capacidade de inspirar e motivar novos estudos que se foquem nos diferentes laços da rede fascista, antes e depois da Segunda Guerra Mundial: por exemplo, as relações entre a Alemanha nazi e Guarda de Ferro romena. Ademais, a importância da Guerra Civil Espanhola poderia ser também abordada sob uma perspetiva transnacional, pois o conflito acabou por tornar-se um ponto de encontro para militantes de diversas nacionalidades. Seria interessante estudar a troca de ideias e os canais de comunicação então construídos numa análise multifacetada que também incluísse indivíduos, organizações e aparelhos estatais. Novos estudos que usem a abordagem transnacional certamente trarão descobertas de interesse para os estudos sobre o fascismo. 

 

BIBLIOGRAFIA

BAUERKÄMPER, Arnd, e ROSSOLINSKI-LIEBE, Grzegorz – Fascism without Borders: Transnational Connections and Cooperation between Movements and Regimes in Europe from 1918 to 1945. Nova York: Berghahn Books, 2017. isbn-10: 1785334689

PAYNE, Stanley – A History of Fascism: 1914-1945. Madison: University of Wisconsin, 1995. ISBN 0-203-50132-2.

 

NOTAS

1 PAYNE, Stanley – A History of Fascism: 1914-1945. Madison: University of Wisconsin, 1995, p. 228.

2 BAUERKÄMPER, Arnd, e ROSSOLINSKI-LIEBE, Grzegorz – Fascism without Borders: Transnational Connections and Cooperation between Movements and Regimes in Europe from 1918 to 1945. Nova York: Berghahn Books, 2017, p. 2.

 

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