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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.55 Lisboa set. 2017

https://doi.org/10.23906/ri2017.55r03 

RECENSÃO

Democracia fora da Europa

 

António Dias

Doutorando em Ciência Política na FCSH-NOVA e investigador do IPRI-NOVA.

 

Nancy Bermeo e Deborah J. Yashar (Eds.), Parties, Movements, and Democracy in the Developing World, Nova York: Cambridge University Press, 2016, 227 páginas.

 

Esta obra editada por Nancy Bermeo e Deborah Yashar tem como principal objetivo o de tentar resolver um puzzle: como podemos compreender os processos de democratização, alguns deles criando regimes duradouros, que ocorreram em países em desenvolvimento? A importância deste puzzle surge pela erosão, documentada na introdução pelas autoras, de uma das teses centrais da ciência política – que fazia depender a democracia do desenvolvimento económico do país – e também pela multiplicação de exemplos de países nos quais os processos de transição democrática não surgiram como corolário da luta e de configurações de classes definidas pela sua posição económica.

Um dos pontos mais interessantes desta obra é precisamente a escolha de casos de estudo, que engloba a América Latina, o Sul e Sudeste Asiático, a África e o Médio Oriente. Uma escolha justificada, não apenas pela menor atenção dada a exemplos de sucesso democrático nestas latitudes (entre os quais apenas os países latino-americanos têm sido frequentemente estudados), mas sobretudo pela importância teórica destes casos. Ou seja, é precisamente nestes casos de «democracias improváveis»1 que podemos encontrar os fatores que explicam o sucesso de transições democráticas.

 

PARA ALÉM DE CLASSES SOCIAIS

Bermeo e Yashar identificam no capítulo inicial a peça essencial deste puzzle: os partidos e movimentos sociais, atores centrais nas transições políticas em espaço não europeu. A existência, ainda em período autoritário, de diferentes tipos de grupos sociais organizados – estudantes, ONG, desempregados, religiosos, de género, bem como de partidos e sindicatos – surge como um fator central para a queda de regimes autoritários. São estes que frequentemente protestam e manifestam-se, desvendando o lado repressivo do regime mas também as suas falibilidades. Se o ímpeto para a queda da ordem autoritária está do lado destes movimentos, estes depois necessitam dos partidos políticos para coordenar, negociar e desenhar as transições de regime; para participar nas eleições inaugurais e garantirem um terreno de jogo competitivo; bem como para fomentarem o apoio das diferentes instituições democráticas entre os cidadãos. Assim, segunda as autoras, movimentos sociais e partidos políticos desempenham papéis que se complementam nas transições bem-sucedidas.

A novidade deste argumento reside na distinção entre movimentos sociais e classes sociais. Se na Europa Ocidental foram os atores de classe, aliados a partidos que os representavam, os promotores da democracia, fora deste contexto as identidades de classe não surgem necessariamente como as mais relevantes no campo político. As clivagens salientes nos países em desenvolvimento não foram tanto determinadas pela divisão entre trabalho e capital, mas antes por uma miríade de fatores, incluindo o legado colonial, o regime autoritário. Assim sendo, as clivagens nas quais os movimentos sociais assentam e que os partidos pretendem representar, devem ser compreendidas como produto de uma interação histórica específica – seguindo a «viragem histórica» proposta por Cappocia e Zibblatt2 – e não produto de um determinismo material. Os próprios processos de mobilização e competição entre diferentes grupos determinam que clivagens são salientes e ativadas politicamente.

Este olhar para as democracias improváveis permite também identificar um outro fator importante a ter em conta: a influência internacional. A experiência colonial e a posição economicamente dependente destes países, faz com que o contexto internacional assuma uma maior importância nestes casos. Mas este fator não se resume a uma questão de segurança entre diferentes potências globais, ou a capacidade de estas potências pressionarem politicamente estes regimes para a mudança. Inclui também um outro nível de jogo no qual os movimentos sociais e partidos políticos podem atuar e procurar recursos. Ou seja, estes processos de transição são afetados tanto pelos antecedentes políticos como pelo contexto internacional.

Partindo deste enquadramento teórico, cinco capítulos escritos por diversos autores apresentam os diferentes casos de estudo, regionalmente organizados. No primeiro destes capítulos, Maya Tudor e Dan Slater olham para as democracias atuais da Indonésia e da Índia e tentam explicar as diferenças nas trajetórias políticas destes países. Os autores argumentam que a diferente força dos partidos independentistas, que surgiram ainda antes da descolonização, explica a maior durabilidade da democracia indiana quando comparada com o percurso mais acidentado e autoritário indonésio. Além disso, responsabilizam o sucesso de uma ideologia mais inclusiva no caso indiano, pela capacidade de as forças democráticas terem conseguido forjar maiorias nos momentos de maior crise do regime. No caso indonésio, a falência de uma ideologia deste tipo abriu espaço para uma perseguição anticomunista alimentada pelo contexto internacional de Guerra Fria, o que facilitaria a sobrevivência do regime autoritário.

No segundo capítulo, Erik Kuhonta argumenta que as diferenças entre os casos de Singapura (regime autoritário com um sistema de partidos forte), Filipinas (democracia com um sistema partidário fraco) e Tailândia (autoritarismo com uma fraca institucionalização partidária) podem ser explicadas pelos processos de ativação política das clivagens sociais existentes. Nomeadamente, a maior institucionalização partidária deriva de uma disputa política mais acentuada e baseada em clivagens sociais existentes, como no caso de Singapura. Esta maior institucionalização é responsável por uma maior capacidade de representação e legitimidade política, o que explica o sucesso do regime autoritário neste país. Por outro lado, casos onde a disputa política não foi baseada em clivagens sociais, irão desenvolver partidos menos institucionalizados, que irão ser menos eficientes na resposta às populações, quer sejam democracias ou ditaduras.

No capítulo seguinte, Kenneth Roberts avalia o desempenho dos regimes democráticos da América Latina3 e discute como as trajetórias do desenvolvimento dos partidos, movimentos e clivagens sociais explicam este desempenho. Nomeadamente, as condições em que se deram as duas liberalizações – primeiro política na década de 1980 e económica na década seguinte – determinam o caminho destes países. Quando estas liberalizações criaram uma competição forte entre um partido sucessor do autoritarismo e partidos de esquerda – competição baseada numa clara clivagem entre esquerda e direita – os regimes resultantes serão de pluralismo institucionalizado (e.g., Brasil). Por outro lado, quando a competição entre o partido sucessor forte e a oposição não se faz baseada nesta clivagem esquerda-direita, os regimes tendem para um restauro da oligarquia, com golpes para remover executivos indesejados (e.g., Paraguai). No caso em que o partido sucessor for fraco, encontramos um desalinhamento partidário em relação às clivagens sociais, fortes protestos e uma tendência para movimentos de soberania popular (e.g., Bolívia).

Rachel Riedl analisa a democratização na África Subsariana e argumenta que o que determina o sucesso das transições democráticas nesta região é uma combinação entre os legados partidários autoritários e as ameaças à segurança desses regimes. Assim, existem duas trajetórias para a democracia, ambas definidas pela ausência de ameaças à segurança das elites incumbentes: ou uma liberalização pautada por um partido sucessor autoritário mais forte, que origina uma democracia eleitoral estável (e.g., Gana); ou uma democratização mais rápida precipitada pela implosão do partido autoritário que origina uma democracia mais volátil (e.g., Zâmbia). Nos casos em que no momento de transição exista uma ameaça clara às elites no poder, dois cenários são possíveis: ou um regime autoritário estável (e.g., Uganda) com um partido autoritário forte; ou instabilidade no regime nos casos em que o partido autoritário for mais fraco (e.g., Mali).

O último dos estudos de caso, da autoria de Ellen Lust e David Waldner, olha para os desafios políticos do Norte de África e Médio Oriente e a variação dos resultados das transições nessa região. Os autores argumentam que esta variação é explicada pela forma como os regimes autoritários anteriores lidaram com partidos de oposição e movimentos sociais. Nos casos em que o regime autoritário tentou incluir a oposição, permitindo partidos leais de oposição, mas foi intolerante em relação a movimentos sociais, o sistema partidário que resultou na transição foi heterogéneo mas equilibrado, combinação que permite uma transição bem-sucedida (e.g., Tunísia). Um regime autoritário inclusivo em relação à oposição e tolerante com os movimentos sociais, originaria um sistema partidário heterogéneo mas desequilibrado e pouco propício ao sucesso democrático (e.g., Egito). Finalmente, regimes autoritários intolerantes com os movimentos sociais e que tentavam ser hegemónicos em relação à oposição ou excluí-la, originaram sistemas partidários homogéneos étnicos (e.g., Iraque) ou tribais (e.g., Líbia).

No conjunto, os estudos apresentados estão bem documentados e oferecem argumentos pertinentes para os interessados nos casos em particular. Infelizmente, como é comum neste tipo de obras compiladas, nem todas as pistas que apresentam são congruentes entre si ou muito ilustrativas de aspetos do argumento central do livro. Por exemplo, enquanto que partidos autoritários fortes são um fator positivo para a estabilidade democrática na África Subsariana e na América Latina, não o são na África do Norte e no Médio Oriente. Por outro lado, o caso tunisino é difícil de enquadrar nas expectativas gerais do livro, pois aqui a repressão dos movimentos sociais é vista como positiva para o sucesso democrático. Fora estes casos pontuais, no geral, todos os estudos corroboram o argumento principal do livro.

 

REGRESSO AOS CLÁSSICOS

Na conclusão, e baseando-se nos estudos de caso, Bermeo e Yanshar revalidam a sua tese central: partidos e movimentos sociais são atores essenciais para democratizar um país e sustentar uma democracia. Mais importante ainda, só poderemos compreender a sua atuação, força e capacidade organizativa se tivermos em consideração o contexto histórico no qual estes atores se foram desenvolvendo – o legado autoritário é diretamente abordado na maioria dos casos de estudo – e o processo histórico de construção e ativação política de clivagens sociais.

Ao fazê-lo, as editoras desafiam-nos a reavaliar a importância das classes sociais nos processos de democratização na Europa Ocidental. Nunca negando a importância dos atores e organizações de classe neste processo, duvidam que seja a clivagem que estes representam que seja o principal fator explicativo. Devemos então reavaliar este argumento clássico, olhando para estes atores enquanto movimentos sociais e partidos que representam uma determinada clivagem social, relevante devido à conjuntura histórica contextual. Nesta perspetiva, mais do que o desenvolvimento económico em si, o que explica o sucesso democrático são constelações de clivagens sociais, partidos e movimentos, determinadas pelo ritmo e por processos históricos. E como Bemeo e Yashar apontam, talvez esta seja uma leitura mais próxima daquela que nos seus textos fundamentais Lipset4, Rokkan5 e Michels6 nos deixaram. No final, fica uma afirmação clara: os mecanismos são importantes. 

 

NOTAS

1 «Democracies against the odds», no original.

2 CAPOCCIA, Giovanni, e ZIBLATT, Daniel – «The historical turn in democratization studies: a new research agenda for Europe and beyond». In Comparative Political Studies. Vol. 43, N.º 8-9, 2010, pp. 931-968, DOI:10.1177/0010414010370431.

3 Uma vez que, como o autor admite, «Democracy is the only game in town».

4 LIPSET, Martin Seymour – Political Man. Londres: Mercury Books, 1963.

5 LIPSET, Martin Seymour, e ROKKAN, Stein – «Estruturas de clivagem, sistemas partidários e alinhamentos de eleitores». In Consenso e Conflito. Lisboa: Gradiva, 1992, pp. 161-259.

6 MICHELS, Robert – Para uma Sociologia dos Partidos Políticos na Democracia Moderna. Lisboa: Antígona, 2001.

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