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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.54 Lisboa jun. 2017

https://doi.org/https://doi.org/10.23906/ri2017.54r03 

RECENSÃO

 

As negociações assimétricas: Portugal, China e Macau

 

Moisés Silva Fernandes

Investigador e professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Autor de Confluência de Interesses: Macau nas Relações Luso-Chinesas Contemporâneas, 1945-2005 (Instituto Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros e Centro Científico e Cultural de Macau, 2008) entre outras obras, artigos e recensões críticas em português, inglês e chinês.

 

JOÃO DE DEUS RAMOS, Em Torno da China – Memórias Diplomáticas. Casal de Cambra, Caleidoscópio, 2016, 160 páginas.

 

Estamos perante um exemplar testemunho do que devem ser as «memórias diplomáticas» por parte de um «executor» da política externa portuguesa, nos últimos 25 anos, João de Deus Ramos. O autor destas memórias esteve na abertura da Embaixada de Portugal em Pequim, como encarregado de Negócios, em 1979, contando até um curioso incidente de percurso. Quando estava a partir do Aeroporto da Portela, apareceu, vindo do Ministério dos Negócios Estrangeiros, o primeiro-secretário Vasco Valente com a Carta de Gabinete, para ser entregue ao ministro chinês dos Negócios Estrangeiros, Huang Hua. Porém, em vez da forma correta «People’s Republic of China», o documento usava a designação incorreta “Popular Republic of China».

Efetivamente, Portugal esteve cerca de 30 anos de relações cortadas com a República Popular da China, entre 1 de outubro de 1949 e 8 de fevereiro de 1979. Esta situação deixou os vários governadores de Macau sempre muito inquietos quanto à questão da China continental, porque envolvia entendimentos com Guangzhou, a capital da província de Guangdong, e várias vezes com Pequim. Durante este tempo, o regime de António de Oliveira Salazar e de Marcello Caetano reconheceu o Governo da República da China (Formosa/Taiwan), entre 1949 e 1974, num período marcado por uma grande proximidade político-ideológica dos dois regimes, tidos como autoritários de extrema-direita, mas com relações diplomáticas extremamente conflituosas por causa de Macau, devido à China continental.

A primeira vez que João de Deus Ramos esteve com Deng Xiaoping foi quando o governador de Macau, Melo Egídio, foi a Pequim, em março de 1980. Durante as conversações, o timoneiro chinês disse aos seus convidados portugueses «que não nos preocupássemos, nem nós nem os habitantes de Macau, em relação ao futuro» (p. 62). Parecia, que tudo estava bem; mas não para João de Deus Ramos e uns outros, que pareciam estar em minoria.

Regressado de Pequim, chegou ao Palácio das Necessidades, sede do Ministério dos Negócios Estrangeiros, para assumir a chefia da repartição dos Assuntos da África, Ásia e Oceânia. Porque estava a decorrer a visita da primeiro-ministro do Reino Unido, Margaret Thatcher, a Pequim, João de Deus Ramos começou a preparar uma «Informação de Serviço», de 22 páginas, sobre Macau, que apresentou aos seus superiores em fevereiro de 1983.

«Mas o pensamento entre nós, quer das instâncias oficiais quer nas pessoas em geral, era apoiado na ideia de que Macau era diferente de Hong Kong, o seu passado histórico também e que isso implicaria, por parte da China, soluções diferentes. Parecia-me, a mim e a alguns outros, que não era bem assim» (p. 72).

Entretanto, foi necessário que o embaixador das Nações Unidas, Rui Medina, viesse a Lisboa para chefiar as negociações sino-portuguesas. Agora os decisores políticos portugueses tinham que nomear os seus representantes. Assim, o primeiro-ministro, Cavaco Silva, nomeou José Henriques de Jesus, que já tinha sido secretário-adjunto para a Coordenação Económica da Administração de Macau, entre 1979 e 1981. Por sua vez, o Ministério dos Negócios Estrangeiros, designou João de Deus Ramos, que tinha sido escolhido pelo embaixador Rui Medina. E, finalmente, o Presidente da República, Mário Soares, nomeou Carlos Gaspar, um assessor político, cuja opinião se tornou irrefutável «em todas as questões de fundo, estratégicas e táticas, e na orientação das opções políticas no processo negocial. Vou mesmo ao ponto de afirmar – e como dizem os fadistas, “sem desprimor para os presentes” – que foi a charneira da Declaração Conjunta; sem ele, não teria sido a mesma» (p. 79).

Porém, quando João de Deus Ramos passa a delegado, afirma que «(j)á várias vezes aludi à falta de habituação, de traquejo, de conhecimentos entre nós sobre as coisas da China, referindo-me, claro, ao presente, não ao passado histórico» (p. 62). E isso também se passou na equipa de intérpretes que o governo central português teve de recrutar na administração portuguesa de Macau e que por «serem de língua-mãe chinesa, sim, mas cantonense, distinta do mandarim, e por não terem especialização em terminologia de Ciência Política ou Direito, levou a que com naturalidade – e sem rivalidade – o lado chinês através do Senhor Wang (Xian), prevalecesse, por melhor preparação técnica específica, por a língua materna ser mandarim, e por estar em posição de melhor interpretar o sentido e as nuances do que Zhou Nan dizia» (pp. 77-78).

Entretanto, antes, durante e após as reuniões plenárias, a delegação portuguesa teve de se reunir no Hotel da Grande Muralha em Pequim e, porque havia as supostas escutas dos chineses, «(n)ão sabíamos, nem nunca viemos a saber se assim era ou não, mas na dúvida, ligávamos os ares condicionados e as ventoinhas ao máximo, e no meio do barulho falávamos depressa, usando algum vernáculo, procurávamos não ser ostensivos nem demasiado claros; isto dava por vezes alguns mal-entendidos cómicos (…) Se havia escutas, coitados dos intérpretes chineses que tivessem de as decifrar» (p. 81).

A primeira reunião plenária foi no dia 30 de junho de 1986, da parte da manhã. «O chefe da delegação chinesa, o vice-ministro Zhou Nan, a fumar continuamente, a fazer um show para os jornalistas, falando em chinês, recitando poesia chinesa, com um sorriso triunfante e levemente irritante» (p. 81). A seguir a delegação portuguesa afirmou que iriam ter lugar estas negociações assimétricas, atendendo a que Portugal era uma potência menor, enquanto a China continental era uma grande potência. Os chineses asseveraram que nunca tiveram esse objetivo, mas mais tarde vai-se ver que os delegados chineses vão abjurar esta promessa. No dia seguinte, os chineses entregaram o plano da redação do corpo da declaração conjunta sino-portuguesa, tendo ficado para a próxima reunião plenária os projetos dos anexos, isto é, a nacionalidade. A delegação portuguesa sabia que o Partido Comunista Chinês iria ter o 13.º Congresso Nacional no outono do próximo ano e, certamente, pretendia apresentar o caso Macau como concluído. «Embora Portugal muitas vezes se comporte como país pequeno, fraco e medíocre, por vezes assume as suas “horas de glória” e comporta-se com coesão, determinação e competência» (p. 83). Na segunda reunião plenária, de 9 e 10 de setembro de 1986, entregaram-nos as propostas dos anexos i e ii, sobre a nacionalidade. «Tornou-se claro que as propostas chinesas eram inadequadas, não se salvaguardam devidamente as especificidades de território de Macau e das suas populações» (p. 85).

A partir da terceira reunião plenária, de 21 e 22 de outubro, o autor marca a diferença referindo que «(f)oi uma reunião tensa, em que o lado português apresentou os seus comentários às propostas chinesas de projeto da Declaração Conjunta e dos dois Anexos» (p. 86). Como não se registavam progressos nas negociações, Zhou Nan veio a Lisboa, em novembro, e chegou «a acenar com o espectro da unilateralidade na definição dos destinos de Macau» (p. 88). Isto foi para os decisores políticos um cataclismo, pois tinham proposto a integração da China continental no ano de 2003, quando se comemoram 450 anos da administração de Macau; ou 2013, quando fazia 500 anos que o navegador Jorge Álvares chegou à China; ou até 2057, quando a administração portuguesa completava o quinto centenário sobre o enclave, embora alguns soubessem, uma minoria, que a data correta era 20 de novembro de 1555, quando pela primeira vez há notícia de uma carta escrita de Macau a Goa.

Na reunião do Grupo de Trabalho, entre 8 e 12 de dezembro de 1986, refere o autor: «disseram-se coisas duras de parte a parte, que não me recordo de jamais terem sido ditas em qualquer outra ocasião do processo negocial» (p. 89). Na noite do dia 7 de dezembro, Zhou Nan convidou os membros da delegação portuguesa para um jantar. Zhou Nan referiu-se ao ministro dos Negócios Estrangeiros, Pires de Miranda, «em termos agrestes e explícitos, pairando sempre nas entrelinhas o espectro da unilateralidade na definição dos destinos de Macau» (p. 90). A seguir veio o primeiro-ministro, Cavaco Silva, e foi pelo mesmo diapasão. A certa altura, se o Presidente da República fosse atacado da mesma forma «eu teria que me levantar e ir-me embora. É situação que qualquer diplomata espera ardentemente nunca lhe aconteça na vida» (p. 90). Todavia, Zhou Nan sabia que não poderia ir na mesma contra o Presidente da República. E assim foi mais diplomático com Mário Soares: «com enorme alívio dei-me conta que não tinha que me levantar e sair» (Ibidem).

Com isto tudo, os três delegados passaram a ter reuniões diretas com o ministro dos Negócios Estrangeiros, Pires de Miranda, «por vezes de algumas horas» (p. 92), quando vinham a Lisboa. Quando qualquer dos delegados precisasse de discutir mais os assuntos, ele poderia contactá-lo diretamente por telefone. Esta atitude por parte do ministro deu muita segurança e auxílio aos delegados portugueses.

Entretanto, a Declaração Conjunta Sino-Portuguesa sobre a Questão de Macau foi alvo de trade-off entre o embaixador Rui Medina e o vice-ministro chinês dos Negócios Estrangeiros, Zhou Nan. Finalmente, esta foi assinada pelos dois primeiros-ministros Cavaco Silva e Zhao Zhiyang, no Grande Palácio do Povo, no dia 13 de abril de 1987.

Resta-nos instar Carlos Gaspar e José Henriques de Jesus a que publiquem os seus apontamentos, para que possamos analisar com maior profundidade, diversidade e riqueza as políticas externas comparadas de dois países com assimetrias profundas, a China, uma grande potência em afirmação, e Portugal, uma pequena potência, mas que alcançaram um entendimento sobre Macau.

 

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