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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.52 Lisboa dez. 2016

 

RECENSÃO

 

Fortalecimento ou derrocada da «onda rosa» na América Latina?

 

Wagner Martins dos Santos

Doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco, Brasil, e mestre em Relações Internacionais pela PUC-Minas.

 

Em dezembro de 2011, 33 chefes de Estado da América Latina e Caribe se reuniram na capital da Venezuela, Caracas, para formalizarem um novo organismo regional: a Comunidade de Estados Latino‑Americanos e Caribenhos (CELAC). O evento foi considerado tão importante que chegou a ser julgado, pelo então presidente Hugo Chávez, como sendo o evento mais importante ocorrido nas Américas nos últimos cem anos. Foi um acontecimento relevante não apenas por nortear os planos para a América Latina e Caribe para o século XXI, mas sobretudo por revelar as vozes que não foram ouvidas – particularmente os Estados Unidos e o Canadá. Este fato ganhou notoriedade por ocorrer numa região considerada, desde a «doutrina Monroe» em 1823, o «quintal» dos Estados Unidos. Desde o século XIX, a América Latina tem servido como uma «oficina política» da potência norte‑americana, desenvolvendo e aperfeiçoando políticas que, posteriormente, são projetadas em escala global. Em outras palavras, a América Latina é parte da estratégia americana, a ponto de o surgimento de um organismo regional sem a presença norte‑americana ser considerado um fato significativo para suas ambições regionais e globais. Nas palavras do presidente nicaraguense, Daniel Ortega, o evento decretou a sentença de morte da «doutrina Monroe»1(p. 1).

Mas a insatisfação com a forte presença americana nos rumos econômicos e políticos na região latino‑americana não iniciou com a criação da CELAC. A grande força motora por trás de sua criação encontra suas raízes em um bloco de partidos, movimentos, lideranças e governos de esquerda eleitos na região desde o final da década de 1990. A esse fenômeno cunhou‑se a expressão «onda rosa»2. Todavia, mais do que um fenômeno, o fato revela o ineditismo da esquerda latino‑‑americana, assolada, até então, pela dificuldade em se inserir e interagir no sistema político regional e na disputa democrática. O número elevado de países, no entanto, revelou um novo momento político, com implicações nas relações internas e externas regionais.

É com esse exemplo que Tom Chodor inicia seu livro Neoliberal Hegemony and the Pink Tide in Latin America: Breaking Up With TINA?, publicado em 2015 pela Palgrave Macmillan. Chodor entende que, apesar de suas limitações e desafios, a «guinada à esquerda» veio para ficar e está plenamente estabelecida na economia política e nas relações internacionais, de modo que seu estudo de faz necessário. No entanto, o assunto ainda tem sido ignorado e negligenciado pela academia, a ponto de grande parte da literatura continuar analisando o fenômeno de maneira descritiva e superficial. Em contraste, o livro analisa a situação política regional mediante uma estrutura teórica elaborada pelo autor que permite o aprofundamento do tema e seus efeitos nas políticas regionais. Mais que isso, o autor enfatiza que o real propósito da «onda rosa» é o de uma construção alternativa à hegemonia norte‑americana. Ao analisar dois casos – Brasil e Venezuela –, Chodor argumenta que a Revolução Bolivariana é um radical projeto contra hegemônico, e que a governança política efetivada pelo Partido dos Trabalhadores (PT) no Brasil é uma «revolução passiva», ao passo que os dois projetos se situam em uma esfera comum, tanto em nível regional quanto global, e ambos trabalham para construir uma alternativa à hegemonia americana.

O primeiro capítulo do livro é dedicado ao estabelecimento de uma estrutura teórica elaborada pelo autor para amparar sua análise. Nesse caso, a economia política internacional aos moldes neogramscianos é considerada por ele como sendo «a mais profunda e abrangente relação estratégico‑política na comunidade global do início do século 21»3. Tanto as abordagens realista e liberal são rapidamente expelidas por serem consideradas incapazes, ou, não raras vezes, limitadas em sua capacidade para solucionar problemas do mundo, além de ignorar questões fundamentais de classe e exploração. Nesses termos, o materialismo histórico baseado nos trabalhos de Antonio Gramsci é apresentado como a melhor forma para se estudar a economia política internacional. Para Chodor, a chave para essa abordagem é a «ontologia social radical». A natureza humana é definida pelas suas relações sociais e não carregada de valores pré‑determinados e a‑históricos. Essa posição implica que a realidade não é estruturada por «leis eternas» e cíclicas determinadas pela imutável natureza humana, mas pode ser radicalmente modificada mediante a ação humana coletiva (p. 31). O capítulo ainda tece pontuais críticas à perspectiva anarquista/pós‑hegemônica, ao mesmo tempo que sumariza os argumentos neogramscianos defendidos pelo autor.

 

A «ONDA ROSA» COMO ALTERNATIVA AOS PRECEITOS NEOLIBERAIS

Com a elaboração de sua base teórica, Chodor passa a examinar a «onda rosa», iniciando com uma análise concisa dos principais eventos políticos e econômicos do século XX ocorridos na América Latina. Embora seja numeroso o número de estudos sobre esse assunto4, a importância desse capítulo repousa, sobretudo, na interpretação gramsciana dos contextos históricos. Chodor aplica sua estrutura teórica para analisar a ascensão e queda da hegemonia neoliberal, fornecendo uma análise incisiva que prepara o leitor para os próximos capítulos. O neoliberalismo é retratado como um projeto complexo que ganhou notória hegemonia em alguns mais pela sua capacidade de minimizar crises econômicas por um curto período de tempo e por sua narrativa ante‑estatal que seduz os que criticam o clientelismo e a corrupção estatal (p. 77). No entanto, a longo prazo, os efeitos do neoliberalismo foram devastadores para a maioria dos países latino‑americanos, aumentando os problemas econômicos e sociais, ocasionando uma «crise orgânica».

Como resposta a esse problema ocasionado, o autor apresenta as duas principais alternativas ao projeto neoliberal. Primeiramente, a Revolução Bolivariana, caracterizada por ele como «a tentativa incipiente de construção de uma alternativa contra‑hegemônica ao neoliberalismo e ao capitalismo global»5(p. 77). Amparado em um contexto popular de lutas históricas, a Revolução Bolivariana estaria abrindo espaço para o socialismo do século XXI. O segundo exemplo seria o caso brasileiro e a ascensão do PT, caracterizado pelo autor como «uma revolução passiva (...) que combina aspectos do neoliberalismo com as políticas neoestruturalistas desenvolvimentistas»6(p. 121). Nos dois casos, o livro cobre as dimensões políticas, sociais e econômicas de forma clara e compreensiva.

É importante destacar que, apesar de a análise do autor revelar sua clara defesa ao projeto defendido pela «onda rosa», ele também elenca dois importantes problemas que se apresentam. O primeiro seria a natureza contestável desses projetos. Embora a Revolução Bolivariana tenha inicialmente feito dura oposição aos princípios neoliberais, ela enfrenta contradições internas que estão se tornando cada vez mais claras, desacreditando e gerando certa confusão em seu real objetivo e onde quer chegar. Já no caso do pt no Brasil, a chamada «Revolução Passiva» conseguiu apenas reformas pequenas e pontuais, e não tratou os reais pontos de tensão com os princípios neoliberais. No segundo ponto, Chodor revela que a resistência da própria população em aceitar o projeto ideológico, ou seja, a maior resistência não surge propriamente em seu confronto com o neoliberalismo, mas com as próprias pessoas, que, ao experimentarem o novo contexto, percebem que ele é insustentável, ocasionando, com isso, visões alternativas que colocam em cheque a longevidade da «onda rosa».

Trata‑se de uma obra essencial para os atuais estudiosos da guinada à esquerda na América Latina e seus reflexos na política doméstica e regional. Todavia, cabe aqui ressaltar uma crítica, ciente, porém da temporalidade em que o livro foi escrito. Ao analisar os dois casos – Brasil e Venezuela –, Chodor não considera com a devida relevância o fracasso dos dois projetos que ele cita como exemplos práticos. No caso da Venezuela, o país enfrenta a maior recessão econômica de sua história, com centenas de empresas sem as mínimas condições de sobrevivência, desemprego crescente, um governo desejoso de se perpetuar no poder sem respeitar as eleições regulares – característica básica de governos democráticos – um índice de violência que levou o país a figurar entre os países mais violentos do mundo, liberdade de expressão tolhida e com ameaças de prisão aos opositores, ausência de alimentos e suprimentos básicos para sua própria população, além de outros inúmeros problemas. E, no caso brasileiro, o autor não escreveu sua obra a tempo de acompanhar a derrocada econômica e política do país, ocasionando um processo de impeachment que findou com a remoção da ex‑presidente Dilma Rousseff do poder, além dos milhões de desempregados que a adoção de políticas cada vez mais centradas no Estado e do alto índice de corrupção que se alastrou na cúpula do poder executivo. Nesses termos, como acreditar em um projeto que, ao que parece, fracassou mais do que prosperou? Como creditar algo que, em todos os casos onde foi aplicado, levou os países a sérias complicações econômicas? Apesar disso, a obra é relevante e bastante atual, cobrindo uma lacuna analítica nos atuais estudos sobre a situação política, econômica e social na América Latina.

 

BIBLIOGRAFIA

Chodor, Tom – Neoliberal Hegemony and the Pink Tide in Latin America: Breaking up with TINA? Nova York: Palgrave Macmillan, 2015.

Panizza, Francisco – «La marea rosa». In Análise de Conjuntura OPSA. N.º 8, 2006.

Weaver, Frederick Stirton – Latin America in the Global Economy: Mercantile Colonialism to Global Capitalism. Oxford: Westview Press, 2000.

 

NOTAS

1Chodor, Tom – Neoliberal Hegemony and the Pink Tide in Latin America: Breaking Up With TINA? Nova York: Palgrave Macmillan, 2015.

2Também chamada «maré rosa». Cf. Panizza, Francisco – «La marea rosa». In Análise de Conjuntura OPSA. N.º 8, 2006.

3Texto original em inglês: «the most profound and comprehensive account of politico-strategic relations in the global community in the early 21st century».

4Weaver, Frederick Stirton – Latin America in the Global Economy: Mercantile Colonialism to Global Capitalism. Oxford: Westview Press, 2000.

5Texto original em inglês: «fledgling attempt to construct a counter-hegemonic alternative to neoliberalism and global capitalism».

6Texto original em inglês: «a passive revolution (...) which combines aspects of neoliberalism with neoestructuralist developmentalist policies».

 

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