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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.54 Lisboa jun. 2017

https://doi.org/doi.org/10.23906/ri2017.54a04 

O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL EM ÁFRICA

O sistema normativo africano de direitos humanos

The African normative system of human rights

 

Mbuyi Kabunda

Professor de Relações Internacionais e Direitos Humanos na Universidade Autónoma de Madrid. Doutorado em Ciência Política pela Universidade Complutense de Madrid. Atualmente dirige o Observatório de Estudos sobre a Realidade Social Africana da Universidade Autónoma de Madrid. É especialista em questões de integração regional, desenvolvimento, direitos humanos e conflitos em África.

 

RESUMO

Esta análise debruça-se sobre a ineficiência e a ineficácia das jurisdições nacionais e regionais de África na promoção e na proteção dos direitos humanos, reveladas nas constituições nacionais e nos documentos e jurisdições regionais, como a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos e o Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos. Daqui resulta a ausência generalizada de respeito pelos direitos humanos, e a extensão da cultura da impunidade e do silêncio no continente. A consequente atuação do Tribunal Penal Internacional em África provoca um confronto com alguns governos que, no seio da União Africana, questionam a sua autonomia e universalidade.

Palavras-chave: Direitos humanos, desenvolvimento, justiça dos vencedores, soluções africanas.

 

ABSTRACT

The present analysis addresses the inefficiency and inefficacy of African national and regional jurisdictions in the promotion and protection of human rights, both in national constitutions and in regional documents and jurisdictions, such as the African Charter on Human and Peoples’ Rights and the African Court on Human and Peoples’ Rights. The result of the above-mentioned inefficiency is the overall disrespect for human rights in Africa and the growth of a culture of impunity and silence. The ensuing action of the International Criminal Court (ICC) in the continent has led to a confrontation with some African governments which, within the framework of the African Union, challenge the autonomy and universality of the ICC.

Keywords: Human rights, development, justice of the victors, African solutions.

 

INTRODUÇÃO

Os direitos humanos estão definidos nas constituições africanas e na Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (a partir daqui a Carta Africana ou a Carta). De igual modo, os tribunais penais das associações regionais africanas (a Comunidade Económica de Estados da África Ocidental – CEDEAO/ECOWAS, a Comunidade de Estados da África Central – CEEAC, a Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral – SADC, e a Comunidade Económica da África Oriental – EAC) adotaram as suas definições de direitos humanos. Apesar disso, os direitos humanos são muito pouco observados e escassamente respeitados pelos governos africanos. A adesão a protocolos e declarações para a prevenção e repressão dos crimes contra a humanidade, de guerra, de genocídio e de toda a forma de discriminação, como o pacto assinado em 2006 entre os países da região dos Grandes Lagos, revela-se, assim, inoperante.

O continente caracteriza-se pelas graves e repetidas violações de direitos humanos. O próprio período atual de democratização continua a registar violações. Os mecanismos e documentos acima mencionados, apesar de significarem passos importantes na promoção e proteção dos direitos humanos, enfermam de imperfeições e ineficiências relevantes e enfrentam a renitência, e até a resistência, dos estados, agarrados à soberania nacional (e ao princípio da supremacia da soberania) e opostos à instituição de mecanismos legais intergovernamentais. Esta espécie de paralisia jurídica tem uma influência negativa no respeito pelos direitos humanos dos indivíduos e dos povos. Aos demandantes exige-se o esgotamento prévio de todas as instâncias internas ou nacionais antes do recurso para o tribunal regional inoperante; o mesmo é dizer que se consagra a impunidade.

Afigura-se imprescindível, portanto, destacar as principais características dos sistemas normativos africanos de direitos humanos para compreender o presente conflito entre o Tribunal Penal Internacional (TPI) e a União Africana (UA), ou alguns governos africanos, com o objetivo de apurar até onde chega a verdade e a partir de onde começa a intoxicação.

 

AS CONSTITUIÇÕES AFRICANAS E OS DIREITOS HUMANOS

De modo global, as constituições africanas são meramente decorativas. Nelas, os direitos são mais formais que reais, e são sistematicamente ignorados nos seus pontos essenciais – em particular os que se referem aos direitos humanos1. Estas leis fundamentais sofrem da falta de separação de poderes e dos frequentes golpes de Estado constitucionais (através das emendas) e institucionais desferidos pelos poderes estabelecidos.

Importa notar que as constituições africanas incorporaram relevantes disposições acerca dos direitos humanos; só não são aplicadas. Neste período de democratização iniciado nos finais da década de 1980 e princípios da década de 1990, apesar de enunciarem e consagrarem direitos individuais e coletivos, assinalando uma adesão às declarações de 1789 e/ou de 1948, as leis fundamentais nacionais têm sido repetidamente violadas ou ignoradas, como continuam a denunciar as ONG de direitos humanos (Amnistia Internacional, Human Rights Watch, Ligue pour la Promotion des Droits de l’Homme, International Crisis Group…). A situação prevalece neste período de liberalismo e de pluralismo político, marcado por um regresso ao «mimetismo constitucional»2 com a reprodução dos modelos constitucionais das metrópoles (Grã-Bretanha, França e Estados Unidos), e em particular do modelo francês de 1958 e suas posteriores adaptações3.

Neste contexto nasceu a Carta Africana, também chamada Carta de Banjul, adotada pela cimeira de chefes de Estado e de governo da Organização da Unidade Africana (OUA) em 1981, em Nairobi, e que entrou em vigor em 1986, após ratificação por mais de metade dos estados do continente. Perante a deficiente ou a completa falta de proteção dos direitos humanos a nível nacional, a Carta Africana encarregou-se da proteção a nível interafricano.

 

A CARTA AFRICANA E OS DIREITOS HUMANOS EM ÁFRICA

A Carta Africana é uma adaptação dos textos internacionais de direitos humanos e dos povos a realidades e tradições africanas, insistindo no grupo e no social. Não dissocia os direitos humanos dos direitos dos povos4. Protege a pessoa, simultaneamente, como indivíduo e como integrante de um povo ou grupo determinados.

Mas a Carta Africana, que reconhece ao indivíduo e aos povos importantes direitos (direitos civis, políticos, económicos, sociais e culturais – artigos 3.º a 17.º – ao primeiro; direitos à igualdade, à existência, a receber ajuda na sua luta pela libertação da dominação estrangeira, à livre disposição das suas riquezas e recursos naturais, à paz e à segurança, e ao desenvolvimento ou aos chamados «direitos de terceira geração» – artigos 19.º a 24.º – aos segundos), impõem-lhes também um certo número de deveres.

Recomenda ao Estado, em nome dos povos, o dever de assegurar, «separadamente ou em cooperação, o exercício do direito ao desenvolvimento» (artigo 22.º, al. 2), de promover e assegurar, através do ensino, da educação e da difusão, o respeito pelos direitos e liberdades contidos na Carta (artigo 25.º), e o dever de garantir a independência dos tribunais (artigo 26.º).

O indivíduo tem deveres para com a família e a sociedade, para com o Estado e as coletividades legalmente reconhecidas e para com a comunidade internacional (artigo 27.º). O indivíduo tem o dever de não comprometer a segurança do Estado de que é natural ou residente (artigo 29.º). E, por último, tem o dever de contribuir para a promoção e a realização da unidade africana (artigo 30.º).

Com o objetivo de assegurar a proteção e a promoção dos direitos e liberdades nela contidos, assim como o respeito pelos seus deveres, a Carta criou no seio da OUA/UA uma Comissão dos Direitos Humanos e dos Povos (a partir daqui Comissão Africana ou a Comissão), definida no artigo 30.º como o órgão «encarregado de promover os direitos humanos e dos povos e de assegurar a sua proteção em África».

Ao mesmo tempo, o artigo 45.º dá à Comissão outras missões importantes, convertendo-a num órgão de controlo, investigação e conciliação, dotado de três tipos de competências5: 1) a competência ratione personae – um Estado-Membro pode apelar diretamente para a Comissão. O artigo 49.º estipula que quando um «Estado-Membro… estima que outro Estado… violou a Carta, pode apelar diretamente à Comissão», estabelecendo deste modo uma garantia coletiva dos direitos humanos em África; 2) a competência ratione materiae – a Comissão pode ter conhecimento de uma violação das disposições da Carta, no caso em que um Estado-Membro estima que outro Estado igualmente membro seja seu autor; e 3) a competência ratione temporis – a Comissão é só competente para os factos posteriores à entrada em vigor da Carta (1986). Ou seja, tudo o que foi feito por um Estado-Membro antes da data de entrada em vigor da Carta escapa à sua alçada.

Na Carta existe um silêncio total sobre a competência ratione loci da Comissão. Ignora-se se é competente para conhecer oficialmente os acontecimentos que se desenrolam em todo ou em parte do território nacional dos estados-membros.

As comunicações ou petições à Comissão procedentes dos estados-membros (depois de esgotados previamente os recursos internos) ou dos estados não membros (depois de uma série de condições de difícil satisfação), são examinadas minuciosamente após o cumprimento das condições de admissibilidade fixadas pelos artigos 51.º e 56.º da Carta. A Comissão procede então à instrução (função judicial – artigos 46.º e 51.º), à busca de um acordo amigável (função de conciliação – artigo 48.º) ou à redação de um relatório (função quasi-judicial – artigo 52.º), que pode ser publicado pelo presidente da Comissão, com a prévia decisão da Conferência de Chefes de Estado e de Governo da OUA (atualmente a Conferência da União).

Na Carta destacam-se grandes debilidades e carências. Em primeiro lugar está a dificuldade de interpretação e definição de numerosos deveres e direitos, enumerados frequentemente numa total imprecisão de linguagem (povo, etnia, valores tradicionais positivos…). Depois, há a grave limitação de direitos sob a desculpa de circunstâncias excecionais. Além disso, a Comissão Africana, instituição mais política que jurídica, torna a proteção de direitos humanos ilusória, por estar submetida à vontade dos chefes de Estado e de governo, e por consagrar as mediações e conciliações em detrimento da aplicação da lei. Há ainda a menção de «direitos de terceira geração», ou seja, a submissão dos direitos humanos aos problemas económicos e políticos. (Diga-se, de passagem, que os «direitos de terceira geração», aos quais se dá a máxima prioridade, são dificilmente realizáveis, por o Estado africano não dispor de capacidades institucionais e tecnológicas, além do subdesenvolvimento e da instabilidade política crónicos). Por último, e como lamentam alguns autores6, a Carta não menciona um direito fundamental – o direito sindical e à greve.

A Carta em si é uma conciliação, ou um compromisso, entre duas conceções: o individualismo da Declaração de 1948, que liberta o indivíduo da exclusiva dominação do grupo, libertação considerada a chave do crescimento e desenvolvimento «ótimo» da sociedade7, e o comunitarismo africano, ou os valores socialistas e humanistas das sociedades africanas. Dito de outra maneira, é uma espécie de «socialismo individualista»8, segundo a expressão do Professor Pougoué9, com uma clara preeminência da comunidade sobre as liberdades individuais ou a primazia dos deveres sobre os direitos: deveres em relação à família, aos estados, e à comunidade internacional. Ou seja, a submissão dos indivíduos aos fins coletivos. Por um lado, as liberdades individuais desaparecem frente ao dever geral de sujeição ao Estado e, por outro, a insistência nos deveres surge como uma negação do universalismo10. Em definitivo, a conceção africana de direitos humanos estrutura-se em torno de três eixos: a primazia do grupo ou da comunidade sobre o indivíduo, o equilíbrio entre os direitos e os deveres, e, na atualidade, o direito ao desenvolvimento.

Os princípios do respeito da soberania e da não ingerência nos assuntos internos de cada Estado, consagrados na Carta da OUA e na da sua sucessora, a UA, enfraquecem significativamente a Carta Africana. Vêm acrescentar-se ao caráter autoritário de muitos regimes destes países, já confrontados com os eternos problemas de desenvolvimento económico e de construção nacional.

Por comparação com o sistema europeu e americano, a Carta Africana não dispõe de um mecanismo de coação. Para proteger os direitos humanos, a Carta prevê a mencionada Comissão (artigo 30.º) como único mecanismo de controlo. Porém, a Comissão não é um tribunal ou uma jurisdição, e não dispõe de liberdade de funcionamento porque depende dos estados e o seu pessoal é nomeado pelos chefes de Estado. É um simples «centro de estudos e investigações sobre os direitos humanos»11, que pode intervir apenas a pedido da maioria absoluta dos estados-membros, e não dos indivíduos, e cujos relatórios são somente publicados mediante a decisão da Conferência de Chefes de Estado e de Governo, sempre solidários nas suas violações de direitos humanos.

Tudo isto explica a incapacidade da Carta Africana, como mecanismo jurídico da proteção africana dos direitos humanos, para impedir violações em grande escala destes direitos, como os genocídios, o último do século XX no Ruanda e o primeiro do século XXI no Darfur. As suas lacunas e desadequações constituem importantes obstáculos à promoção e proteção dos direitos humanos em África. Na realidade, está completamente impreparada para julgar os crimes internacionais.

De igual modo, quando os governos africanos adotaram, desde a década de 1980, os programas de ajustamento estrutural do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional, que retiraram ao Estado as suas funções económicas e sociais e favoreceram as privatizações, descuidando os aspetos de justiça social ou de desenvolvimento humano, os direitos humanos saíram ainda mais vulnerabilizados. Ao Estado foi confiado o papel de «polícia», para impor a austeridade e a disciplina interna a povos já muito empobrecidos.

 

O TRIBUNAL AFRICANO DOS DIREITOS HUMANOS E DOS POVOS E OS DIREITOS HUMANOS EM ÁFRICA

Elaborado em 9 de junho de 1998, o Protocolo do Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos, adotado em Uagadugu em junho de 1998 pela Conferência de Chefes de Estado da OUA, entrou em vigor a 25 de janeiro de 2004, após ratificação por 15 dos então 53 estados-membros da UA. O Tribunal é complementar da Comissão na promoção e proteção dos direitos humanos (artigo 8.º). Apresenta algumas inovações em relação à Carta Africana, como a paridade absoluta de ambos os sexos na apresentação das candidaturas aos lugares de juízes pelos estados-membros (artigo 12.º), e a independência e a imparcialidade destes é plenamente assegurada pelas disposições do direito internacional; as suas decisões são definitivas ou vinculativas, salvo aviso contrário da Conferência de Chefes de Estado e de Governo (artigo 19.º, parágrafo 2, e artigo 28.º, parágrafo 2); e tem a possibilidade de proceder à investigação no caso de violações em massa dos direitos humanos e dos povos (artigo 26.º); e a faculdade de receber as comunicações procedentes dos estados, das organizações não governamentais e dos indivíduos. O acesso dos indivíduos, precisamente, determinará a credibilidade do Tribunal Africano.

Nas palavras de Mutoy Mubiala, o Tribunal resolverá uma importante lacuna na Carta Africana mediante a criação de um órgão com caráter jurisdicional, pois «a própria natureza do Tribunal e o caráter vinculativo das suas decisões colmatarão as debilidades do processo de tomada de decisões da Comissão. Este projeto de reforma constitui, por isso, um passo decisivo na proteção internacional dos direitos humanos em África»12. O Tribunal vem fortalecer a Carta Africana, que continua a ser a pedra angular de todo o sistema normativo africano de direitos humanos. Todavia, na opinião de Heyns13, em vez de se proceder à proliferação de mecanismos (Carta Africana, Tribunal Africano, Tribunal de Justiça da UA) e tendo em conta a escassez de recursos e a dispersão de esforços, deveria fortalecer-se, em primeiro lugar, as disposições e o funcionamento da Carta Africana, e depois do Tribunal Africano, e não de ambos ao mesmo tempo. Corre-se o risco de que nenhum deles funcione com eficácia.

De todas as formas, estamos longe do fim da cultura de impunidade e do nascimento de estados de direito em África. O Tribunal tem importantes limitações: competências ratione loci (não pode julgar os crimes cometidos nos territórios dos estados não membros) e ratione temporis (não pode julgar os crimes sucedidos antes da sua entrada em vigor, janeiro de 2004).

No entanto, há que realçar como positivo encontrarmo-nos perante um tribunal à escala regional para proteger direitos e liberdades das populações. Como afirma corretamente Badara Fall14, a sua curta vida ainda não nos permite avaliar, de uma maneira objetiva, a capacidade para cumprir satisfatoriamente as funções de que o incumbem. Entretanto, os autores de crimes contra a humanidade, de guerra, de genocídio e de agressão são julgados nos tribunais internacionais, fora do continente.

 

O CONFLITO ENTRE O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL E A UNIÃO AFRICANA: «SOLUÇÕES AFRICANAS PARA OS PROBLEMAS AFRICANOS?»

Perante a incapacidade das instituições africanas para a luta contra a impunidade e para a proteção às vítimas, entregou-se à justiça penal internacional, inspirada nas leis de competência universal, o julgamento e punição dos autores dos crimes mais graves do direito internacional, como o Tribunal Penal Internacional sobre o Ruanda – TPIR15 – ou o TPI –, adotado em Roma em 17 de julho de 1998 e em vigor desde 1 de julho de 2002. O TPI está neste momento a instruir ou a julgar os crimes contra a humanidade, de genocídio, de guerra e de agressão cometidos na Libéria-Serra Leoa, no Uganda, na parte oriental da República Democrática do Congo, no Darfur, na Costa do Marfim e no Quénia, precisamente devido ao abandono ou à ausência de instrumentos e instâncias de controlo e garantia dos direitos humanos em África.

Esta realidade desencadeou uma preocupante disputa entre o TPI e alguns estados da UA16, que questionam a universalidade, a legitimidade e a imparcialidade deste. A verdade, todavia, é que desde que entrou em vigor, em 2004, o Tribunal Africano (Protocolo de Uagadugu) não julgou nenhum crime cometido no continente. E o mesmo pode dizer-se das jurisdições nacionais.

O TPI, pelo contrário, atua mediante a detenção de alguns ex-chefes de Estado e senhores da guerra (Charles Taylor, Laurent Gbagbo, Jean-Pierre Bemba, Thomas Lubanga, Germain Katanga, Bosco Ntaganda, etc.), a emissão de dois mandatos de detenção contra o Presidente do Sudão, Omar al-Bashir – pelos crimes de guerra e contra a humanidade cometidos no Darfur –, e a abertura de investigações ao Presidente e ao Vice-Presidente do Quénia, Uhuru Muigai Kenyatta e William Samoei Ruto (e meia dúzia de altos dirigentes), pela violência pós-eleitoral vivida no país em janeiro de 2008, que causou 1300 mortos e 300 mil deslocados. Neste contexto, é impressionante a declaração do Presidente ugandês, Yoweri Museveni, para quem os governos ocidentais estão a utilizar o TPI para «instalar líderes do seu agrado em África e eliminar os que não o são»17. No mesmo sentido, o juiz do TPI para a antiga Jugoslávia, o dinamarquês Frederik Harhoff, afirmou a 12 de junho de 2013 que os tribunais internacionais não são neutros e obedecem aos interesses das grandes potências. A opinião mais partilhada é que o TPI persegue apenas os responsáveis africanos ou pratica «a justiça dos vencedores», partindo das leis elaboradas pelos cinco membros do Conselho de Segurança, em especial os três permanentes ocidentais (e seus aliados), que as impõem ao resto do mundo, sem sequer, eles mesmos, as respeitarem18. Ou seja, recrimina-se o TPI por «uma espécie de racismo de funcionamento» e por ser um «Tribunal Penal Africano», ao concentrar nove dos dez casos de investigação abertos em países africanos (República Democrática do Congo, Uganda, República Centro-Africana – dois casos –, Sudão, Quénia, Líbia, Costa do Marfim, Mali), muitos deles a pedido dos governos destes países ou do Conselho de Segurança das Nações Unidas.

Todavia, não se pode ignorar o facto de os estados africanos terem sido os maiores entusiastas da ideia do TPI e os primeiros a ratificar o seu estatuto. Quarenta e sete estados do continente estiveram presentes na Conferência de Roma e 43 assinaram o Estatuto. Ou seja, a nível mundial, 34 dos 123 estados que ratificaram o Estatuto são africanos – cinco dos 18 juízes atuais do TPI são africanos, além de Fatou Bensouda, da Gâmbia, a fiscal-chefe: Fatouma Dembele Diarra, do Mali, AkUA Kuenyehia, do Gana, Daniel David Ntanda Nsereko, do Uganda, e Joyce Aluoch, do Quénia. A África converteu-se na região que mais contribuiu para a conceção e a concretização do TPI.

 

CONCLUSÃO

Os direitos humanos são cada vez mais universais e aplicam-se à espécie humana muito para além das especificidades regionais. Perante a debilidade de proteção do sistema africano, a ameaça aos ditadores e senhores da guerra do continente continuará a vir d’A Haia ou do TPI19. Consequentemente, e como bem sugere Heyns20, é necessária a instauração de um sistema legal nacional em cada país africano «que proteja (adequadamente) os direitos humanos». Em poucas palavras, é imprescindível a criação de estados de direito no continente e de um genuíno tribunal penal africano, para se conseguir dar «soluções africanas aos problemas africanos».

Apesar das críticas generalizadas contra o TPI, vindas, em particular, de alguns estados que o apelidam de instrumento do neocolonialismo, não existe uma posição comum africana, mas várias posturas. Há estados que continuam a manifestar hostilidade para com o Tribunal, não cumprindo as suas obrigações como membros ou signatários do Estatuto de Roma, quando, por exemplo, recebem no seu território Omar al-Bashir, em vez de o deter. Outros adotam uma atitude contrária, apoiando os esforços do Tribunal Internacional, como a sociedade civil e as ONG africanas que exigem globalmente a implementação do Estatuto de Roma a nível nacional e regional.

A verdade é que os governos ditatoriais, que acumulam agressões a partes da sua população para fins políticos ou eleitorais, sabem que os crimes ou violações maciças de direitos humanos não poderão continuar impunes. A hostilidade à jurisdição penal internacional, que querem substituir por um «Tribunal Penal Africano» controlado por eles, nasce dessa certeza.

 

BIBLIOGRAFIA

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Data de receção: 6 de março de 2017 | Data de aprovação: 18 de maio de 2017

 

NOTAS

1 KABUNDA BADI, Mbuyi – Derechos humanos en África. Teorías y prácticas. Bilbau: Universidad de Deusto, 2000.

2 Quase todos os países africanos dotaram-se, desde o começo da década de 1990, de novas constituições baseadas na separação de poderes, e as suas disposições referem-se tanto à Declaração Universal dos Direitos Humanos como à Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos.

3 GONIDEC, Pierre-François – «Constitutionnalismes africains». In Revue juridique et politique: indépendance et coopération. Paris. N.º 1, janeiro-abril de 1996, p. 49.

4 JOUVE, Edmond – «La protection des droits de l’homme et des peuples en Afrique». In Afrique contemporaine. Paris. N.º 131, julho-agosto-setembro de 1984, p. 19.

5 BA, Abdoul, KOFFI, Bruno, e SALHI, Fethi – L’Organisation de l’Unité Africaine. De la Charte d’Addis Abéba à la Convention des Droits de l’Homme et des peuples. Paris: Silex Editions, 1984, pp. 414-417; MBAYE, Kéba – Les droits de l´homme en Afrique. Paris: Editions A. Pedone-Commission Internationale de Juristes, 1992, pp. 233-234.

6 JOUVE, Edmond – «La protection des droits de l’homme», p. 19; OLOKA-ONYANGO, Joe – «Some reflections on the framework of economic, social and cultural rights in Africa». In The Review of International Commission of Jurists. Genebra. N.º 55, dezembro de 1995, p. 174.

7 Cf. HOFFMANN, Stanley – «The crisis of Liberal internationalism». In Foreign Policy. N.º 98, 1995, p. 160; VILLAREAL, René – La contrarrevolución monetarista. Teoría, política económica e ideología del neoliberalismo. Cidade do México: Editorial Océano, 1984.

8 Refere-se à Carta das Nações Unidas e à Declaração Universal dos Direitos Humanos e tem em conta «as tradições históricas e os valores da civilização africana» (preâmbulo).

9 POUGOUE, Paul-Gérard – «Lecture de la Carte Africaine des Droits de l´Homme et des Peuples». In MAUGENEST, Denis, e POUGOUE, Paul-Gérard (dir.) – Droits de l’homme en Afrique centrale. Colóquio de Yaundé de 9-11 de novembro. Paris: UCAC –Karthala, 1996.

10 POUGOUE, Paul-Gérard – «Lecture de la Carte Africaine des Droits de l´Homme et des Peuples», pp. 64 e segs.

11 MAVILA, Jean-Claude – «Plaidoyer pour le respect des droits de l’Homme et des peuples pour l’Afrique de l’an 2000». In MAUGENEST, Denis, e POUGOUE, Paul- -Gérard (dir.) – Droits de l’homme en Afrique centrale. Colóquio de Yaundé de 9-11 de novembro. Paris: ucac–Karthala, 1996, p. 119.

12 MUBIALA, Mutoy – «Vers la création d’une Cour Africaine des Droits de l’Homme et des Peuples». In Congo-Afrique. Kinshasa. N.º 322, fevereiro de 1998, p. 92.

13 HEYNS, Cristof – «La Carta Africana de Derechos Humanos y de los Pueblos». In La protección internacional de los derechos humanos en los albores del siglo XXI. Bilbau: Universidad de Deusto, 2003, p. 620.

14 BADARA FALL, Alioune – «La Charte Africaine des Droits de l’Homme et des Peuples: entre universalisme et régionalisme». In Pouvoirs. Vol. 129, N.º 2, 2009, p. 99.

15 O TPIR, com sede em Arusha (Tanzânia) e criado pela Resolução 955 de 8 de novembro de 1994, encarregou-se de julgar as pessoas supostamente responsáveis por atos de genocídio ou outras graves violações do direito humanitário internacional cometidas no território ruandês e pelos cidadãos ruandeses nos territórios de países vizinhos. Foi considerado o «tribunal dos vencidos», por julgar só os crimes cometidos pelas forças do Hutu Power (as ex-Forças Armadas Ruandesa – FAR – e as milícias Interahamwes, derrotadas), e não pela Frente Patriótica Ruandesa – FPR (de liderança tutsi e integrada pelos vencedores no poder depois do genocídio), tanto no Ruanda como no território da República Democrática do Congo. CRUVELLIER, Thierry – Le tribunal des vaincus. Un Nuremberg pour le Rwanda?. Paris: Calmann-Lévy, 2006.

16 Cf. cimeira extraordinária da UA em Adis Abeba, em outubro de 2013, onde os estados africanos decidiram não cooperar com o TPI manifestando, deste modo, de uma maneira clara, a sua hostilidade para com a jurisdição penal internacional.

17 Questiona-se a universalidade do Tribunal por se considerar, por exemplo, que só julga crimes cometidos em África, e em particular pelos «vencidos», e não noutras regiões do mundo.

18 MAMDANI, Mahmood – «You cannot solve political problems through the courts». In The Africa Report. Paris. N.º 51, junho de 2013, p. 25; BOISBOUVIER, Christophe – «Cour Pénale Internationale: Lubanga, coupable pour l’exemple». In Jeune Afrique. 18-24 de março de 2012, p. 12.

19 O TPI, criado para julgar os crimes mais graves que afetam o conjunto da humanidade, atua só nos casos em que as jurisdições nacionais não podem (ou se recusam) a julgar os graves crimes internacionais definidos em Roma. SMITH, Patrick – «Slow progress for African cases». In The African Report. Paris. N.º 51, junho de 2013, p. 27; MADI DJABAKATE, Mohamed – Le rôle de la cour pénale internationale en Afrique. Paris: L’Harmattan, 2014.

20 HEYNS, Cristof – «La Carta Africana de Derechos Humanos y de los Pueblos». In La protección internacional de los derechos humanos en los albores del siglo XXI. Bilbau: Universidad de Deusto, 2003, p. 596.

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