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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.54 Lisboa jun. 2017

https://doi.org/https://doi.org/10.23906/ri2017.54a01 

O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL EM ÁFRICA

Nota introdutória: O Tribunal Penal Internacional em África

 

Filipa Raimundo* e Ana Lúcia Sá**

* Doutorada em Ciências Políticas e Sociais pelo Instituto Universitário Europeu de Florença. Atualmente é investigadora no ICS-UL e Professora Auxiliar Convidada no Departamento de Ciência Política e Políticas Públicas do ISCTE-IUL. Tem publicado nas revistas DemocratizationSouth European Society and Politics, Análise Social, entre outras e nas editoras Palgrave/Macmillan, Routledge e Civilização Brasileira. Os seus interesses de pesquisa incluem a justiça transicional, democratizações e decisão política.

** Doutorada em Sociologia. Atualmente é Professora Auxiliar Convidada no ISCTE-IUL e diretora do Mestrado em Estudos Africanos. É investigadora no Centro de Estudos Internacionais (CEI-IUL). A sua investigação centra-se nas relações sociedade-Estado em regimes autoritários em África, especialmente em Angola e na Guiné Equatorial, e nas heranças coloniais nas atuais idiossincrasias sociais, culturais e políticas em contextos africanos.

 

O Tribunal Penal Internacional (o Tribunal / TPI) foi fundado pelo Estatuto de Roma em 1998, e tem sede em A Haia desde 2002. É um mecanismo global e concertado criado para que a comunidade internacional possa combater crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes de genocídio. Fazem parte do Estatuto 124 países, 34 dos quais em África.

Foram precisamente três países africanos partes no Estatuto que, em outubro de 2016, anunciaram a intenção de sair do TPI: Burundi, África do Sul e Gâmbia. Estes países sustentam o seu argumento na questão da seletividade do Tribunal, já que apenas um dos casos julgados até hoje se reportou a um país não africano (o conflito na Ossétia do Sul, Geórgia, em 2008). O Burundi foi o primeiro a manifestar esta intenção, num contexto doméstico de desrespeito pelas instituições democráticas por parte do incumbente Pierre Nkurunziza e de insistência por parte do TPI em investigar crimes de perseguição política no país. Seguiu-se a África do Sul e, por fim, a Gâmbia, país de origem da atual procuradora Fatou Bensouda. Os argumentos centrais destas tomadas de posição são a alegada prática de justiça de vencedores e um comportamento discriminatório por parte do TPI, críticas que já haviam sido feitas pela União Africana (UA) ao Tribunal. O caso mais emblemático da hostilidade da UA em relação ao TPI diz respeito ao mandato de captura internacional por genocídio e crimes contra a humanidade a Omar al-Bashir, Presidente do Sudão desde 19891. Aquando da 25.ª sessão ordinária de chefes de Estado e de governo da UA, em Joanesburgo em junho de 2015, a África do Sul recusou extraditá-lo.

As declarações de intenção de abandono do TPI por parte da África do Sul, Burundi e Gâmbia receberam grande destaque mediático no final de 2016, mas, ainda que a desintegração regional e o abandono de tratados não seja um fenómeno sem precedentes, ele tende a ser pouco comum. Os recentes desenvolvimentos no caso dos países africanos versus TPI parecem apontar nesse sentido.

Em janeiro de 2017, a UA aprovou uma resolução não vinculativa designada «Estratégia de Abandono do TPI» que parecia apelar ao abandono em massa do Tribunal2. No entanto, aquela resolução declarava acima de tudo a intenção de propor ao Conselho de Segurança das Nações Unidas a reforma daquele organismo, particularmente no que diz respeito ao conceito de imunidade e impunidade. Não só a posição assumida pela UA não remete de forma clara para o abandono, como essa posição não é consensual entre os seus estados-membros. Por exemplo, o Botswana, o Gabão e a Tanzânia têm demonstrado diversas vezes o seu apoio ao TPI, e a Nigéria, o Senegal e Cabo Verde apresentaram reservas formais relativamente à resolução aprovada. Para além disso, o novo Presidente da Gâmbia, eleito em dezembro, decidiu reverter a decisão do seu antecessor3, bem como a África do Sul anunciou em março que iria rever a sua decisão na sequência de o Supremo Tribunal sul-africano ter declarado o abandono inconstitucional e inválido, mesmo que isso não signifique necessariamente que a África do Sul irá permanecer no TPI4.

Existe, portanto, um historial que aponta para uma relação conturbada entre o TPI e certos países africanos, cujo desfecho é ainda incerto. Na realidade, a decisão de estados africanos não cooperarem com o TPI não é recente, mas pertence a um modo de relacionamento entre estes estados e A Haia, sede de um tribunal acusado de ser manietado pelas grandes potências, pautado pela parcialidade e humilhação a líderes africanos e, também, pela imposição neocolonial que faz ao mundo não ocidental. Quinze anos após a sua fundação, interessa refletir sobre os desafios que se colocam e apresentar perspetivas sobre a relação existente entre o TPI e instituições e países africanos. Este dossiê tem esse objetivo e traz abordagens multidisciplinares, do direito às relações internacionais, sobre o TPI, as questões que enfrenta e o papel de jurisdições penais regionais africanas de proteção dos direitos humanos.

No primeiro artigo deste dossiê, Alexandre Guerreiro, após apresentar a história da criação do TPI e debater os seus fundamentos, reflete sobre a atual posição do Tribunal, que oscila entre o desinteresse e a manifesta vontade de sair por parte de estados partes no Estatuto de Roma, alinhados com posições da UA. O autor aponta algumas fragilidades ao TPI, como o ónus que se coloca sobre os estados no momento em que um condenado é colocado em liberdade, não estando previstos mecanismos de proteção após julgamento e após libertação. Refere os desafios que se colocam em termos de se pensar uma justiça internacional e no contrabalanço aos sistemas nacionais e aos jogos domésticos de interesses e de impunidades, mas também salienta a possibilidade de justiça em contextos nos quais reina a impunidade.

O TPI é um tribunal de vigência permanente, que tem uma competência potencialmente universal e que atua com base no princípio de complementaridade com os tribunais nacionais, cingindo-se ao julgamento de indivíduos, como podemos ler neste primeiro artigo de Alexandre Guerreiro. Patrícia Galvão Teles e Daniela Martins, no segundo artigo deste dossiê, debatem o princípio da complementaridade como um dos desafios que atualmente se coloca ao tribunal. A complementaridade cria-se por mecanismos regionais, como o Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos (TADHP), e leva a terem de questionar-se a forma como os mecanismos regionais e nacionais trabalham com o TPI, nomeadamente considerando que este possa intervir apenas quando as demais jurisdições não conseguem/podem atuar ou atendendo a que as legislações nacionais deverão ser consentâneas com os princípios do TPI.

A complementaridade é um dos quatro desafios que se colocam ao TPI, de acordo com as autoras. Os restantes são a universalidade, a cooperação e o crime de agressão. Em primeiro lugar, universalidade do Estatuto de Roma coloca-se como uma fragilidade do TPI a partir do momento em que continua a ser necessário criarem-se tribunais ad hoc. Em segundo lugar, no que respeita à cooperação, o TPI depende da cooperação dos estados partes. O caso do Presidente sudanês Omar al-Bashir, que já referimos nesta nota introdutória, mostrou como a cooperação é ainda um premente desafio, já que é exemplo da tensão entre a imunidade de um chefe de Estado, as proteções nacionais e a justiça internacional. Este não é o único caso de detenções e processos de entrega pendentes. Saif Al-Islam Gaddafi, posto em liberdade pela justiça líbia no dia 10 de junho de 2017, ou o senhor da guerra ugandês Joseph Kony são dois exemplos de indivíduos aos quais o TPI ainda não acedeu. Por fim, o crime de agressão como crime internacional relevante, a par de crimes contra a humanidade, liga-se ao princípio da cooperação e ao papel da Organização das Nações Unidas (ONU) como promotora do Estado de direito e da paz e à importância da posição dos membros permanentes do Conselho de Segurança como fundamentais para o funcionamento do próprio TPI.

Os temas da universalidade, da cooperação e da complementaridade são recuperados no artigo de Mbuyi Kabunda, que detalha a ineficácia das jurisdições nacionais e regionais africanas na proteção dos direitos humanos, tanto ao nível legal como de atuação. De acordo com o académico congolês, assiste-se, no continente africano, à impunidade, ao silêncio e ao pouco respeito pelos direitos humanos, mesmo considerando regimes democráticos e os mecanismos e textos próprios, como a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (ou Carta de Banjul) e o TADHP, que nunca julgou um crime. Aliás, o Protocolo de Malabo, que cria o Tribunal Africano de Justiça e Direitos Humanos e alarga a jurisdição do tribunal a crimes de justiça penal internacional, como genocídios, tráficos diversos ou crimes de guerra, ainda não foi ratificado por nenhum Estado. De acordo com Kabunda, a debilidade da Carta reside na consagração do princípio de não ingerência da UA e no cariz autoritário de muitos regimes e de estados que enfrentam problemas de desenvolvimento e de construção estatal. No seu artigo, destaca as características dos sistemas normativos africanos de direitos humanos como forma de se compreender a tensão entre alguns governos africanos e o TPI.

A máxima «soluções africanas para problemas africanos», que revela a ineficiência das instituições africanas na proteção de vítimas e na luta contra a impunidade no artigo de Mbuyi Kabunda, é aprofundada por Rui Garrido, cujo artigo trata da criação de um tribunal penal africano como mecanismo institucional mais forte no continente no combate à impunidade e como uma resposta às estratégias de não cooperação com o TPI. O artigo trata da criação do Tribunal Africano de Justiça e Direitos Humanos, resultado da fusão do Tribunal de Justiça da União Africana com o TADHP, e das perspetivas que se abrem em termos de proteção dos direitos humanos no continente. O autor conclui que este mecanismo pertence a uma estratégia de reforço de instituições africanas e de demonstração na arena internacional de que o continente dispõe de instituições fortes e consentâneas com os princípios internacionais, não deixando de destacar a possibilidade de replicar o modelo africano de proteção de direitos humanos a outros sistemas regionais. No entanto, coloca também algumas dúvidas que a criação de um tribunal penal africano pode suscitar, nomeadamente ao nível da relação que terá com o TPI que, como se lê nos cinco artigos deste dossiê, tem sido alvo de repúdio por alguns dos países que compõem a UA.

Por fim, Filomena Capela apresenta o caso de Jean-Pierre Bemba, líder do Movimento de Libertação do Congo e antigo Vice-Presidente da República Democrática do Congo, condenado pelo TPI a 18 anos de prisão pelo envolvimento do seu exército no conflito na República Centro-Africana que opôs o então Presidente Ange-Félix Patassé a François Bozizé, antigo chefe das Forças Armadas e líder do golpe de Estado de 2003. Jean-Pierre Bemba foi um dos quatro condenados pelo TPI até ao presente (os restantes são os também congoleses Germain Katanga e Thomas Lubanga e o maliano Ahmad Al Faqi Al Mahdi, membro da milícia tuaregue Ansar Dine que destruiu património histórico em Tombuctu). Filomena Capela examina a forma como o caso contra Jean-Pierra Bemba se construiu no TPI como um processo destinado a condenar o líder por todo o movimento e como processo condenatório de crimes sexuais enquanto arma de guerra. A exemplaridade da condenação e a sua ligação ao contexto político da instável região dos Grandes Lagos permitiu criar jurisprudência nestes dois âmbitos.

Todos os autores destacam a importância do TPI para a proteção dos direitos humanos e no quadro das instituições internacionais, mesmo considerando problemas de credibilidade (ainda há detenções pendentes) e o incumprimento de objetivos para os quais fora criado. O TPI é, ainda, e atendendo à possível complementaridade com as jurisdições penais regionais e nacionais, um mecanismo que a comunidade internacional tem para proteger os cidadãos de abusos de poder e de crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes de genocídio.

 

NOTAS

1 Sobre este caso, ver MILLS, Kurt – «“Bashir is Dividing Us”: Africa and the International Criminal Court». In Human Rights Quarterly. Vol. 34, N.º 2, 2012, pp. 404-447.

2Withdrawal Strategy Document. União Africana. (Consultado em: 20 de junho de 2017). Disponível em: https://www.hrw.org/sites/default/files/supporting_resources/ICC_withdrawal_strategy_jan._2017.pdf.

3 «Gambia announces plans to stay in International Criminal Court». In Reuters. (Consultado em: 20 de junho de 2017). Disponível em: http://www.reuters.com/article/us-gambia-justice-ICC-idUSKBN15S2HF.

4 «ICC Withdrawal revoked after Court ruling: un». In Aljazeera. (Consultado em: 20 de junho de 2017). Disponível em: http://www.aljazeera.com/news/2017/03/ICC-withdrawal-revoked-court-ruling170308084628230.html/.

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