SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número52A impoliticidade, forma alternativa de ler a política ou de fazer (a) política? índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.52 Lisboa dez. 2016

 

RECENSÃO

Como nasce um Estado-Nação? O papel da Igreja Católica timorense na denúncia do genocídio e do abuso dos direitos humanos por parte da Indonésia

 

Moisés da Silva Fernandes

Investigador da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

 

Têm sido escritos, principalmente em inglês e português, artigos e livros científicos sobre vários aspetos da ciência política, da sociologia, da antropologia e das relações internacionais em Timor‑Leste, mas não têm sido escritas monografias nem estudos sobre as abordagens religiosa, moral e, nas palavras do autor deste livro, sobre «a alegria de ser útil, de estar com o povo, de amá‑lo» (p. 15). Aqui está um livro que relata a vivência de um padre português e que acompanha, praticamente, os vinte e quatro anos da anexação da Indonésia. É um testemunho vivo e direto do Pe. José Alves Martins, da Sociedade de Jesus, e foi publicado pela Editorial Apostolado da Oração (A.O.), sediada em Braga, em 2014.

Em primeiro lugar temos o prefácio do Pe. Manuel Morujão, S.J., que nos fala das quatro décadas em que este padre jesuíta viveu em Timor‑Leste. Não foi uma vida pacífica, porque «vai encontrar cenários de invasão estrangeira e de guerra cruel» (p. 11). Mas de imediato ele tece uma «história do pequeno grande povo de Timor, que conheceu os horrores da guerra e da liberdade humilhada e agrilhoada, durante cerca de um quarto de século, nos finais do século XX» (p. 11). O que interessa é que Timor‑Leste conseguiu, após vinte e quatro anos de repressão, violações constantes das regras mais básicas dos direitos humanos, livrar‑se da Indonésia e ser um Estado‑Nação independente.

O Pe. José Maria Alves, S.J., afirma que a sua ida para o Timor Português deveu‑se ao convite do provincial dos jesuítas, Pe. Júlio Fragata, para ir a Timor, por dois ou três anos, na fase final do curso de Teologia Espiritual na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma. Após alguns dias de recolhimento e meditação, lá foi para o Timor Português, no dia 23 de setembro de 1974.

Recorda que quando aterrou no pequeno aeródromo de Díli, na altura conhecido como Humberto da Cruz, hoje como Aeroporto Internacional Presidente Nicolau Lobato, foi saudado pelos «amigos de Seminário» entre os quais estavam o Pe. João Felgueiras, o Pe. Nuno Viana, o Ir. Daniel Ornelas e, finalmente, o Ir. Silva Pereira. Antes de partir para o Seminário Menor de Nossa Senhora de Fátima, passou pela Câmara Eclesiástica para saudar os padres que não puderam ir ao aeródromo. Entre os vários padres, lembra‑se de ter contactado o Pe. Martinho da Costa Lopes (p. 26), que mais tarde, em 1977, passou a administrador apostólico de Timor, visto que o bispo de Díli, D. José Joaquim Ribeiro, teve de resignar devido às violações constantes dos mais básicos direitos humanos pelas forças invasoras da Indonésia.

No quadro político que traça, inclui a existência dos três grandes partidos políticos. Um que pretendia manter os laços a Portugal e «que veio pedir‑me ajuda para a constituição do seu ideário político. Disse-lhe que de política nada percebia e encaminhei essa pessoa para um jurista português que fazia o serviço em Timor» (p. 32). Este partido, a União Democrática Timorense (UDT), gradualmente distanciou‑se desta posição e optou por defender a integração pela Indonésia. Outro, a Associação Social‑Democrática Timorense (ASDT), transformou‑se em Frente de Libertação de Timor‑Leste Independente (Fretilin), e pretendia a emancipação unilateral de Timor‑Leste. E, finalmente, a União dos Povos Timorenses (UPT), que rapidamente se tornou na Associação Popular Democrática Timorense (Apodeti) e que aspirava a uma anexação por parte da Indonésia.

Voraz foi o ano de 1975. Os acontecimentos sucediam‑se de uma forma estonteante. O governador de Timor‑Leste, coronel Mário Lemos Pires, retirou‑se, com toda a sua administração civil e com as forças armadas, que eram constituídas por cerca de 80 paraquedistas portugueses, para Ataúro. «Antes foi uma retirada estratégica e inteligente» (p. 33), pois isto impediu de se tornar

«refém das tropas indonésias, com consequências imprevisíveis. E não haveria ninguém que o defendesse: nem Portugal, sem qualquer capacidade de intervenção depois do 25 de abril, nem a Austrália, interessadíssima naquele pedaço de terra riquíssimo em petróleo, gás natural e outras riquezas minerais e florestais, e com praias de sonho para os turistas» (pp. 33‑34).

Confrontado com dúvidas sobre se deveria sair ou permanecer no Timor «Português», aconselhou‑se com o padre francês Bernard Gouin, que andara pela China continental e já estava habituado a grandes transformações político‑sociais, e que lhe disse, no dia 5 de setembro de 1975, «(f )aça como entender, mas nestas circunstâncias os jesuítas são os últimos a sair» (p. 44). Dirigiu‑se então à capela e, posteriormente, ao seu quarto e escreveu ao bispo de Díli, D. José Joaquim Ribeiro, que «pensei melhor e permaneço em Díli» (Ibidem). Todavia, o Pe. Bernard Gouin viria a falecer no dia 9 de setembro e o bispo veio prestar as suas últimas homenagens ao sacerdote perecido, tendo presidido à missa.

Na noite do dia 7 de dezembro de 1975, pela madrugada, começou a ver «passar por cima de Díli vários aviões que lançaram centenas de paraquedistas» (p. 53), começando a anexação de Timor‑Leste. Entretanto, no dia 13 de dezembro foram alvo das forças de ocupação javanesas: «destruindo a sacristia, parte da capela e várias salas do Seminário» (p. 55), que ficou em ruínas.

Os atropelos dos indonésios foram tantos, que nos primeiros anos se trata de autêntico genocídio. «Segundo o censo de 1975, a população de Timor chegaria a 600.000 habitantes. Em 1980, eram 400.000. Cometeu‑se, proporcionalmente, o segundo maior genocídio da história recente, comparado com o genocídio nazi exterminando 6 milhões de judeus» (p. 65). Porém, «a fé do povo, a oração do povo, o martírio do povo que levaram Deus a intervir, dando força, coragem, heroicidade e esperança a um povo martirizado, espezinhado. A maior parte das famílias rezava três terços por dia e orava em frente do pobre e pequeno oratório que cada família possuía» (Ibidem).

Em setembro de 1976 foi aprender o bahasa indonésio, a língua oficial da Indonésia, para agradar aos militares indonésios. Entretanto, os padres Martins e Felgueiras começaram a reabrir o antigo Colégio Bispo Medeiros e foram de imediato propor a sua reabertura definitiva a monsenhor Martinho da Costa Lopes, administrador apostólico desde outubro de 1977, que aceitou, após três anos de encerramento. Finalmente, reabriu no dia 13 de maio de 1978. Por outro lado, abriu o Externato de São José em 1978, devido aos padres Leão da Costa e Domingos Cunha, tendo funcionado até 1992 com o ensino em português.

Em 1982, uma senhora timorense casada com um chinês em Jacarta, propôs ao Pe. José Alves Martins, S.J., que levasse um «rádio de transmissões» para o «interior» de Timor‑Leste. Apesar de ser um risco que poderia conduzir ao seu fuzilamento, ele trouxe‑o até Díli. Posteriormente, alguém tinha de o transportar até Baucau. Para isso, falou com o administrador de Díli, D. Carlos Filipe Ximenes Belo, dizendo‑lhe que tinha «livros religiosos» para o Pe. João de Deus. Após este encontro, D. Ximenes Belo transportou a encomenda no seu automóvel isento de inspeções, num total de quinze, entre Díli e Baucau. O rádio de transmissões foi entregue ao comandante Xanana Gusmão, que pode durante cinco anos comunicar com o exterior.

Em agosto de 1986, uma destacada alta personalidade da Cúria Geral da Companhia de Jesus veio a Jacarta para se encontrar com os dois padres portugueses, o próprio, e o Pe. João Felgueiras, para ver se os dois iam embora para Portugal. Havia uma grave tensão entre o Estado da Santa Sé e a Indonésia, porque não reconhecia Timor como a 27.ª província. Houve uma onda de protestos «levada a cabo pelos antigos seminaristas e muitos leigos católicos» (p. 88). Isto levou a que a alta personalidade tivesse uma reunião com os antigos seminaristas: «suavizando os ânimos, (e) que os dois padres continuariam em Timor» (p. 88). Mas, passado um tempo, receberam uma carta do superior geral dos jesuítas informando que os dois padres e o Ir. Ornelas ficavam a pertencer à Província dos Jesuítas da Indonésia, numa decisão unilateral.

Porém, em 1986 dirigiu‑se ao Vaticano e de forma sub‑reptícia a Portugal, com um passaporte provisório passado pelo consulado português em Roma (p. 91), conseguindo obter os apoios necessários.

Entretanto, a 12 de outubro de 1989, o Papa João Paulo II veio a Timor‑Leste. A parte timorense pretendia que o Santo Padre «beijasse a terra», como é costume ao chegar a um novo país. Mas os representantes do Estado da Santa Sé e indonésios opuseram‑se, tendo ambos defendido que Timor‑Leste era uma província da Indonésia. Foi construído um altar e na sua base colocada uma almofada com «um crucifixo em cima. Sua Santidade chegou, ajoelhou‑se e beijou a cruz. Os timorenses conseguiram o que desejavam: que o Santo Padre beijasse o solo timorense!» (p. 102).

No final da eucaristia, o Papa vê um tumulto no local onde estava a multidão e pergunta ao administrador de Díli, D. Carlos Filipe Ximenes Belo, o que se passava. E a resposta do prelado foi que: «(s)ão os jovens que não concordam com a integração de Timor na Indonésia» (p. 103). Neste começo das grandes manifestações dos jovens, muitos deles procuraram, obviamente, refúgio na casa do administrador de Díli e nas paróquias; no entanto, as forças armadas da Indonésia foram‑‑nos prendendo. Porém, muitos escaparam para as montanhas e juntaram‑se à guerrilha.

Veio o referendo e o sim ganhou, deixando os indonésios muito enfurecidos, com a situação que levou à intervenção das forças internacionais. Depois de dois anos e meio à frente de Timor‑Leste, o brasileiro Sérgio Vieira de Mello, e o secretário‑geral das Nações Unidas, Kofi Annan, no dia 22 de maio de 2002, proclamaram a independência de Timor‑Leste. O Pe. José Alves Martins, S.J., estava tão cansado que veio a Portugal para descansar e não assistiu à cerimónia de independência.

Porém, ele interroga‑se como os

«Senhores Núncios que conheci em Jacarta, monsenhores, secretários, jesuítas cultos e sábios afirmavam: A Indonésia jamais sairá de Timor. Não tendes outra alternativa: aceitar e colaborar ou fugir… Eu não contestava, mas jamais duvidei que Timor, um dia, viesse a tornar‑se independente. Poderiam ser necessários mais 20, 30 ou 50 anos… mas a vontade forte dos timorenses acabaria por vencer» (p. 193).

Faz uma referência especial ao Ir. Daniel Ornelas. Fala do primeiro encontro que tiveram no Seminário Menor de Nossa Senhora de Fátima, em Dare, e depois aos vinte e quatro anos de convivência em comum. Como ele diz, o «Irmão Ornelas exerceu um excelente serviço de ajuda aos mais pobres ainda durante a ocupação indonésia, visitando cada dia os nove Postos Clínicos de Saúde nas povoações entre Dare e Aileu» (p. 205). Finalmente, veio a Portugal em maio de 2009, acabando por morrer de doença no dia 4 de setembro de 2009.

Apesar de o autor não o mencionar, sabemos que, em 1973, a população timorense era 28 por cento católica e a restante, animista1. Durante os vinte e quatro anos da invasão indonésia, 96,9 por cento da população torna‑se católica2. Foi uma autêntica revolução nas mentalidades timorenses. A Igreja Católica tornou‑se na única instituição exógena que deu voz à autodeterminação, tanto interna, como externamente. Além disso, rejeitaram tudo o que fosse animismo. Isto faz de Timor‑Leste o primeiro país católico na Ásia, seguido pelas Filipinas, com 82,9 por cento de população católica3. Razão pela qual as três dioceses de Timor‑Leste dependem diretamente do Estado da Santa Sé, desde 1977, quando o bispo de Díli resignou; mas estabeleceu a Conferência Episcopal Timorense, no dia 28 de março de 2012, tendo como seu presidente o bispo de Baucau. Como disse o prelado de Baucau, D. Basílio do Nascimento: «A Igreja começa a ter a voz interna, mas também a nível externo.»4 Por outras palavras, a política oficial da Santa Sé que era a favor de que o administrador da diocese de Díli participasse na Conferência Episcopal dos Bispos Católicos da Indonésia (Konferensi Waligereja Indonesia) cessou, com a criação da Conferência Episcopal Timorense.

Todavia, o autor termina com um sério aviso para os decisores políticos de Timor-Leste. «Timor é riquíssimo em petróleo e gás natural e as grandes potências, direta ou indiretamente, através dos seus satélites, procuram explorar esta riqueza. Saberá Timor gerir a sua política e governação entre os dois gigantes, a Indonésia e a Austrália? Esperemos que sim» (p. 179). Mas há outros países da «região como a Coreia do Sul e a China» (p. 51) que têm grandes ambições.

 

NOTAS

1Cf. Fernandes, Moisés Silva – «A tentativa gorada de reaver o Timor Português pelo Partido Católico da Indonésia, em 1962: Franciscus Xaverius Seda e a comissão eclesiástica da Indonésia que recusou o pedido de integração pacífica do Timor Português na Indonésia». In Relações Internacionais. N.º 49, 2016, p. 95.

2The World Facebook – CIA.

3Ibidem.

4«Timor: D. Basílio do Nascimento, presidente da Conferência Episcopal de Timor-Leste». (Consultado em: 2 de setembro de 2015). Disponível em: www.youtube.com/watch?v=pD2nUz2lmbo.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons