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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.56 Lisboa dez. 2017

https://doi.org/10.23906/ri2017.56r03 

RECENSÃO

O fim da vaca sagrada

 

Carlos Alves

IPRI-NOVA, Rua de D. Estefânia, 195, 5.º Dt.º, 1000-155 Lisboa | carlosmjalves@gmail.com

 

JASON BRENNAN, Contra a Democracia, Lisboa, Gradiva, 2017, 384 páginas. ISBN: 978-989-616-762-2

 

BRENNAN, O ADVOGADO DO DIABO

Against Democracy (301 páginas), de Jason Brennan, edição da Princeton University Press (2016), surge traduzido e editado pela Gradiva, na sua coleção Filosofia Aberta. Duas perguntas sobressaem:

– Podem as democracias funcionar tendo à sua disposição cidadãos politicamente desinformados?

– Estaríamos melhor com um governo não democrático?

A índole provocatória do título evita surpresas, uma vez que Brennan efetua uma dessacralização de um sistema que tem tido campeões suficientes para o defender e é entendido como o único que permite um governo justo: a democracia.

Questiona-se o valor intrínseco e até simbólico da democracia, sendo que ao não encontrarmos aí a sua fundamentação ela somente se justificaria se produzisse os melhores resultados no que à organização social concerne.

Há um consenso na atualidade em torno da democracia ao contrário da monarquia, que legitima per se a democracia. Vivemos sob os alvores do que Brennan classifica de triunfalismo democrático: o entendimento de que a democracia e a participação política generalizada são valiosas.

Autoproclama-se, por isso, advogado do diabo em relação à mimada democracia em virtude da sua insatisfação com a teoria filosófica democrática (p. 7) face ao entusiasmo dos filósofos e teóricos políticos, inebriados pelos estimulantes argumentos simbólicos louvando-a.

 

DEMOCRACIA: UM BECO COM SAÍDA?

Conscientes que o histórico dos que chegaram democraticamente ao poder vai de Hitler a Trump e das cedências face ao aríete económico e da partidocracia, como devemos valorar a democracia?

Para Brennan, «a democracia não é uma forma única ou intrinsecamente justa de governo» (p. 20), antes um meio para um fim e não um fim em si mesmo. Não é intrinsecamente justa, não sendo justificada em bases procedimentalistas («o procedimentalismo é a tese de que alguma forma (ou formas) de distribuir poder ou de tomar decisões é intrinsecamente boa, justa ou legítima», p. 25) o seu valor é puramente instrumental («o instrumentalismo no que diz respeito à distribuição do poder é a tese de que há respostas corretas independentemente do procedimento», pp. 26-27) (p. 28).

Instintivamente fechamos os olhos e escutamos Winston Churchill, na Câmara dos Comuns, em 11 de novembro de 1947, a afirmar: «A democracia é a pior forma de governo, à exceção de todos os outros já experimentados ao longo da história.»

Contra a Democracia desenvolve um ataque ao estatuto de vaca sagrada intocável da democracia. Não será a pior forma de governo considerando a epistocracia?

Pensamos, automaticamente, em Platão e na sua República. Brennan afirma, porém, que «a defesa da epistocracia não está dependente das esperanças num rei-filósofo ou numa classe protetora» (p. 29).

Mas, porquê a epistocracia em detrimento da democracia? Porque contrapõe ao governo do povo (demo + kratia) o governo dos mais sábios (epistême + kratia)?

A convicção de que os cidadãos nas democracias tem pouco ou nenhum poder em termos de tomada de decisões coletivas, o que os desencoraja de tentarem estar melhor informados sobre assuntos de interesse coletivo.

A democracia incentiva os votantes a permanecerem ignorantes e irracionais. O que dizer da sobrevalorizada participação política quando o empenho político tende a corromper em vez de edificar (p. 109)?

A posição de Brennan surge instigada por uma versão da teoria de Anthony Downs caracterizada pela assunção de que face à diminuta possibilidade de ter impacto no resultado das eleições, os cidadãos possuem pouco incentivo para procurarem estar melhor informados sobre política porque o valor deste tipo de conhecimento é menorizado.

Três espécies de cidadãos democráticos são apresentados como tipos ideais ou arquétipos conceptuais (pp. 14-18): hobbits (figura fictícia, remetendo para o universo de Tolkien), hooligans (remetendo para o universo desportivo) e vulcanos (remetendo para o universo Star Trek).

Os hobbits «são sobretudo apáticos e ignorantes quanto à política» (p. 15), possuindo «um conhecimento superficial do que é relevante no mundo ou na história dos seus países», o típico não votante americano (p. 16); os hooligans «são os fanáticos desportivos da política» (p. 16), autocentrados nas suas posições, consumindo tendenciosamente informação que as confirme e desprezando quem discorde de si: «a maior parte dos votantes regulares, das pessoas com atividade política, dos ativistas propriamente ditos, dos membros dos partidos e dos políticos» (p. 16); e vulcanos, que se interessam por política, pensando-a científica e racionalmente e que são imparciais e com espírito de abertura (p. 17).

Muitos de nós não são hobbits nem hooligans, e a maioria dos hobbits são hooligans potenciais, pelo que estaríamos todos melhor se nos mantivéssemos afastados da política (p. 18). Brennan defende que para a maioria, a liberdade política e a participação são globalmente prejudiciais (p. 18), uma vez que a democracia como um todo age como se as pessoas fossem vulcanos, ainda que a maior parte dos votantes seja hobbit e hooligan (p. 82).

Consequentemente, segundo Brennan, «os votantes são maioritariamente ignorantes, irracionais e desinformados, mas simpáticos» (p. 241).

A visão de Brennan explicaria os hobbits, sendo que os hooligans, em certa medida razoavelmente informados, são compreensíveis num horizonte de tribalismo.

Sugere, também, que os cidadãos desenvolvem os seus pontos de vista políticos de forma irresponsável e sem contemplação pela opinião dos outros.

Por que razão atribuir, então, a todos o direito de votar?, questiona-se. Deverá o voto de um hobbit e de um hooligan valer tanto como o de um vulcano?

Outras possibilidades mais viáveis para escolher governos mais competentes são comentadas: a credenciação aleatória (que pretende criar votantes mais competentes com base numa lotaria que seleciona um subconjunto aleatório mas representativo de cidadãos), o sufrágio universal com veto epistocrático, o sufrágio restrito e a votação plural (pp. 298-306).

Apesar de questionar a work ethics das democracias, reconhece que estas têm melhor desempenho do que seria expectável, considerando o grau de desinteresse e irracionalidade dos votantes (p. 243) e que maioritariamente tendem a tomar decisões razoavelmente boas, comparativamente às ditaduras, oligarquias, monarquias e regimes de partido único (p. 277). Talvez sejam competentes numas coisas e incompetentes noutras (p. 279).

Todavia, o quid pro quo que mantém a democracia nas boas graças por troca com o suposto empoderamento dos cidadãos falha, segundo Brennan. Embora conceda a cada cidadão uma parte igual de direitos políticos fundamentais, esta é reduzida (p. 158), retirando poder aos indivíduos e proporcionando-o à maioria do momento. Consequentemente, os cidadãos individuais quase não têm poder (p. 159).

A nossa intuição de que a democracia nos dá poder é ilusória ou, pelo menos, falaciosa (falácia da divisão).

Ora, «uma epistocracia tenta distribuir o poder de acordo com a perícia geral» (p. 309), sendo que o princípio da competência pode segundo Brennan ser exposto sob a forma: «Poder: use-o bem ou perca-o» (p. 312).

A contrapartida da participação política, também, não é valiosa para a maioria das pessoas, transformando-nos em inimigos de outros cidadãos (p. 19). Uma das características repugnantes da democracia é transformar os concidadãos em ameaças ao bem-estar, exercendo poder de formas arriscadas e incompetentes, tornando-se inimigos cívicos (p. 339).

Há uma circularidade implícita que se inicia e termina nos cidadãos (eleitores), sendo que Brennan tem uma conceção negativa da cidadania. A qualidade dos governos democráticos tem como condição necessária a qualidade dos seus eleitores, o que torna a democracia um regime exigente do ponto de vista do exercício da cidadania. A alternativa, segundo Brennan: a epistocracia. O que pensar? Para Brennan, afirmar «vamos tentar a epistocracia!» devia implicar a concordância ou, pelo menos, a não oposição dependendo se consideramos que os factos sustentam ou não essa possibilidade (p. 283). Porém, admite que é difícil saber se a epistocracia seria melhor uma vez que nunca foi experimentada (p. 287). Na verdade1 , já houve sociedades com laivos epistocráticos (União Soviética e satélites e a República Popular da China), com as elites governantes clamando o melhor entendimento dos interesses dos membros da sociedade, dedicando-se ao bem-estar da população. Os resultados são conhecidos e ficam à consideração.

Brennan tem, porventura, um discurso predatório sobre a democracia, vítima ferida, não mortalmente, por descontentamentos e desconfianças, na preferência.

Paladino da epistocracia, descreve de uma forma simplista e pouco abrangente a participação política democrática cidadã. Reduz os cidadãos a meros eleitores, estabelecendo uma classificação redutora do eleitorado: maioritariamente desinformado.

A aposta epistocrática de Brennan arrisca uma construção da sociedade baseada, unicamente, num contributo minoritário, travando a colaboração (mesmo que potencial) democrática de todos. De um ponto de vista da representatividade, seria a distribuição de poder efetuada pela epistocracia socialmente representativa? Não conduziria ao não reconhecimento pelos cidadãos (mais do que na democracia)? O debate público não fica comprometido, restringido a uma discussão de especialistas de que estaria excluída a generalidade da população?

A microconceção que associa a democracia a sociedades não bem-sucedidas de Brennan é tão problemática quanto o abandono da democracia por troca com a epistocracia, enquanto sistema de distribuição do poder político capaz de ultrapassar as insuficiências da democracia. Fica por provar que o conhecimento (dos sábios) é uma condição suficiente para a tomada de melhores decisões no que ao poder respeita.

A verdade é que as sociedades democráticas são razoavelmente competentes e por comparação bem-sucedidas e não violentas, sucesso que não pode ser, meramente, atribuído às elites. Para além, da preocupação vantajosa das democracias ante os mais vulneráveis.

Discórdias e críticas são inevitáveis e, eventualmente, desconforto nos que entendem a democracia como um bem precioso. Pior a emenda do que o soneto?

Ironicamente, é a idiossincrasia da democracia que possibilita uma obra como esta, sendo a crítica e a contestação que suscitam o aperfeiçoamento do funcionamento democrático.

Uma leitura maniqueísta de a favor ou contra a democracia a favor ou contra a posição de Brennan, entendendo-o como mero detrator desta, é desaconselhável.

 

NOTA

1 Cf. recensão de Thomas Christiano em Notre Dame Philosophical Reviews. 19 de maio de 2017. (Consultado em: 17 de julho de 2017). Disponível em: http://ndpr.nd.edu/news/against-democracy/.

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