SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número52Segurança em movimento: A presença do vetor demográfico nas estratégias de segurança e defesa nacionaisFortalecimento ou derrocada da «onda rosa» na América Latina? índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.52 Lisboa dez. 2016

 

RECENSÃO

 

A importância da memória histórica. As negociações de adesão de Portugal às Comunidades contadas na primeira pessoa

 

Isabel Camisão

Professora auxiliar da Universidade de Évora. Membro do Centro de Investigação em Ciência Politica – CICP.

 

A negociação da adesão de Portugal às então Comunidades Europeias foi um processo moroso que se estendeu por vários anos. A discussão dos capítulos mais sensíveis (onde se incluía a agricultura, as pescas, ou os assuntos sociais) desenrolou‑se em inúmeras rondas negociais e reuniões técnicas, pondo à prova a perícia negocial e habilidade diplomática dos muitos intervenientes que ao longo deste período foram integrando a delegação portuguesa. Apesar do evidente interesse histórico deste processo negocial, desde logo porque o seu êxito permitiu a Portugal trilhar com segurança reforçada o caminho do desenvolvimento económico e da democracia, são poucas as obras que abordam especificamente os meandros desta negociação e menos ainda as que registam os depoimentos diretos dos negociadores que nela participaram. A obra Memórias da Adesão à Mesa das Negociações, organizada por João Rosa Lã e Alice Cunha, com edição da Book Builders, vem colmatar esta lacuna na literatura portuguesa na área dos estudos europeus. Produto de um ciclo de conferências comemorativas dos trinta anos da entrada em vigor do Ato de Adesão, o livro compila os testemunhos de trinta e cinco dos negociadores que tiveram um papel decisivo na discussão dos diferentes dossiês, abrindo assim uma janela para um marco no percurso do Portugal moderno ou, nas palavras de Luís Aires‑Barros, que assina o prefácio, para «a história do nosso país num período muito importante da evolução da nossa sociedade» (p. 11).

 

UMA VIAGEM AO PASSADO PELA MÃO DOS NEGOCIADORES

Os relatos dos intervenientes no processo de negociação da adesão de Portugal às Comunidades estão divididos em doze capítulos. A estes somam‑se, para além do habitual prefácio, uma nota de abertura escrita por João Tàtá dos Anjos, e um capítulo introdutório da autoria de João Rosa Lã, que contextualiza e descreve o projeto de investigação «Memórias da Adesão», agora transformado em livro. Coube a Alice Cunha, coorganizadora, o texto de encerramento. Ao longo das 358 páginas, os testemunhos escritos numa linguagem simples e de leitura muito agradável proporcionam ao leitor uma descrição detalhada não apenas das negociações oficiais, mas também dos episódios ocorridos nos bastidores da negociação. A opção pelo discurso direto, num registo de memória, foi acertada para uma obra cujo objetivo é permitir ao leitor recuar no tempo e acompanhar as dificuldades e os êxitos desta negociação. A obra inclui relatos que descrevem os pormenores mais técnicos e as estratégias que presidiram à definição da posição portuguesa nas diferentes matérias em discussão (inserem‑se neste grupo os capítulos dedicados aos dossiês da negociação, pp. 99‑298, e o capítulo que aborda as relações luso‑espanholas, pp. 299‑312), os antecedentes e o início das negociações (pp. 73‑99), a visão dos jornalistas que acompanharam as negociações (pp. 313‑329), e testemunhos que apresentam um olhar mais abrangente sobre a negociação e o seu contexto interno e internacional. Neste último grupo, inclui‑se, por exemplo, o capítulo que transcreve a comunicação de António Martha, à data presidente da Comissão para a Integração Europeia (CEI). A descrição que é feita do processo negocial ajuda a compreender o quão complexo foi negociar a adesão a uma organização supranacional sui generis cujo funcionamento era por muitos desconhecido. Se dúvidas houvesse, a leitura deste relato vem confirmar a distância que separa a prática da negociação da teoria que vem descrita nos manuais. António Martha partilha ainda alguns episódios interessantes, embora pouco conhecidos do público em geral. É o caso da sua nomeação para presidente da cei que, nas palavras do próprio, «Foi um acaso... um telefonema errado e uma questão de persuasão e de aventura» (p. 53); é também o caso da forma encontrada por Portugal para adiar a primeira presidência portuguesa das Comunidades (p. 70), uma decisão difícil, como reconhece, mas avisada, já que permitiu ao país amadurecer a sua experiência e conhecimento dos assuntos europeus, o que lhe veio a garantir uma presidência bem‑sucedida em 1992. Na sua intervenção, João Salgueiro (então ministro das Finanças e do Plano) faz um enquadramento detalhado do contexto e das circunstâncias que levaram Portugal a pedir a adesão às Comunidades e dos desafios que esta adesão lhe trouxe. A par com a descrição, é percetível uma análise crítica sobre os últimos trinta anos que ressalta ser crucial aprender com as «Experiências e ensinamentos da adesão à União Europeia» (título do capítulo) e alerta para o facto de Portugal ter vindo a desprezar «na prática, a necessidade de permanente afirmação no novo contexto europeu» (p. 45). Ainda assim, João Salgueiro, em contracorrente com um discurso eurocético que tem ganho cada vez mais adeptos, não faz de Bruxelas o bode expiatório das dificuldades que Portugal enfrenta atualmente, notando antes que estas resultam «do adiamento de soluções que só dependem de nós próprios» (p. 49). Em «O day after», Vítor Martins, antigo secretário de Estado para a Integração Europeia, sublinha o caminho que foi necessário percorrer para credibilizar a nossa participação nas Comunidades e aproveitar as vantagens que desta resultaram para Portugal, no nível interno e externo, sem descurar «(u)ma participação na CEE interventiva e com iniciativa» e «(u) m compromisso total com a integração europeia» (pp. 338‑339). No capítulo final, Alice Cunha abandona o registo de memória, propondo‑se refletir sobre o interesse que a integração europeia despertou nos académicos, conduzindo a uma nova área de estudo – os estudos da União Europeia (p. 346). No que respeita a Portugal, tal reflexão é reduzida em parte à apresentação de uma lista, necessariamente não exaustiva, de trabalhos que abordam a temática europeia, ficando a faltar, por exemplo, uma análise crítica sobre o contributo das obras referidas para a afirmação dos estudos europeus, e uma avaliação da evolução do ensino desta área nas nossas universidades, sobretudo dos cursos conferentes de grau (talvez porque um exercício deste tipo não se enquadre nos propósitos deste livro). É, ainda assim, um ponto de partida interessante para uma reflexão mais aprofundada que urge fazer sobre o estado da arte desta área disciplinar no nosso país.

 

UM CONTRIBUTO MUITO VÁLIDO PARA A PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA

Em suma, num momento em que cresce o euroceticismo e em que muitos, não só em Portugal mas também no resto da Europa, questionam a relevância da União Europeia (veja‑se o resultado do referendo no Reino Unido que confrontou a União com a iminente saída de um Estado‑Membro), o registo das memórias da adesão, a par com uma avaliação crítica da importância do processo de integração para a modernização e consolidação democrática de Portugal fazem desta compilação uma obra de grande relevância e atualidade. Este livro vem também (re)lembrar que a adesão não foi o fim, mas o início de um processo que exige trabalho contínuo, ideia patente nas palavras de Vítor Martins: «No pós‑adesão (…) (j)á não temos resultados que se cristalizam, mas uma negociação permanente, dinâmica em todas as áreas, o que é muito mais exigente» (p. 334). Esta é, portanto, uma leitura recomendada não só para os que se interessam pelas temáticas europeias, mas para todos os que desejam compreender melhor as circunstâncias e o contexto histórico da adesão de Portugal. Este livro vale ainda, como notou João Salgueiro, por preservar uma memória «já em risco de desaparecimento», ao mesmo tempo que proporciona «um quadro de avaliação dos desafios que o projeto europeu hoje representa» (p. 21).

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons