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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.52 Lisboa dez. 2016

 

RECENSÃO

 

A impoliticidade, forma alternativa de ler a política ou de fazer (a) política?

 

António Horta Fernandes

Docente do Departamento de Estudos Políticos da FCSH-NOVA. Estrategista.

 

Alfonso Galindo Hervás é um filósofo murciano, com formação teológica de base, que nem sempre salienta, e influenciado pela história conceptual da escola alemã de Bielefeld (onde pontuaram Reinhart Koselleck, e mais tarde Jörn Rüsen, que lhe sucedeu), há muito dedicado a refletir sobre os pensadores impolíticos, nomeadamente Agamben, a quem dedicou uma obra intitulada Política y Mesianismo (2005). Escreveu ainda, entre outros, La Soberanía. De la teologia política al comunitarismo impolítico (2003), e, mais recentemente, La Cultura Política Liberal (2014).

Na presente obra, Galindo Hervás procura fazer um levantamento crítico de importantes pensadores impolíticos contemporâneos, o já citado Giorgio Agamben, mas também Roberto Esposito, Jean‑Luc Nancy e Alain Badiou. Como refere, o pensamento impolítico parece apresentar traços comuns, permitindo ao autor integrá-los numa determinada constelação política, distinguindo‑os de outros, próximos, antifundacionalistas políticos, como o neopragmatista Richard Rorty, glosado na obra, na medida em que a defesa da contingência contra todos os pretensos fundacionalismos políticos acaba por ser mais radical.

Na realidade, a proposta dos pensadores impolíticos é marcadamente ontológica. Ao concebê‑la dessa forma, e servindo‑se do jargão ontológico para moldar as suas teses, para exprimir as condições de possibilidade de toda a política, os impolíticos acabam por se afastar de filósofos como Rorty, que encaram a utilização desse jargão, mesmo que se trate de uma ontologia aberta, definido pelo «excesso do acontecimento frente ao possível e ao previsível» (p. 21), como uma cedência última ao pensamento representacionista; e pior, no caso da política, dando prioridade ao discurso filosófico sobre as práticas concretas e históricas de ensaio e erro com que se teceriam as vivências políticas, ainda que o objetivo de antifundacionalistas e impolíticos, seja o mesmo: a denúncia da injustiça e a promoção de uma lógica política emancipatória.

Certamente Agamben ou Esposito objetariam a Rorty que este estaria ainda preso, apesar da sua boa vontade, aos ditames do pensamento liberal, considerado por eles paradigmaticamente como precipitado último (aqui com influência de Heidegger, tão bem rastreada por Galindo Hervás) de uma metafísica fundacionalista e, portanto, opressiva. O pragmatismo como mera gestão sem compromisso ontológico das práticas discursivas, logo último avatar da era da técnica, do declínio da metafísica.

O que defendem então estes pensadores impolíticos e o que é a impoliticidade? O conceito de impolítico refere não uma exterioridade política, ou uma emancipação pós‑política por fim alcançada, mas a reivindicação da especificidade última do político, colonizada a sua esfera por outros âmbitos, sejam o económico, o ético, ou o jurídico (p. 39). E o que é ser impolítico? O impolítico é o lado negativo do político, o resto inapropriável, excedente, não passível de produção, que caracteriza por dentro a esfera política. Distinguindo entre o político e a política, o impolítico é a desconstrução crítica radical de todas as mediações políticas, instituições concretas, assentes sobre uma impropriedade constitutiva, sobre uma contingência decisionista (influência de Carl Schmitt) que pretendem respaldar como universal. Toda a política assenta numa lógica de poder a que há que contrapor exemplos contrafácticos, eles mesmos irrepresentáveis, impossíveis de materializar sob pena de se transformarem em novos fundamentos infundados e opressivos.

Sintetizando, e de acordo com o filósofo espanhol, pensamento impolítico é aquele que para se subtrair ao terror produzido pela política do Estado soberano ou à lógica capitalista, sugere a experiência comunitária, cujos critérios de aproximação serão basicamente a irrepresentabilidade e a passividade, não deixando assim espaço à figura de um representante soberano nem à de um chefe-de-obra, porquanto a comunidade assim experienciada não pretende nenhuma afirmatividade no concerto das nações, nem sequer face aos seus membros, aos quais expurgaria a sua vitalidade. O simples ser ou pôr em comum as singularidades que caracterizam uma tal comunidade é sempre ferido de morte por uma tal identidade ostensiva e superveniente; identidade essa que teria definido toda a política moderna senão mesmo todo o exercício histórico da política. Daí que, não obstante os pensadores impolíticos fazerem uma análise crítica radical do universo político moderno, os seus pressupostos e as suas conclusões de natureza ontológica ou metafísica, digamo‑lo, transbordam desse mesmo universo, ou reduzem‑no, como unilateral, quando não perigoso, quando se trata de compreender matérias, à primeira vista, em grande parte políticas, como é o caso da estruturação de uma comunidade. A expressão (espositiana) impolítico, glosada por Alfonso Galindo, pretende jogar tanto com o dentro do político como com a impossibilidade do político que se infere da sua crítica radical.

Desse modo, o impolítico não pode deixar de ser índice e fator de um resto refratário à representação e à ordem política que a esfera política acarreta consigo (p. 19). O impolítico é, pois, refere, Galindo Hervás citando Esposito, «a margem impensada, o coração silencioso, o ponto vazio da política» (p. 35). A impossibilidade de a política e de o político coincidirem, de o seu ser coincidir consigo mesmo, a não ser no puro domínio do acontecimento, do humilde deixar ser da potência, do que por fim há de chegar, do tempo messiânico, em instância agambeniana, completamente exterior a qualquer mediação histórica.

É justamente por aí que Galindo Hervás distende os seus racionais críticos, ao revelar certa impotência constitutiva do pensamento impolítico, certa incapacidade, não para denunciar as lógicas de poder, fazem-na os pensadores impolíticos com grande profundidade, mas para apresentar soluções em torno da facticidade do possível, para além da negação total do que há.

Em traços gerais, é este o quadro em que Galindo Hervás apresenta a dinâmica do pensamento impolítico, sempre ressalvando que os quatro pensadores avaliados são bastante distintos, exigindo a sua convergência um grau de abstração que nem sempre faz justiça a todos os matizes, embora permita encontrar traços comuns. Cremos que, desse ponto de vista, o ensaio é inteiramente conseguido.

O excurso de Galindo Hervás está então estruturado em três blocos. No primeiro deles faz a dissecação do conceito de impolítico, inserindo‑o no contexto francês e italiano em que nasceu, bem como a apresentação das diferenças entre a impoliticidade, o pós‑fundacionalismo e o afirmacionismo, correntes que lhe são próximas, e das quais partilha alguns dos argumentos, como já vimos no caso de Rorty. Ainda neste primeiro bloco, analisa-se a distinção entre o político e a política, referida à diferença ontológica de matriz heideggeriana; chama‑se a atenção para a importância dada pelos impolíticos a uma comunidade não figurável numa democracia a haver – exprimindo quase uma ideia reguladora kantiana, não fosse também Kant devedor do que podemos esperar, a um outro nível, o da história sagrada, mas que no seu caso dificilmente se imiscuiria com a história profana (daí a dificuldade da sistemática histórica e da concretização de um Endezweck, de um fim final em Kant); esquadrinha‑se a relevância que para o pensamento impolítico tem o teorema da secularização, da teologia política e do seu contrafáctico, outra vez infigurável, o do messianismo impolítico; e por fim, estabelece‑se a relação do pensamento impolítico com a histórica conceptual.

O segundo bloco rastreia algumas das principais fontes concretas e respetivas problemáticas, de que o pensamento impolítico é herdeiro. Referimo‑nos a Heidegger, Carl Schmitt, Benjamin e Foucault. Salientando que no caso de Schmitt a influência surge por oposição. Fazer do decisionismo e da representação soberana ponto de ordem numa modernidade que perdeu as suas fontes legítimas de autoridade, não obstante o reconhecimento da contingência desse ponto de ordem, é precisamente a operação liminarmente rejeitada pelos impolíticos. Schmitt teria feito a genealogia da impropriedade de todo o poder instaurado, por isso não parece haver forma de procurar resolver favoravelmente essa impropriedade radical de todas as instituições político‑jurídicas, as quais bloqueiam o puro ser‑com, o ser‑em‑relação, a vivibilidade sem mais, a comunhão de iguais que seria o fator própria e acabadamente político.

O terceiro bloco é dedicado a cada um dos pensadores em particular. À tentativa de desativar os mecanismos soberano‑governamentais em Agamben, expondo a sua inaceitabilidade, no fundo, expondo as feridas abertas e nunca cicatrizadas das suas vítimas. À oposição entre imunidade e comunidade em Esposito, quer dizer, à diferença entre o ser como encapsulamento em si dos indivíduos e o ser como potência inclinativa, impessoal, expansiva de vida. Ao transbordamento ontológico da política em Nancy numa comunidade estranha a toda representação, a qualquer identidade, a qualquer ideologia operativa, em que se dá a pura facticidade de cada um de nós «enquanto existentes singulares cujo ser não é senão ser‑juntos, pura exposição, aberta disposição» (p. 198). Ao puro acontecimento da política, com base na hipótese comunista renovada, frente ao Estado de ordem em Badiou, tendo como ponto culminante o capital‑parlamentarismo, no qual o sistema parlamentar, apenas gerindo interesses particulares está ao serviço do capital que o reconhece como único racional político válido.

Pensamos que a leitura de Galindo Hervás é certeira, desde logo quando aponta a falta de historicidade de algumas grandes narrativas de ontologia política do pensamento impolítico, embora não se perca nada em tentar a análise subterrânea, detetar os índices secretos da ação histórica. Seja como for, é visível a displicência dos impolíticos no forjar de alguns anacronismos – como, por exemplo (não mencionado por Galindo Hervás), quando Agamben, ao retroprojetar a soberania aos antecedentes romanos, menospreza a perpetuidade, acabando por retirar carga de absoluto ao absoluto da soberania, passe a expressão, só para não conceder que se trata de uma figura da Idade Moderna, ainda que com antecedentes arcaicos. Galindo Hervás não o diz também, mas julgamos que esteja de acordo, que o messianismo impolítico apenas faz sentido dada a transfiguração interna ao homem, que torna «ocioso» o messias, e que, portanto, a não ser que os pensadores políticos reativem uma teologia milagreira, não lhes resta outro remédio, se querem pensar um contrafáctico que o seja verdadeiramente (a pura potência que nunca se atualiza, distinto da potência que se esgota em ato, não só reduz a sua potencialidade, como se torna maléfica no sentido próprio de impossibilitar) que aceitar a construção do possível.

Todavia, e esta é agora uma crítica a Galindo Hervás, que julgamos cada vez mais próximo de um liberalismo rortiano, a construção do possível pode muito bem ser uma construção de grandes miras, o ativar daquilo que é um inaparente deixar ser do nosso ser mais próprio, da metanoia. A construção como um cair em conta, um cair em si daquilo que nos espera, com a consequente desarticulação messiânica do tempo ordinário. O que diriam os impolíticos, passe os seus exageros e às vezes a sobreposição cega entre regimes totalitários e outros que o não são (embora retratando‑se, mas só muito tempo depois, Badiou chegou a defender os khmers vermelhos no auge da sua orgia sanguinária), é que se o possível quer dizer por entre a ordem instituída então já está sempre corrompido. Na realidade, o liberalismo, na sua conformação capitalista, atingiu um tal esmero e sofisticação nos modos de sujeição, fazendo‑o passar por emancipação e por vida em liberdade, supostamente a pura negação da barbárie totalitária, e isso é talvez o mais inquietante, que a sua pompa glorificante, a sua aclamação uníssona feita espetáculo, não pode deixar de ser denunciada, apontando a nudez da realeza, o oco da sua majestade.

A necessidade de um verdadeiro novum parece ser o repto. Mas o verdadeiro novum só surgirá quando caírem as máscaras e a salvação que precede a criação a redimir. Acreditamos ser a demanda desse novum, particularmente em Agamben, que, de resto, é, talvez a par de Nancy, o menos «reformista», a movê‑los e não um quietismo qualquer. Embora, para sermos justos, a impressão desse quietismo só transpareça da leitura que Galindo Hervás faz dos pensadores impolíticos na medida em que os compara com pensadores mais ativistas, digamos assim, nunca defendendo (nem podia) estar a tratar de filósofos quietistas. A nosso ver, aquilo que os pensadores impolíticos verdadeiramente se esquecem é de dar substantividade ao messianismo, quiçá por pudor teológico, ou melhor, irreligioso, quando esse messianismo não pode irromper sem a quota‑parte da criatura, mas também, sejamos claros, sem o amparo da graça divina. Sem este sintagma é que nos parece que a justa demanda final dos impolíticos, à parte outros erros processuais, se torna impotente.

Em suma, o presente ensaio é um levantamento crítico judicioso sobre o pensamento impolítico, uma verdadeira obra de referência sobre o mesmo, mas também um precioso legado da forma como autores liberais, apesar de tudo afins à crítica impolítica, leem a esfera política.

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