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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.54 Lisboa jun. 2017

https://doi.org/doi.org/10.23906/ri2017.54a06 

O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL EM ÁFRICA

Jean-Pierre Bemba Gombo vs o procurador: Jogo de espelhos no TPI

Jean-Pierre Bemba Gombo vs the prosecutor: mirror game in the International Criminal Court

 

Filomena Capela

Doutoranda em Estudos Africanos no ISCTE-IUL. Anteriormente trabalhou como especialista em floresta tropical, sustentabilidade e responsabilidade social na República Democrática do Congo.

 

RESUMO

Este artigo procura apresentar o caso Jean-Pierre Bemba – líder do Movimento de Libertação do Congo (MLC), condenado pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) a 18 anos de prisão pelo envolvimento do seu exército no conflito na República Centro-Africana – na forma como foi construído pelo TPI, confrontando esta narrativa com outras visões que sustentam que o processo teve essencialmente motivações políticas. Procuraremos, ainda, contextualizar a ação do líder do MLC nos conflitos recorrentes na região dos Grandes Lagos e seguir algumas das ligações que precederam este processo mas que podem ajudar a compreender as posições assumidas pelos diferentes intervenientes.

Palavras-chave: Tribunal Penal Internacional, Jean-Pierre Bemba, República Centro-Africana, República Democrática do Congo.

 

ABSTRACT

This article seeks to present the case of Jean-Pierre Bemba – the charismatic leader of the Movement for the Liberation of the Congo (MLC), who has been convicted by the International Criminal Court (ICC) to 18 years in prison for the involvement of his army in the Central African Republican conflict president – as it has been built by the ICC, confronting this narrative with other perspetives that sustain the process had essentially political motivations. In addition, it will also contextualize the leader of the MLC’s role in the recurrent conflicts in the Great Lakes region and follow some of the connexions that preceded this process but may help to understand some of the positions adopted by the parties.

Keywords: International Criminal Court, Jean-Pierre Bemba, Central African Republic, Democratic Republic of Congo.

 

Jean-Pierre Bemba Gombo, líder do Movimento de Liber-tação do Congo (MLC), foi condenado pelo Tribunal Penal Internacional (TPI), em 2016, a 18 anos de prisão pelo envolvimento do Exército de Libertação do Congo (ELC) – o braço armado do MLC – no conflito que opôs o então Presidente da República Centro-Africana (RCA), Ange-Félix Patassé, e François Bozizé, antigo chefe das Forças Armadas e líder do golpe de Estado que em 2003 depôs Patassé.

Em 2008, o TPI considerou que os combatentes do MLC envolvidos no conflito centro-africano perpetraram crimes de guerra e contra a humanidade e que Bemba, enquanto líder do movimento, era penalmente responsável destas ações.

O presente artigo apresenta o «caso Bemba» na forma como foi construído pelo TPI, enquanto processo exemplar de responsabilização de um líder poderoso pelas ações dos seus subordinados e de condenação da utilização de crimes sexuais enquanto armas de guerra. Procura, ainda, apresentar outras narrativas que sugerem que o processo teve essencialmente motivações políticas, visando dois objetivos possíveis: a legitimação do afastamento de Patassé da RCA e/ou o afastamento de Bemba da RDC, com vista à consequente permanência de Joseph Kabila no poder. Por fim, o artigo visa contextualizar a ação do líder do MLC nos conflitos recorrentes na região dos Grandes Lagos e seguir algumas das ligações que precederam este processo e que ajudam a compreender as posições assumidas pelos diferentes intervenientes no decorrer do conflito e do julgamento.

O caso Bemba levanta um conjunto de questões que se associam a tantas outras que recentemente os estados africanos têm colocado relativamente ao funcionamento do TPI, nomeadamente a predominância do continente nos processos em curso, a ingerência em assuntos de política interna e os critérios de escolha dos casos a investigar.

 

BEMBA E AS DUAS GRANDES GUERRAS DO CONGO

Nascido em 1962 em Bokada, na província do Equador, RDC, Jean-Pierre Bemba Gombo estudou em Kinshasa, num colégio católico, antes de partir para Bruxelas, onde se licenciou em Ciências Comerciais e Consulares, tendo, portanto, recebido uma educação formal de matriz ocidental. Regressa ao país natal para trabalhar nos negócios da família1.

Na sequência do genocídio, no Ruanda, em 1994, durante o qual 800 mil pessoas de etnia tutsi foram massacradas pela maioria hútu, e de o Governo de Kigali, de maioria hútu, ter sido deposto pela Frente Patriótica Ruandesa (FPR), quase dois milhões de pessoas fugiram do país, muitas das quais se refugiaram na zona leste do então Zaire, atual RDC. Estes recém-chegados refugiados, conhecidos como interahamwe – aqueles que matam em conjunto – pertencem à etnia hútu e incluem cidadãos comuns mas também militares do governo deposto e autores do massacre, muitos dos quais chegaram armados; vêm encontrar do outro lado da fronteira populações congolesas de etnia tutsi, os banyamulenge, marginalizados pelo poder central e aspirando a ver reconhecidos os seus direitos de cidadania, o que deu origem a conflitos recorrentes2. Além disso, a porosidade das fronteiras no Leste do país permitiu que os grupos armados ruandeses continuassem a utilizar território congolês para lançar ataques transfronteiriços contra o Ruanda, mas também contra o Uganda e o Burundi, o que aumentou a tensão já existente na região3.

A primeira grande guerra do Congo tem início em 19964, quando as tropas insurgentes da Aliança das Forças Democráticas de Libertação (AFDL) avançam para Kinshasa, sob o comando de Laurent Désiré Kabila, visando depor a ditadura corrupta do general Mobutu, no poder desde 1965. Estas tropas são apoiadas por Angola, pelo Ruanda e pelo Uganda, que pretendem ver reforçadas as suas fronteiras com o ainda Zaire, por forma a protegerem os seus territórios respetivos das incursões acima referidas.

Laurent-Désiré Kabila, chamado Mzé, chega a Kinshasa a 17 de maio de 1997, derruba o regime mobutista, assume a presidência e altera a denominação Zaire para República Democrática do Congo. É nesta altura que Jean-Pierre Bemba, pessoal e familiarmente muito próximo do governo deposto, parte para o exílio.

No entanto, as medidas ansiadas pelos países que haviam apoiado Mzé durante a guerra não são implementadas e, pelo contrário, o Governo concede apoio político às milícias ruandesas. Em 1998, inicia-se a segunda guerra do Congo: os dois países (Ruanda e Uganda), querendo reforçar as fronteiras e a consequente segurança interna e, muito provavelmente, controlar as riquezas minerais da região, apoiam a ofensiva contra o Governo kabilista, que só é travada graças ao apoio de Angola, do Zimbabué, da Namíbia e do Chade às forças no poder: «é intrigante, até espantoso, que estes países estejam todos envolvidos na guerra do Congo, parcialmente como resultado e como extensão das suas tensões internas entre Estado e sociedade e das suas clivagens étnico-regionais»5. Kigali, num rápido volte-face, decide apoiar o movimento rebelde dos banyamulenge – a Reunião Congolesa para a Democracia (RCD-Goma). Por seu lado, o Uganda investe-se na criação de um outro movimento revoltoso e é assim que, em 1999, surge, em Gbadolite, terra natal de Mobutu, o MLC, liderado por Jean-Pierre Bemba6. O Presidente Kabila recorre ao argumento étnico, afirmando que os revoltosos pretendem apenas estabelecer uma hegemonia tutsi na região dos Grandes Lagos.

Ao contrário do RCD, originário de uma região extraordinariamente rica em minérios, o MLC, originário do Equador,

«não beneficiou da economia de Guerra na mesma medida (…) na verdade, a área controlada pelo MLC era pequena em tamanho e, principalmente, não continha grandes reservas minerais, forçando o MLC a confiar-se à exploração de madeira, ao comércio de café e à cobrança de pequenas taxas como as suas principais fontes de receita»7.

De facto, a grande concentração de minérios de elevado valor comercial situa-se essencialmente na zona leste do país, com especial incidência nas regiões dos Kivu Norte e Sul e do Katanga. A província do Equador está fora desta região mineira e é, até hoje, de acordo com o PNUD, uma das mais pobres da RDC. A exploração e comercialização de madeira tem sido bastante dificultada pela quase inexistência de infraestruturas de comunicação e pelo ambiente de insegurança, resultante dos anos de conflito, enquanto que a agricultura é essencialmente de subsistência. Por outro lado, o facto de o movimento se ter estabelecido e baseado na província do Equador, de onde Bemba é originário, à semelhança de grande parte dos elementos do grupo, fez com que o MLC fosse facilmente aceite pela população local, que lhe reconheceu legitimidade e autenticidade, e por uma grande parte daqueles que não se reviam na governação kabilista. A fronteira que a província estabelece com a RCA permitiu ao MLC utilizar Bangui como base comercial.

Jean-Pierre Bemba trouxe, ainda, outras vantagens ao movimento, visto que as suas ligações ao general Mobutu – a relação de proximidade com o seu pai e o facto de a sua irmã ser casada com Nzanga Mobutu, filho do «Rei Leopardo» – lhe permitiram angariar o apoio dos antigos partidários do presidente deposto. O movimento não conheceu qualquer cisão sob a sua liderança.

Em 2002, as milícias do MLC foram acusadas de canibalismo por organizações não governamentais da região do Ituri, acusações essas confirmadas pelas Nações Unidas no que ficou conhecido como caso Mambasa, de grande repercussão mediática nacional e internacional e que viria a dar origem a uma missão de paz da União Europeia na região, liderada pela França. Os homens de Bemba teriam esquartejado, cozinhado e comido pessoas da comunidade pigmeia de Mambasa, obrigando, inclusivamente, os familiares dos mortos a participarem na refeição. Estas acusações foram, no entanto, desmentidas mais tarde pela própria comunidade numa conferência de imprensa amplamente divulgada pelo MLC8. Bemba, numa clara referência à França, afirmará que a campanha mediática relativa ao caso Mambasa constituiu

«uma campanha de destabilização conduzida por um certo Estado que detém uma rádio internacional, que pretende fazer-me pagar pela minha intervenção na República Centro-Africana, onde esse mesmo Estado também estava presente, e a trabalhar ativamente – tenho provas – para destabilizar o Presidente Patassé, eleito em 1999, com 53% dos votos»9.

Estas acusações coincidem temporalmente com as negociações de paz entre as várias forças beligerantes na RDC. A segunda guerra do Congo é descrita como o conflito mais violento desde a Segunda Guerra Mundial e chega ao fim através de um longo processo negocial, durante o qual os dois movimentos rebeldes alcançam o estatuto de atores políticos a parte inteira, «tanto no processo de negociação da paz como no processo de transição que forneceram o enquadramento para a sua transformação política»10. As negociações culminam com a assinatura de um acordo global e inclusivo11. Jean-Pierre Bemba, pelo MLC, e Azarias Ruberwa, pelo RCD-Goma, viriam a exercer funções de vice-presidentes, respetivamente nas áreas de Economia e Finanças e de Política Interior, Defesa e Segurança, na fórmula que ficou conhecida como 1+4 (um presidente e quatro vice-presidentes) do Governo de Transição.

No dia da tomada de posse, Bemba fez uma declaração de força, ao entrar de forma apoteótica no Palácio do Povo, em Kinshasa, como relatou, à época, a enviada especial da BBC:

«Os apoiantes dos principais grupos rebeldes e do governo de Kabila enchiam o varandim. Celebravam, cantavam e agitavam faixas. Em termos de apoio organizado, o Movimento para a Libertação do Congo ganhou claramente. O seu líder, Jean-Pierre Bemba, que só regressou a Kinshasa na quinta-feira, foi saudado em êxtase quando entrou na sala. Foi uma declaração política calculada.»12

Esta manifestação foi ilustrativa da intensa proximidade existente entre Jean-Pierre Bemba e a sua base de apoio que, em Kinshasa, viria a conceder-lhe um resultado superior a 70 por cento na segunda volta das eleições presidenciais. Apesar das descrições de irascibilidade, das acusações de canibalismo e dos relatos da violência exercida pelo ELC, sob o seu comando, na RDC e na RCA, uma parte considerável da população confiou no bem-sucedido homem de negócios para liderar a economia do país, e demonstrou-o de forma efusiva nesta ocasião. O Governo de Transição manteve-se em funções até à realização de eleições em 2006.

 

O PROCESSO ELEITORAL

As eleições de 2006 puseram fim a um longo período de ditadura mas constituíram apenas o início da transição democrática, assente na nova Constituição, aprovada um ano antes. O processo, que incluiu eleições para a presidência da república, para o parlamento, para o senado e para as diferentes províncias foi muito bem acolhido pela população, que considerou a realização de eleições multipartidárias uma oportunidade real de mudança.

Durante os três anos em que governou a fórmula 1+4, as diferentes fações foram-se posicionando no aparelho de Estado, procurando segurança e benefício próprio e, em consequência, minando o sistema com redes de interesses que passaram a funcionar a partir do seu interior. Como explica Koko:

«De facto, em vez de se comprometerem com a paz, os beligerantes congoleses usaram a sua inclusão nas instituições tradicionais como uma oportunidade para “normalizar” as suas atividades e práticas ilegais, desenvolvidas durante a guerra. Ao fazê-lo, contribuíram para a institucionalização de uma política criminalizada e para a incorporação da economia política da guerra nos sistemas de estado e de governo.»13

Embora tenha constituído um passo importante no caminho para a democracia e para a paz, o ato eleitoral assumiu, para os diferentes partidos, um caráter utilitário, com vista à manutenção ou conquista de posições de segurança, poder e acesso aos recursos.

«As frágeis fundações das eleições de 2006 na RDC são evidenciadas na contínua coexistência contemporânea – numa forma de ações-concorrentes sobrepostas – de processos eleitorais, posicionamentos estratégicos para a eventualidade da reemergência da guerra para agitação civil, e o uso das eleições para posicionamento no acesso às riquezas minerais.»14

No que respeita exclusivamente às eleições presidenciais, submeteram-se à votação 33 candidatos, dos quais passaram à segunda volta Joseph Kabila e Jean-Pierre Bemba. Durante a campanha eleitoral, o Presidente em exercício apresentou-se como o «artesão da paz» enquanto que Bemba apelou ao nacionalismo, através do slogan «mwana mboka» – filho da terra –, numa clara alusão aos rumores que apontam a Joseph Kabila uma ascendência ruandesa. Apesar de derrotado, com 42 por cento dos votos, Bemba venceu em seis das 11 províncias em que o país se encontrava, à época, dividido, tendo ganho em todas as que são tradicionalmente contrárias a Kabila (Kinshasa, Equador, Bandundo, Kasai Oriental e Ocidental e Baixo Congo) e provando, assim, ser capaz de unir a oposição ao regime15.

Na sequência da derrota, depois de contestar os resultados junto da Corte Suprema e de aceitar a recusa desta contestação, assumindo o cargo de senador para o qual havia sido eleito, Bemba afirmará:

«usaremos, sempre que necessário, toda a nossa influência e todos os meios ao nosso dispor no âmbito da Constituição, nomeadamente protestos, greves, e outros caminhos de resistência e protesto, para demonstrar a nossa desaprovação, e, se o caso se apresentar, para bloquear o desenvolvimento de um regime ditatorial por detrás de uma fachada democrática.»16

O seu peso eleitoral foi demonstrado e o seu posicionamento político claramente afirmado. Apesar dos acordos assinados, Bemba manteve uma guarda pessoal de cerca de 600 homens, alegando não confiar nas forças regulares para o protegerem. Em 2007, recebeu um ultimato para que os militares ao seu serviço reintegrassem o exército nacional unificado, que não respeitou, o que deu origem a violentos confrontos em Kinshasa e a que fosse acusado de alta traição. Refugiou-se na Embaixada da África do Sul, de onde viajou para Portugal e daí para a Bélgica, onde viria a ser detido. Continua a ser líder do MLC, mantendo uma forte base eleitoral no Norte e no Leste do país, e também em Kinshasa17, mas o partido perdeu expressão nas últimas eleições, abrindo caminho à manifestação de novas forças políticas e à polémica vitória de Joseph Kabila nas presidenciais de 2011:

«as eleições foram, elas próprias, profundamente fraudulentas. A União Europeia e o Carter Center concluíram que lhes faltava credibilidade: mais de 850 mil votos, cinco por cento do total, foram perdidos. O processo de apuramento foi extremamente caótico; em vários lugares ocorreu que o apuramento excedeu o número de votantes registados. Apesar de Kabila ter sido proclamado vencedor, o consenso entre os grupos da sociedade civil e a maioria das embaixadas foi que as eleições haviam sido geridas de um modo tão fraudulento que o verdadeiro vencedor nunca seria conhecido.»18

 

BEMBA E O TPI

A luta armada pelo poder na RCA tem sido uma constante desde a instauração da independência em 1960. O país passou por sete golpes de Estado, acontecimentos que reforçaram uma cultura de violência, de impunidade política e de personalização do poder, num estado de rebelião permanente a que se associa a má governança19. Ao contrário de outros países da região, aliás fortemente instável, que são vulgarmente classificados como estados falhados, a RCA ter-se-á tornado num verdadeiro Estado-fantasma, numa ausência absoluta de qualquer tipo de funcionamento estatal e institucional20.

Ange-Felix Patassé, chefe do Movimento para a Libertação do Povo Centro-Africano, presidente do país à época dos acontecimentos que conduzirão à condenação de Bemba, é o primeiro chefe de Estado a ser eleito em eleições consideradas livres, em 1993, ao mesmo tempo que o seu partido vence as eleições para a Assembleia Nacional, pondo fim a uma longa ditadura militar21.

Durante a sua permanência no poder (será reeleito em 1999), acentuam-se as divergências entre o Norte, de onde é originário e cujas populações se consideram desfavorecidas e sistematicamente marginalizadas, e o Sul, mais desenvolvido. Em maio de 2001, o antigo Presidente Kolingba, sulista, tenta depor Patassé, que solicita o auxílio da Líbia e do MLC, conseguindo manter-se no poder. Na sequência destes acontecimentos, o Presidente demite o comandante das Forças Armadas Centro-Africanas, François Bozizé, acusando-o de cumplicidade na tentativa de golpe de Estado orquestrada por Kolingba.

Bozizé refugia-se no Chade, que recusa a sua extradição, exacerbando as tensões já existentes entre os dois países. Em agosto de 2002, a guarda presidencial, apoiada por uma milícia comandada pelo coronel Abdoulaye Miskine, atravessa a fronteira e ataca Bozizé que, em resposta, avança para a RCA, estabelecendo uma base militar no Norte do país. Daí, inicia a investida em direção a Bangui, que conseguirá controlar, depois de avanços e recuos, a 15 de março de 2003.

Na tentativa de reprimir o ataque de Bozizé, Patassé recorre a uma milícia pessoal que havia criado, e solicita a ajuda da Líbia e do MLC, cujas tropas atravessam rapidamente a fronteira, dando início aos cinco meses de violência que estarão na origem do processo n’A Haia.

A 23 de maio de 2008, é emitido um mandato de captura contra Jean-Pierre Bemba Gombo, que será executado no dia seguinte pelas autoridades belgas e tornado público no dia 10 de Junho do mesmo ano. Bemba é transferido para A Haia a 3 de julho, sendo ouvido pela primeira vez no dia 4. O mandato incide sobre acontecimentos que ocorreram na RCA entre 25 de outubro de 2002 e 15 de março de 2003. Inicialmente, o TPI considera que há motivos plausíveis para responsabilizar criminalmente Bemba, conjuntamente ou por intermédio de terceiros, de assassinatos, violações e torturas constitutivos de crime de guerra e contra a humanidade e de atentados contra a dignidade e de pilhagens, constitutivos de crimes de guerra22.

A violência manteve-se no Norte, onde grupos rebeldes nacionais, alimentados, nomeadamente, por conflitos étnicos, mas também do Chade e do Darfur continuaram a semear o terror. O Lord Resistance Army (LRA), grupo extremamente violento originário do Uganda, terá também realizado ataques em território centro-africano.

A presidência de Bozizé não trouxe paz à RCA e este viria também a ser deposto através de um violento golpe de Estado em março de 2013, dez anos depois de ter conquistado o poder. A coligação rebelde, a Séléka, terá cometido crimes graves durante o golpe, nomeadamente assassinatos, violações, tortura e pilhagem. As Nações Unidas alertaram para o risco de genocídio por causas étnicas e religiosas. Os conflitos entre 2012 e 2015 terão causado milhares de mortos e conduzido a cerca de um milhão de deslocados23.

A 24 de setembro de 2014, o TPI anuncia, a pedido do governo nacional, a abertura de um segundo inquérito na RCA24, relativo aos crimes cometidos desde agosto de 2012, tanto pela Séléka, de composição muçulmana, como pelos grupos anti-Balaka, de origem cristã. O procurador considera existirem motivos de convicção de que os crimes de assassinato, violação, pilhagem, ataque contra missões humanitárias, recurso a crianças-soldado, deslocação forçada e perseguição terão sido cometidos durante o período em análise. O processo não conheceu, ainda, outros desenvolvimentos.

No caso Bemba, a argumentação do julgamento refere que este sabia que as forças sob o seu comando cometiam ou cometeriam crimes contra a humanidade e crimes de guerra e que, apesar disso, não tomou todas as medidas necessárias para impedir a realização desses crimes, nem através do exercício do seu efetivo poder pessoal, nem através do recurso às autoridades competentes. Foi condenado em 2016 pelo TPI a 18 anos de prisão por crimes de guerra (assassínio, violação, pilhagem) e contra a humanidade (assassínio e violação), cometidos pelos homens sob o seu comando na RCA, em 2002. Tanto a defesa como a acusação recorreram da sentença por a considerarem, respetivamente, excessiva e insuficiente.

O processo, que ouviu 77 testemunhas, alcança grande mediatismo, desde logo por se tratar do julgamento de um antigo vice-presidente mas também porque a sentença introduz algumas inovações de importância maior, nomeadamente em termos de jurisprudência, às quais a imprensa dá o devido destaque. Como refere um artigo do jornal britânico The Guardian: «É o primeiro veredicto a reconhecer a violação como arma de guerra e a empregar a doutrina da responsabilidade de comando: os líderes são responsabilizáveis pelos crimes dos seus subordinados.»25 A procuradora-geral do TPI também se pronuncia entusiasticamente sobre a sentença, sem prejuízo de a considerar, ainda, insuficiente face à gravidade dos crimes: «Acredito que este é um dia muito importante para a justiça penal internacional, especialmente no que diz respeito aos crimes sexuais e de género.»26

Ao processo descrito, chamado «caso principal», vem juntar-se um segundo, chamado «caso conexo», no qual Bemba e quatro dos seus colaboradores (Aimé Kilolo Musamba, Jean-Jacques Mangenda Kabongo, Fidèle Babala Wando e Narcisse Harido) foram condenados, em 22 de março de 2017, cada um na medida das suas responsabilidades provadas, por corrupção ativa de 14 testemunhas de defesa e por apresentação de falsos testemunhos ao Tribunal. Jean-Pierre Bemba deverá passar mais um ano n’A Haia e pagar uma multa de 300 mil euros27.

A atuação do TPI começou por ser bem recebida em África, aquando das detenções de criminosos como Lubanga, na RDC, em 2009, que há vários anos exercia uma violência brutal no Leste do país (região do Ituri), assente em assassinatos, violações e raptos. No entanto, o número muito reduzido de ações e a inconsequência dos processos judiciais, acabaram por associar a instituição a uma imagem de fraqueza e irrelevância, num contexto de business as usual:

«Há uma sensação cada vez mais acentuada entre as organizações locais e internacionais de que as investigações não chegam suficientemente alto na cadeia de comando (…) Os Iturianos parecem perfeitamente conscientes de que o conflito está relacionado com os recursos da região e que as tensões étnicas locais foram alimentadas deliberadamente pelos líderes políticos em Kampala, Kgali e Kinshasa.»28

Assim, embora reconhecendo a pertinência das detenções efetuadas, o que se questiona é a relevância dessas detenções, a prioridade que lhes foi concedida, os meios que foram colocados à disposição da investigação dos casos e as acusações e reparações que daí resultaram: «de facto, só as vítimas das acusações escolhidas pelo Procurador e tendo sido objeto de condenação podem participar nos procedimentos junto do TPI e receber uma reparação»29. Lubanga, por exemplo, foi unicamente acusado de fazer recurso a crianças-soldado. Sem diminuir a gravidade desta acusação, ela torna-se difícil de compreender quando ocorre associada a um contexto onde decorriam crimes de limpeza étnica: «O povo congolês deve maravilhar-se com as aparentes prioridades da justiça internacional, que coloca o recurso a crianças-soldado à frente de assassínio em massa, tortura e violação no que respeita à necessidade de acusação imediata.»30

Como referimos inicialmente, não está em causa a gravidade dos crimes cometidos pelo MLC nem a legitimidade da condenação de Jean-Pierre Bemba Gombo pelo TPI. No entanto, embora válida, esta ação parece ter ficado aquém das expectativas em termos das consequências positivas que produziu, relativamente à redução da violência na RCA, à reparação concedida às vítimas, e à prevenção da ocorrência de situações idênticas no futuro: «Não é certo, na verdade, que um julgamento, tão justo quanto possível, concluído anos depois, a milhares de quilómetros, ou mesmo no próprio país (não esqueçamos que Bokassa foi julgado em Bangui) chegue para satisfazer a necessidade de justiça do povo centro-africano.»31

A acusação inicialmente formulada contra Bemba colocava-o como responsável conjuntamente ou por intermédio de terceiros, de crimes ocorridos na RCA durante o período específico em que a sua milícia permaneceu no país.

A defesa do ex-Vice-Presidente recorreu da sentença pronunciada pelo TPI, afirmando que Bemba não foi responsável pela atuação individual dos homens do ELC no terreno, já que estes acederam ao território a pedido do então chefe de Estado legítimo e que agiram sob as suas ordens, uma vez que era ao Presidente que competia combater o golpe de Estado em curso, que visava a sua deposição, o que, aliás, viria a acontecer.

A argumentação do julgamento refere que:

«427. Ainda que tenha existido cooperação e coordenação entre os comandantes do MLC e as autoridades centro-africanas, um número de testemunhas afirmou que a hierarquia do MLC conservou o comando ao longo de toda a Operação de 2002-2003 na RCA. Um outro grupo de testemunhas declarou que as tropas do MLC estavam sob o comando das autoridades centro-africanas mas o tribunal considerou os seus testemunhos duvidosos.»32

O facto de o Presidente Patassé nunca ter sido ouvido pelo Tribunal constitui, por isso, um dos elementos que levam a questionar a qualidade e as motivações da atuação da acusação neste julgamento: «A ausência do antigo presidente Ange-Felix Patassé na barra do tribunal terá sido a trapalhada que manchará definitivamente este processo.»33 Além de Bemba e Patassé, outros atores foram responsáveis por ações violentas durante o mesmo período, ações essas que, em parte, viriam a persistir após a saída do ELC do território centro-africano.

«Na situação da RCA (…) outros indiciados prováveis incluem o próprio Patassé, o comandante da sua Guarda Presidencial, Abdoulaye Miskine, e o mercenário francês Paul Barril. Se os procuradores pararem aqui, parecerá outro caso de acusação dos vencidos, não dos governos no poder (…) (nos conflitos entre 2005 e 2008) o fardo das violações parece pesar esmagadoramente sobre o exército, pelo qual o governo de Bozizé é em última análise responsável.»34

Contrariamente ao esperado, a investigação acabou por centrar-se exclusivamente em Jean-Pierre Bemba, limitando o exercício da justiça à condenação de um dos intervenientes e levantando, mais uma vez, suspeitas quanto ao posicionamento do TPI, que alguns entenderam como protetor de François Bozizé, no poder aquando do início do processo. O TPI tem, aliás, vindo a ser acusado de se limitar à condenação dos derrotados, sem atentar às responsabilidades dos que estão no poder, como referiu o juiz Claude Jorda:

«Para aonde vai a Procuradoria? Pergunta sem disfarçar a sua impaciência. Estamos no início deste tribunal. É uma questão que me preocupa, que nos preocupa. Têm intenção de investigar pessoas que têm responsabilidades nacionais ou vão limitar-se a pessoas que desempenham o papel de chefes de milícia?»35

Por outro lado, várias fontes referiram o cansaço da França relativo à governação de Patassé e o apoio logístico e bélico que teria fornecido às forças rebeldes, afirmações sempre desmentidas pela diplomacia francesa. O país tem vindo a ser sistematicamente acusado de ingerências na governação da RCA, com vista à defesa dos seus interesses financeiros e comerciais na região36.

No que respeita às vítimas, se parte da população considera que o importante é proceder ao julgamento dos senhores da guerra, outra parte gostaria de ver responsabilizados e castigados os executantes, afirmando que esta seria a melhor forma de reparação, uma vez que o convívio diário com os perpetuadores dos crimes e a permanente sensação de impunidade constituem uma nova forma de punição:

«em primeiro lugar, a vida ao lado dos carrascos surge como um duplo castigo para as vítimas. A simples presença dos autores dos crimes – violências físicas ou morais, pilhagens – é uma nova violência que as toca e as interpela acerca da incapacidade do Estado.»37

No quadro da necessidade de reparação, levantaram-se vozes na sociedade civil africana, que consideram que os casos da RDC e da RCA deviam dar origem à criação de tribunais penais internacionais específicos, como o que se constituiu no Ruanda, com vista à investigação do genocídio de 1994.

No caso da RCA, em junho de 2015 Catherine Samba-Panza, chefe de Estado durante o Governo de Transição, promulgou a lei relativa à criação do Tribunal Criminal Especial (TCE), destinado a julgar crimes graves como genocídio, crimes de guerra e contra a humanidade. Sendo uma estrutura nacional, completamente integrada no sistema judicial do país, a instituição adquire um caráter híbrido por incorporar funcionários nacionais e internacionais.

A decisão de estabelecer este tribunal só pode ser compreendida no quadro dos esforços que as Nações Unidas têm desenvolvido para restaurar a paz e a segurança na RCA. O Conselho de Segurança concedeu, paralelamente, à missão de paz no país Medidas Temporárias Urgentes (UTM), que lhe permitem executar detenções, o que se coordena com a criação do tribunal especial38.

O Estatuto de Roma assenta na regra da complementaridade, que concede prioridade aos estados partes para investigarem os crimes graves ocorridos nos seus territórios, reservando para o TPI o estatuto de tribunal de último recurso. A criação de uma estrutura judicial intermédia como o TCE levanta algumas questões quanto a esta regra mas também quanto ao funcionamento regular das instituições num momento em que parece existir sobreposição entre a investigação aberta no TPI (CAR II) e a intenção de investigar e julgar os crimes graves através do TCE. Por outro lado, apesar das enunciadas intenções de criar e reforçar instituições africanas em África, esta volta a ser uma estrutura sujeita a influências externas e dependente de financiamento exterior para o seu funcionamento. Acresce que o TCE não tem legitimidade para atuar relativamente a eventuais crimes cometidos por elementos da Missão de Paz, que têm vindo a ser acusados de transgressões várias durante a sua permanência na RCA. Apesar da promulgação da lei relativa à sua criação, os atrasos na sua implementação, parcialmente justificados com a realização de eleições, parecem levantar questões quanto à real vontade política dos dirigentes centro-africanos para pôr efetivamente o TCE em ação.

Por fim, no que respeita ao caso Bemba, outras questões processuais foram levantadas pela defesa, nomeadamente a utilização imprecisa do termo banyamulenge, desde o mandato de captura, que referia: «o mandato incide sobre os acontecimentos que decorreram na RCA de 25.10.2002 a 15.03.2003 (…) Conflito armado entre uma parte das forças armadas centro-africanas (…) aliada a combatentes do MLC, dirigidos por Jean-Pierre Bemba, vulgarmente chamados “Banyamulenge”». Esta referência foi considerada demonstrativa do desconhecimento da realidade local, uma vez que os banyamulenge são, como vimos, uma parte da população congolesa de etnia tutsi, que deu origem ao RCD-Goma, apoiado pelo Ruanda, mas que não têm uma correspondência direta com o ELC de Jean-Pierre Bemba.

A abertura de um segundo processo contra Bemba e consortes por corrupção ativa de testemunhas e apresentação de falsos testemunhos ao Tribunal impediu a utilização de um conjunto importante de elementos da defesa que foram relacionados com esta segunda linha de investigação: «O facto de a Câmara não ter ordenado a junção do caso conexo ao caso principal teve como consequência obrigar a defesa a abandonar os elementos de prova relativos aos 14 testemunhos litigiosos.»39 Também este processo deu origem a condenações, lidas no dia 22 de março de 2017, que foram, mais uma vez, contestadas pela defesa, visto que grande parte dos elementos de prova terá sido obtida através de escutas telefónicas não autorizadas judicialmente.

Sendo o TPI uma instituição de último recurso, destinada a suprir as necessidades de investigação e julgamento que os países não são capazes de assegurar aos seus próprios cidadãos, será necessário, para que a sua legitimidade não seja questionada, que assegure o respeito dos procedimentos processuais e que corresponda na medida dos objetivos que lhe foram confiados, aos anseios dos cidadãos que dele esperam justiça.

 

CONCLUSÕES

Aquando da criação do TPI, o então secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, chamou-lhe «dádiva de esperança para as gerações futuras, e um passo de gigante na caminhada em direção aos direitos humanos e à justiça»40. Quase vinte anos depois da sua criação, esta declaração parece fazer-nos olhar para as realizações do TPI como tendo ficado muito aquém dos objetivos a que inicialmente estava votado. De facto, a morosidade dos processos, associada à distância física entre a instituição e o terreno de investigação e ao facto de a grande maioria dos casos atualmente em curso serem relativos a personalidades africanas, tem suscitado discussões relativamente à validade da instituição e ao seu posicionamento no quadro político internacional.

Vários estados africanos têm manifestado o seu desacordo relativamente à atuação do TPI, sendo que alguns, de entre os quais se destaca a África do Sul, deram início aos procedimentos necessários para o abandono e outros já manifestaram a intenção de sair, considerando que o comportamento da instituição assume laivos pós-coloniais, ao focar-se quase exclusivamente em África. A atual dissensão tem também origem no mandato de captura que o TPI lançou contra Omar al-Bashir, Presidente do Sudão, por alegados crimes de guerra relacionados com o conflito na região sudanesa do Darfur, no qual morreram 300 mil pessoas e que deu origem a dois milhões de deslocados. A África do Sul autorizou posteriormente uma visita de Bashir ao país, no quadro da realização de uma cimeira da União Africana alegando que este tinha imunidade, enquanto presidente de um Estado-Membro. A ministra dos Negócios Estrangeiros sul-africana, Maite NKoama-Mashabane, afirma, no texto em que anuncia às Nações Unidas a saída da África do Sul do TPI, que o país «considera que as suas obrigações relativamente à resolução pacífica de conflitos são por vezes incompatíveis com a interpretação dada pelo Tribunal Penal Internacional»41.

Num artigo publicado no Le Monde Afrique, Vilmer42 apresenta uma perspetiva oposta à dos estados africanos que acusam o TPI de perseguir e condenar apenas pessoas originárias do continente, considerando que o afro-centrismo do TPI não constitui um preconceito contra os africanos mas a favor das vítimas africanas. O autor refere que um grande número de estados africanos aderiu ao Estatuto de Roma e que é lá que tem ocorrido, desde 2002, o maior número de crimes passíveis de serem julgados pelo TPI por se enquadrarem no nível de gravidade que justificou a sua criação. Sublinha, ainda, que dos nove casos africanos atualmente em curso, seis tiveram origem em solicitações diretas de intervenção por parte dos governos nacionais. Num tom bastante crítico, Vilmer considera «que se o Tribunal se interessasse apenas por africanos não incomodaria minimamente os chefes de Estado do continente porquanto este se limitasse a agir pela sua iniciativa e contra os seus inimigos»43. A tensão mantém-se e uma eventual rutura massiva dos estados africanos em relação ao Estatuto de Roma já constituiu objeto de discussão ao nível da União Africana.

A condenação de Jean-Pierre Bemba pelo TPI constitui um facto relevante por ter permitido que um ex-vice-presidente se sentasse no banco dos réus, por ter criado jurisprudência relativamente à possibilidade de condenar um responsável pelas ações dos seus subordinados e, sobretudo, por ter reconhecido o recurso à violação como arma de guerra. O processo levanta, no entanto, dúvidas relativamente ao contexto geral de perpetração dos crimes, permitindo questionar a atuação do TPI no que respeita à seleção dos acusados, à condução do processo e aos objetivos que pretende atingir, nomeadamente em termos de respeito dos direitos humanos, não permitindo a perpetuação da violência e proporcionando às vítimas a reparação que lhes é devida. Ao centrar-se exclusivamente em Jean-Pierre Bemba, o TPI parece limitar o exercício da justiça à condenação de um dos intervenientes, o que suscita reflexão quanto ao seu posicionamento relativamente aos detentores do poder, designadamente a François Bozizé, na RCA, e a Joseph Kabila, na RDC. Apesar de derrotado nas eleições presidenciais de 2006, Jean-Pierre Bemba provou ser capaz de unir a oposição congolesa em seu redor, sendo que o caso no TPI o manteve afastado da luta pela presidência na RDC, facilitando a manutenção do chefe de Estado em funções.

A tensão atual entre o TPI e boa parte dos estados africanos parece ter origem em responsabilidades partilhadas no que respeita à falta de colaboração e transparência. A atuação da instituição tem estado bastante aquém dos objetivos que lhe foram confiados, pelo que parece estar ainda longe de constituir a prometida dádiva de esperança às gerações futuras quanto ao respeito internacional dos direitos humanos.

 

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Data de receção: 10 de março de 2017 | Data de aprovação: 22 de maio de 2017

 

NOTAS

1 Os artigos apresentados nas ligações seguintes são fontes possíveis, entre muitas, de consulta mais aprofundada acerca da biografia de Jean-Pierre Bemba: https://trialinternational.org/latest-post/jean-pierre-bemba-gombo/. (Consultado em: 29 de março de 2017); http://www.bbc.com/news/world-africa35845556. (Consultado em: 29 de março de 2017); http://www.lemonde.fr/m-moyen-format/article/2016/03/28/qui-est-vraiment-jean-pierre-bemba-condamne-pour-crimes-contre-l-humanite_4891285_4497271.html. (Consultado em: 29 de março de 2017).

2 BREYTENBACH, W., et al. – «Conflicts in the Congo: from Kivu to Kabila». In African Security Review. Vol. 8, N.º 5, 1999, pp. 33-42; VINES, A. – «Rhetoric from Brussels and reality on the ground: the eu and security in Africa». In International Affairs. Vol. 86, N.º 5, Oxford, Blackwell, 2010, pp. 1091-1108.

3 OROGUN, P. – «Crisis of government, ethnic schisms, civil war and regional destabilization of the Democratic Republic of Congo». (Em linha). In World Affairs. Sage, 2002.

4 Para informações complementares acerca da história recente da RDC, consultar: http://perspetive.usherbrooke.ca/bilan/pays/COD/fr.html.

5 Todas as traduções são traduções livres da autora. OROGUN, P. – «Crisis of government», pp. 34-35.

6 PRUNIER, G. – «L’Ouganda et les guerres congolaises». (Em linha). In Politique Africaine. Vol. 3, N.º 65, 1999, pp. 43-59.

7 KOKO, S. – «From rebels to politicians: explaining the transformation of the RCD-Goma and the MLC in the Democratic Republic of Congo». In South African Journal of International Affairs. Vol. 23, N.º 4, 2016, p. 525.

8 AYAD, C. – «Des Pygmées dévorés au Congo toujours en vie». (Consultado em : 16 de maio de 2017). Disponível em: http://www.liberation.fr/planete/2004/09/24/des-pygmees-devores-au-congo-toujours-en-vie_493536.

9 Bemba citado por Libre Belgique citado por Pottier, J. – «Rights violations, rumour and rhetoric: making sense of cannibalism in MABASA, Ituri (Democratic Republic of Congo)». In Journal of the Royal Anthropological Institute. Vol. 13, N.º 4, 2007, p. 834.

10 Koko, S. – «From rebels to politicians», p. 531.

11 Sun City, 17 de dezembro de 2002.

12 MATHESON, I. – «DR Congo’s curious new line-up». (Consultado em: 17 de março de 2017). Disponível em: http://news.bbc.co.uk/2/hi/africa/3076279.stm.

13 KOKO, S. – «From rebels to politicians», p. 526.

14 BOOYSEN, S. – «“Choice between malaria and cholera” or “Democratic façade”: the 2006 elections in the Democratic Republic of the Congo». In Politikon. Vol. 34, N.º 1, 2007, p. 3.

15 Para mais informação aceRCA do processo eleitoral, consultar http://africanelections.tripod.com/cd.html.

16 Bemba, 2006, citado por BOOYSEN, S. – «“Choice between malaria and cholera”», p. 15.

17 Acerca da atual força eleitoral de Jean-Pierre Bemba, inúmeros artigos de imprensa fizeram referência à oposição real que este poderia constituir caso se apresentasse como adversário de Joseph Kabila; os artigos aqui referidos são disso exemplo: http://afrique.kongotimes.info/RDC/justice/10363-RDC-jean-pierre-bemba-pese-lourd-conjungo-ancien-chef-guerre-peut-changer-donne.html; http://www.justiceinfo.net/fr/component/k2/26445-jean-pierre-bemba,-de-la-rébellion-à-la-cpi-en-passant-par-la-vice-présidence-congolaise.html; http://africanarguments.org/2014/06/24/drc-elections-will-kabila-stay-or-go-and-many-other-questions-on-the-road-to2016-by-manya-riche-and-kris-berwouts/.

18 STEARNS, J.K. – «Helping Congo help itself – what it will take to end Africa’s worst war». In Foreign Affairs. Vol. 92,N.º 5, 2013, p. 105.

19 ESCOFFIER, S., et al. – «Nature et formes de la violence, causes do conflit en RCA». (Consultado em: 24 de março de 2017). Disponível em: http://www.irenees.net/index_fr.html; e Vlavonou, G. – «Understanding the “failure” of the Séléka rebellion». In African Security Review. Vol. 23, N.º 3, 2014, pp. 318-326.

20 ESCOFFIER, S., et al. – «Nature et formes de la violence».

21 Para informações detalhadas acerca do período pós-independência na RCA, consultar: http://perspetive.usherbrooke.ca/bilan/pays/CAF/fr.html.

22 Toda a informação relativa aos casos Bemba, principal e conexo, e aos casos CAR I e II foi recolhida através da análise dos elementos processuais, disponíveis para consulta no sítio do Tribunal Penal Internacional (https://www.ICC-cpi.int/Pages/Home.aspx), consultado em 20 de fevereiro de 2017.

23 LABUDA, P. – «The special criminal court in car: failure or vindication of complementarity?» (draft). In Journal of International Criminal Justice (forthcoming). N. 1, 2017.

24 CAR II é o nome sob o qual o processo pode ser consultado na documentação do TPI.

25 BURKE, J. – «Jean-Pierre Bemba sentenced to 18 years in prison by ICC». (Consultado em: 20 de março de 2017). Disponível em: https://www.theguardian.com/law/2016/jun/21/jean-pierre-bemba-sentenced-to18-years-in-prison-by-international-criminal-court.

26 BENSOUDA, 2016, citada por BURKE, J. – «Jean-Pierre Bemba sentenced to 18 years in prison by ICC».

27 Para acompanhar a evolução dos casos Bemba, principal e conexo, está disponível em linha um projeto da Open Society Justice Initiative, intitulado «Le Procès Jean-Pierre Bemba Gombo, l’accusé» (cf. http://french.bembatrial.org).

28 GLASIUS, M. – «What is global justice and who decides? Civil society and victim responses to the International Criminal Court’s first investigations». In Human Rights Quarterly. Vol. 31, N.º 2, 2009, p. 503.

29 MAKAYA, S. – «Quelques considérations critiques sur les réparations au profit des victimes dans l’affaire contre Thomas Lubanga à la CPI». (Consultado em: 16 de maio de 2017). Disponível em: https://www.ijmonitor.org/2016/09/quelques-considerations-critiques-sur-les-reparations-au-profit-des-victimes-dans-laffaire-contre-thomas-lubanga-a-la-cpi/.

30 GLASIUS, M. – «What is global justice and who decides?», p. 507.

31 Observatoire Pharos; Institut Univiersitaire Varenne, Universite de Bangui – «Victimes, impunité, justice et reconciliation». (Consultado em: 17 de maio de 2017). Disponível em: https://www.observatoirepharos.com/wp-content/uploads/2016/09/20161031-Rapport-Pharos-Justice-ok.pdf.

32 LA CHAMBRE DE PREMIÈRE INSTANCE III – «Situation em République Centrafricaine. Affaire Le Procureur c. Jean-Pierre Bemba Gombo», ICC-01/05-01/08, 21 de março de 2016. (Consultado em: 17 de maio de 2017). Disponível em: https://www.ICC-cpi.int/CourtRecords/CR2016_08547.PDF.

33 MABANGA, G. – «Affaire Bemba: la cpi fixe les critères d’appréciation de la responsabilité pénale du chef militaire et du supérieur hiérarchique». In Revue des Droits de l’Homme, 2016, p. 7.

34 GLASIUS, M. – «What is global justice and who decides?», p. 504.

35 JORDA, citado por Maupas, S. – Le Joker des Puissants. Paris: Ed. Don Quichotte, 2016.

36 Relativamente à presença e intervenção francesas na RCA, circulam desde há muito informações apresentadas por fontes mais ou menos credíveis quanto aos interesses económicos que justificam a ligação do antigo colonizador com o território centro-africano desde a sua independência. Apresentamos, por exemplo, http://www.une-autre-histoire.org/la-france-et-la-centrafrique/ ; http://www1.rfi.fr/actufr/articles/018/article_8994.asp ; http://www.investigaction.net/Centrafrique-les-raisons-cachees/ ; http://www.alwihdainfo.com/Centrafrique-Declaration-historique-sur-la-guerre-du-petrole_a10085.html.

37 Observatoire Pharos; Institut Univiersitaire Varenne, Universite de Bangui – «Victimes», p. 13.

38 LABUDA, P. – «The special criminal court in car».

39 MABANGA, G. – «Affaire Bemba», p. 7.

40 ANNAN, 1998, citado por GLASIUS, M. – «What is global justice and who decides?».

41 Declaração recolhida no Expresso online, de 21 de outubro de 2016. (Consultado em: 30 de abril de 2017). Disponível em: http://expresso.sapo.pt/internacional/2016-10-21-Africa-do-Sul-abandona-Tribunal-Penal-Internacional.

42 VILMER, J.-B. J. – «L’Afrique et la Cour Pénale Internationale: une justice de “blancs”?». In Le Monde. (Consultado em: 25 de março de 2017). Disponível em: http://www.lemonde.fr/afrique/article/ 2016/10/31/l-afrique-et-la-cour-penale-internationale1-2-une-justice-de-blancs_5023431_3212.html.

43 Ibidem.

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