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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.52 Lisboa dez. 2016

 

Identidade e poder na política externa da Indonésia: de Sukarno a Suharto

Identity and power in Indonesia’s foreign policy: from Sukarno to Suharto

 

Pedro Emanuel Mendes

Doutor em Relações Internacionais pela FCSH-NOVA, mestre em Sociedades e Políticas Europeias pelo ISCTE e licenciado em Relações Internacionais pela Universidade Lusíada. E investigador do CEPESE da Universidade do Porto, professor auxiliar na Universidade Lusíada e professor convidado na Porto Executive Academy (PAE) do Instituto Politécnico do Porto. As suas principais áreas de interesse, com diversos trabalhos publicados, são a política externa portuguesa, as teorias das relações internacionais, a análise da politica externa dos estados e a teoria política.

 

RESUMO

Este artigo desenvolve uma análise da política externa da Indonésia durante as presidências de Sukarno e Suharto. Começa por fazer uma breve contextualização histórica sobre os principais fatores materiais e ideacionais que caracterizaram a construção do Estado indonésio. Seguidamente, traça um quadro analítico das ideias e doutrinas que influenciaram a política externa indonésia. O seu objetivo fundamental é o de contribuir para iluminar o processo de construção e adaptação identitária da política externa da Indonésia neste período.

Palavras-chave: Indonésia, política externa, identidade, Sukarno, Suharto.

 

ABSTRACT

This article develops an analysis of Indonesia’s foreign policy during the presidencies of Sukarno and Suharto. It starts with a brief historical background on the main material and ideational factors that characterized the construction of the Indonesian state. Next, it outlines an analytical framework of the ideas and doctrines that influenced the Indonesian foreign policy. Its main objective is to contribute to shed some light on the process of identity construction and adaptation of Indonesia’s foreign policy in this period.

Keywords: Indonesia, foreign policy, identity, Sukarno, Suharto.

 

INTRODUÇÃO

A política externa de um Estado é, antes de tudo, uma política de identidade. É esta identidade que vai fundamentar o seu posicionamento hierárquico e normativo na sociedade internacional, as suas alianças, amigos e inimigos, e os seus interesses e aspirações essenciais. As assunções básicas sobre a identidade de um Estado estão embebidas na história, tradição, cultura e mitos nacionais. O que significa que, normalmente, mudam lentamente. Todavia, a identidade não é imune à mudança. De facto, a identidade de um Estado sofre mudanças à medida que os seus líderes e elites a reinterpretam e, sobretudo, quando importantes acontecimentos externos e internos provocam alterações que a afetam e reconstroem.

A política externa tem uma particular dimensão simbólica e exerce uma função essencial na imaginação sociopolítica da identidade coletiva do Estado, designadamente na construção identitária dos estados modernos pós‑coloniais, como aconteceu com a Indonésia.

Deste modo, para uma boa compreensão da política externa devemos prestar atenção não só aos tradicionais elementos de poder material dos estados (recursos económicos, demográficos, geográficos, tecnológicos, etc...), mas também aos seus elementos identitários e culturais. Assim, é imperioso compreender as ideias, costumes, instituições, mitos e rituais que identificam a especificidade cultural e identitária dos estados. Estas expressões da identidade nacional influenciam a forma como os decisores veem o passado e o presente da política externa e são indicativas das suas escolhas e ações políticas futuras. Por outro lado, quando suficientemente internalizados, estes fatores ideacionais (culturais, identitários, ideológicos e normativos) passam a fazer parte da cultura política e do estilo nacional da política externa do Estado.

Este artigo elabora uma análise da política externa da Indonésia durante as presidências de Sukarno e Suharto. Em primeiro lugar, faz uma breve contextualização histórica sobre os principais fatores materiais e ideacionais que caracterizaram a construção do Estado indonésio. Em segundo lugar, traça um quadro analítico das ideias e doutrinas da política externa indonésia neste período. Parte da problemática da identidade e da necessidade de compreendermos a interligação entre a política interna e a política externa, bem como a relação entre fatores materiais e ideacionais na definição da política externa dos estados. Neste quadro, procura iluminar o processo de construção identitária da política externa da Indonésia. A questão fundamental que coloca é: quais as principais ideias que caracterizaram a continuidade e mudança da identidade e poder da política externa indonésia neste período?

Ao tentar encontrar respostas para esta questão, pretende contribuir para uma melhor compreensão sobre os fatores materiais e ideacionais envolvidos no processo histórico da construção do Estado indonésio e, deste modo, clarificar algumas das razões que concorreram para que a Indonésia se transformasse no Estado hegemónico do Sudeste Asiático.

 

CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DA INDONÉSIA: FATORES MATERIAIS E IDEACIONAIS

A Indonésia é um Estado complexo e com várias tensões fraturantes. De uma forma sintética podemos começar por dizer que estas tensões derivam das suas particulares circunstâncias materiais e culturais. Com efeito, é comum começar por sublinhar a grande diversidade étnica, cultural e identitária dos vários povos que compõem a Indonésia. Todavia, para além dessa importante marca distintiva, o que explica melhor a construção do Estado‑arquipélago indonésio é a forma como determinados grupos e indivíduos dominantes têm conseguido impor a sua marca no curso da história contemporânea da Indonésia. A invenção da Indonésia caracterizou‑se pela existência de uma cultura de estruturação política muito particular, em que determinados indivíduos, selecionados através de um sistema de patronagem, desempenhavam um papel incomensuravelmente mais importante do que na grande maioria das sociedades ocidentais e outras sociedades do Sudeste Asiático.

Esta cultura política peculiar está bem presente nos dois fatores essenciais que marcam o processo histórico da construção do Estado moderno. O primeiro destes fatores é o seu processo de desenvolvimento. Aqui a tensão básica é entre a imensa maioria de pobres indonésios e uma minoria, a extremamente rica elite civil e militar indonésia. Esta tensão entre ricos e pobres foi ampliada devido ao papel que a corrupção desempenhou no processo de crescimento económico indonésio e pelo consequente aprofundamento da desigualdade na distribuição da riqueza ao longo da segunda metade do século XX.

O segundo fator reside no papel que as Forças Armadas desempenharam na sociedade e no processo político indonésio1. As Forças Armadas Indonésias (ABRI) sempre constituíram uma das partes mais significativas do sistema político indonésio. Esta importância das Forças Armadas deu origem à «doutrina dwifungi». Os militares desempenhavam a dupla função de manter a segurança e a ordem, bem como de participar no dia a dia dos assuntos da governação. O que significava que na Indonésia os militares eram também decisores políticos2. As ABRI foram uma peça‑chave das políticas de imposição da hegemonia política e de segurança do Estado, tanto ao nível interno como ao nível internacional.

Contudo, estes fatores principais que definem a sociedade política indonésia dificilmente conseguem ser compreendidos através de explicações ou de modelos monocausais clássicos.

Mesmo os aspetos étnicos e culturais, embora importantes, também não são, só por si, fatores que consigam explicar completamente as características do Estado indonésio. Isto significa que para tentar obter uma visão rigorosa da Indonésia é necessária uma abordagem multidimensional. Ou seja, uma análise política do Estado indonésio, ainda que sintética, deve assumir uma perspetiva eclética face aos tradicionais modelos de análise política e, sobretudo, uma visão integrada entre os fatores materiais e ideacionais3.

Comecemos pelos óbvios aspetos materiais e geopolíticos. Com uma população de mais de 257 milhões de habitantes, a Indonésia é o maior país de predominância muçulmana do mundo, e o quarto país mais populoso em termos absolutos4. A Indonésia é, com mais de 17.500 ilhas, o maior arquipélago do planeta e, com uma área de 1.904.569 quilómetros quadrados, é o décimo quinto país em termos de superfície5. Situada entre dois continentes, a Ásia e a Oceânia, a Indonésia é um Estado transcontinental com uma posição geopolítica ímpar. Rica em produtos minerais como o gás, estanho, cobre e ouro, é também um dos maiores produtores de petróleo bruto mundiais. Atualmente, a Indonésia faz parte do G20 e é a décima maior economia do mundo em PIB PPC (paridade de poder de compra), existindo estimativas que indicam que passará a ser a sétima economia mundial em 20306. Entre as décadas de 1980 e 1990 cresceu a um ritmo de sete por cento ao ano. Apesar de ter sofrido uma crise económica importante, em 1997, a Indonésia recuperou e na última década cresceu a uma média de 5,7 por cento ao ano7. Em 2000, o seu PIB ocupava o 27.º lugar mundial, hoje ocupa o 16.º lugar8.

Apesar de todo este potencial material, a Indonésia encerra várias e complexas tensões, muitas vezes contraditórias e potencialmente explosivas. Estas tensões, em muitos casos antigas, definem uma sociedade caracterizada por importantes oposições. Por exemplo, a oposição entre muçulmanos devotos e muçulmanos nominais; a oposição entre javaneses e não javaneses; a oposição entre as mais de trezentas culturas dentro do Estado; a oposição entre o governo centralizador e o separatismo regional; a oposição entre as várias fações dentro das Forças Armadas e do governo e, finalmente, mas não menos importante, a oposição crucial entre os ricos e os pobres.

Até ao início da transição democrática a identidade política da Indonésia refletiu uma conceção de autoridade política com raízes no passado javanês pré‑colonial e na sua restruturação durante o período colonial. Deste modo, foi a reificação de valores políticos selecionados destes dois períodos, posteriormente reconstruídos e adaptados à modernidade, que tornaram a cultura política indonésia peculiar9. Uma cultura política em que a participação política voluntária sempre foi muito baixa por contraste a uma politização obrigatória muito forte. Ou seja, a vida política na Indonésia era dominada pelos aparelhos das instituições políticas através de uma imposição vertical do poder. Não existia uma verdadeira participação livre e democrática e, mais do que as ideologias, eram as personalidades políticas que se destacavam no jogo político indonésio.

Paralelamente, existem na cultura política indonésia a institucionalização de princípios culturais, como o Abangan10, e ideológicos, como o Pancasila11, que estruturam a sociedade política indonésia. Na verdade, desde o início da construção do Estado indonésio que o Pancasila funciona como uma predominante ideologia horizontal na sociedade política indonésia12.

Existiu ainda um conjunto de estruturas normativas, políticas e institucionais que se impuseram ao longo da construção do Estado indonésio moderno e que, em larga medida, definiram a identidade e a cultura política indonésia. Estas estruturas podem ser sintetizadas através de cinco marcos principais: primeiro, a Constituição fundadora do Estado de 1945; segundo, a subserviência do parlamento relativamente ao governo e muito especialmente ao líder presidencial, onde está incluído o natural culto da personalidade do chefe; terceiro, a manipulação e controlo do sistema partidário pelo governo; quarto, a não independência e corrupção do sistema judiciário; quinto, o singular papel formal e informal das Forças Armadas, da polícia e dos vários serviços de inteligência no sistema político indonésio13.

 

IDEIAS, VISÕES DO MUNDO E DOUTRINAS DA POLÍTICA EXTERNA INDONÉSIA: SUKARNO E SUHARTO

De um ponto de vista externo, a Indonésia sempre foi o Estado hegemónico do Sudeste Asiático. Com efeito, embora em níveis diferentes e com vários graus de conforto, todos os vizinhos da Indonésia viveram sobre a sua sombra geoestratégica. Neste sentido, a Indonésia foi, e continua a ser, o Estado pivot14 político e económico desta região, como ficou provado com a sua liderança na formação da Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN). Por outro lado, de um ponto de vista de segurança regional, a Indonésia é o Estado‑chave do Sudeste Asiático15. Desempenhando este papel tão importante e dominante, a Indonésia passou as últimas seis décadas como um Estado relativamente independente de pressões externas.

Deste modo, recordando a tradição particular da história javanesa onde o monarca tinha um estatuto semidivino, durante largos períodos a Indonésia não sentiu, nem deu grande importância, a qualquer tipo de pressão externa ao seu poder hegemónico regional. Neste sentido, apesar de ocasionalmente o Governo indonésio ter tido de aceitar reconhecer alguns impactos exteriores, particularmente na sua economia, os seus governantes sempre construíram uma cultura política nacionalista com fortes tendências para travar qualquer tipo de intervenção externa na Indonésia.

Com efeito, a sua estrutura política, as suas instituições e as suas práticas refletem aquilo que pode ser interpretado como uma maneira indonésia de gerir os seus assuntos políticos. Deste modo, de um ponto de vista ideacional, as elites indonésias sempre tiveram uma visão do mundo em que a Indonésia ocupava um lugar central e relativamente independente do resto do sistema internacional. A Indonésia, como outros tradicionais e vastos impérios multiétnicos transcontinentais, construiu uma imagem histórica e uma identidade política muito autocentradas na edificação da sua ordem política imperial regional. Desde o século XIII que o conceito político de Nusantara significa a ideia de uma unidade política que centralizasse o poder do Sudeste Asiático no arquipélago. Isto significa que historicamente a Indonésia sempre funcionou como o centro do seu mundo. Esta tradição de hegemonia regional determinou uma cultura política que produziu um padrão histórico na política externa indonésia caracterizado por um nacionalismo unitário pouco suscetível a influências externas, nomeadamente ocidentais. O que também não é alheio ao facto de não ter existido nenhum precedente histórico de uma unidade política ou tradição cultural e histórica unitária pré‑colonial que correspondesse às atuais fronteiras da Indonésia16. Pelo contrário, a existência de visões e tradições divergentes sobre as fronteiras e identidade da Indonésia sempre expuseram as dificuldades da manutenção da integridade do Estado e impeliram a Indonésia para a defesa intransigente da sua unidade geopolítica. Daqui resultou um dos princípios estruturantes do Estado indonésio: o Wawasan Nusantara, ou seja, o sentido de unidade do Estado‑arquipélago.

Por outro lado, não podemos esquecer que a Indonésia, até se autodeterminar completamente (1949), passou por várias ocupações políticas externas (Holanda, 1800‑1942; Japão, 1942‑1945; Reino Unido, 1945‑1946) e por uma violenta Revolução Nacional (1945‑1949), quando novamente forças ocidentais tentaram travar a sua independência, inicialmente proclamada em 194517.

Deste modo, a primeira ideia que temos de considerar para compreendermos a política externa da Indonésia é a ideia de independência. Com efeito, logo em 1948 o Vice‑Presidente indonésio, Mohammad Hatta, definiu que a Indonésia prosseguiria uma política externa «independente e ativa». Estas ideias significavam que o Estado indonésio não iria ser «neutro» ou adotar «posições equidistantes» sobre questões internacionais, mas antes desenvolver uma política ativa e presente no palco da política internacional. Assim, a sua postura «ativa» simbolizava o empenho da política externa indonésia em participar nos esforços de construir um mundo justo e pacífico. Todavia, e acima de tudo, a política externa indonésia seria «independente»18.

Ou seja, a Indonésia iria decidir e determinar o seu posicionamento internacional de forma independente de pressões ou influências externas. Deste modo, a independência é a ideia matricial que conduz a formulação da política externa indonésia e não pode ser desligada do seu passado colonial, bem como da sua desilusão com a postura dos Estados Unidos e da URSS na sua Revolução Nacional19.

Para além dos aspetos identitários e históricos tradicionais, de longa duração, convém perceber a importância dos líderes na reconstrução identitária da Indonésia moderna. Na verdade, não podemos esquecer o papel que os líderes fundadores tiveram na construção do Estado indonésio e na definição do seu posicionamento internacional, nomeadamente Sukarno e Suharto. Até porque, na Indonésia, pese embora as ideias e propostas em matéria de política externa pudessem partir dos ministros dos Negócios Estrangeiros, a última palavra era sempre a do Presidente do Estado. Isto significa que a mundividência e a cultura política dos líderes indonésios irão influenciar decisivamente a doutrina da política externa da Indonésia.

Como bem observou Anderson, enquanto Sukarno tinha uma cultura política embebida nos movimentos nacionalistas e anticolonialistas, Suharto desenvolveu a sua cultura política como oficial das Forças Armadas. Suharto formou a sua carreira dentro do Estado, especialmente dentro das estruturas de segurança interna. Contrariamente, Sukarno nunca teve, ao longo da sua formação, qualquer tipo de carreira na função pública20. Consequentemente, os percursos profissionais, políticos e ideológicos dos dois líderes indonésios vão influenciar as suas estruturas ideacionais e foram importantes na formação das suas visões do mundo e na definição da inserção internacional da Indonésia.

Deste modo, a política externa de Sukarno reflete muito as suas características culturais e identitárias de líder nacionalista. Sukarno foi um nacionalista com uma visão idealista, e até um pouco romântica, que tentou viver e fazer política à altura da sua qualidade de pai fundador da república e que não tolerou qualquer tentativa de influência externa na sua doutrina de afirmação nacionalista e anti‑imperialista21. Esta visão, como veremos, levou Sukarno a exageros e a conflitos que acabará por pagar caro.

Suharto, por sua vez, faz refletir na política externa indonésia as suas características de pragmatismo e racionalidade, típicas de um alto funcionário. A doutrina de Suharto para a política externa indonésia foi norteada pela sua preocupação com a segurança, ordem e estabilidade. Esta visão fez com que grande parte dos seus anos iniciais na presidência da Indonésia tivessem sido ocupados com a reversão dos excessos nacionalistas da política externa de Sukarno.

 

O NACIONALISMO AGRESSIVO E O VANGUARDISMO ANTI-IMPERIALISTA DE SUKARNO

A orientação da política externa indonésia durante a década de 1950 e inícios da década de 1960 foi influenciada pela instituição da Democracia Guiada (1957‑1965). De um ponto de vista interno, esta ideia de uma democracia bonapartista, esquerdista-nacionalista, conduzida por Sukarno, tinha como base o conceito político de Nasakom e estabeleceu um regime presidencialista com um sistema multipartidário controlado e com um regime económico centralizado e altamente intervencionista.

Após o fim do ciclo da Revolução Nacional, a Indonésia experienciou um ciclo político em que tentou instituir um regime demoliberal parlamentar multipartidário. Este período (1950‑1957) foi marcado por uma grande instabilidade política. Em 1956, Sukarno estava convencido que a democracia parlamentar não servia os propósitos da república. Sukarno criticou a sua natureza inerentemente conflitual e afirmou que esta era contrária às noções de harmonia e consenso que fariam parte da natureza da Indonésia22. Então, propôs um modelo de governo que integrasse o nacionalismo, a religião e o comunismo de uma forma cooperativa. Assim surgiu o conceito de Nasakom. O seu principal objetivo era o de tranquilizar os principais atores políticos, designadamente as Forças Armadas, os nacionalistas do Partido Nacionalista Indonésio (PNI), os partidos islâmicos (Masyumi e Nahdlatul Ulama) e os comunistas do PKI23.

Sukarno definiu um Konsepsi Nasional (Conceito Nacional) de governação em que defendia a importância da revolução, da ideologia e da liderança nacional. Sukarno acreditava que só seria possível introduzir as mudanças radicais necessárias na Indonésia através de mecanismos revolucionários que tivessem por base uma ideologia nacional‑progressista e fossem promovidos por uma forte liderança nacional. Esta ideologia nacional‑progressista baseava‑se nos princípios contidos na Constituição de 1945 e no Manipol/USDEK. Manipol era um acrónimo para Manifesto Político que refletia e interpretava o Pancasila. USDEK era um acrónimo para os cinco princípios‑guia da governação de Sukarno: a Constituição, o socialismo à Indonésia, a democracia guiada, a economia guiada e a identidade indonésia.

De um ponto de vista do seu posicionamento internacional, a Indonésia definiu uma ideia estrutural para a sua política externa: Sukarno adotou uma atitude neutralista face a um engajamento declarado a um dos blocos do sistema bipolar. Claro que não podemos esquecer que a Indonésia neste período desenvolveu uma relação de proximidade com a União Soviética e a República Popular da China, com óbvios prejuízos nas suas relações com o Ocidente24. Todavia, a ideia mais marcante da política externa de Sukarno foi a do lançamento do terceiro-mundismo não-alinhado, ideia que a Indonésia defendeu e patrocinou na Conferência de Bandung realizada na Indonésia entre os dias 18 e 24 de abril de 1955. Aqui, os líderes de vinte e nove estados asiáticos e africanos fizeram aprovar os seus «Dez Princípios».

Estes princípios foram mais declarativos do que efetivos. Todavia, na época, serviram para marcar uma posição contra o colonialismo e, posteriormente, em 1961, para institucionalizar o Movimento dos Países Não‑Alinhados (MPNA). Neste contexto, a Indonésia – juntamente com a Índia, Egito e Jugoslávia – foi um dos líderes do MPNA. Este movimento, mais do que o neutralismo e a defesa de uma posição equidistante face aos blocos da Guerra Fria, foi importante por introduzir a ideia sobre a necessidade de uma nova ordem internacional, livre do imperialismo e do neocolonialismo. Neste quadro, convém sublinhar que Sukarno desenvolveu um conjunto de ideias vanguardistas anti‑imperialistas que alimentaram a sua visão sobre a necessidade de desenvolver uma aliança entre as «Novas Forças Emergentes» (NFE) como contraposição às «Velhas Forças Estabelecidas» (VFE). Sukarno defendeu que as NFE deveriam desenvolver políticas vanguardistas e revisionistas da ordem internacional definida e sustentada pelas potências ocidentais (VFE) que, na sua ótica, continuavam a desenvolver políticas neocoloniais e imperialistas (NEKOLIM).

De um ponto de vista regional, a ideia mais relevante da política externa de Sukarno foi a da Konfrontasi (confrontação), que teve início com a questão de Irian/Java Ocidental contra a Holanda e que ganha relevo, sobretudo, contra a Malásia. Esta política de confrontação baseava‑se na tentativa de impedir o nascimento de um poder regional que pudesse ombrear com o seu. A Indonésia foi muito hostil à formação da Federação da Malásia porque a percecionava como um plano neocolonial do Reino Unido para manter a presença britânica militar e o seu domínio político na região25.

Depois de várias tentativas sem sucesso para conseguir obter a bênção indonésia, a Malásia foi finalmente formada em setembro de 1963. A resposta de Sukarno foi o lançamento de uma campanha anti‑Malásia que durou aproximadamente três anos e incluiu propaganda antibritânica, sanções económicas e ataques militares contra alvos malaios e britânicos. Esta estratégia foi levada a cabo apesar de um amplo apoio internacional à recém‑estabelecida Federação Malaia, o que demonstra a visão autonomista da Indonésia relativamente a pressões externas. Claro que uma das razões para esta confrontação com a Malásia dizia também respeito ao eterno problema de tentar travar os riscos de fragmentação do Estado unitário indonésio.

Neste período, a política externa indonésia era percecionada como ofensiva, radical e irresponsável26. A política de confrontação causou danos externos na credibilidade internacional indonésia e teve um desastroso impacto económico, nomeadamente na retração do investimento estrangeiro na economia indonésia. Os Estados Unidos, o FMI e o Banco Mundial pressionaram a Indonésia e caucionaram o seu apoio financeiro ao fim da política de confrontação anti‑Malásia. A verdade é que em 1965 a política de confrontação absorvia cerca de 10 por cento do PIB indonésio só em atividades militares. O fim dos apoios financeiros ocidentais fez com que a Indonésia deixasse de ter reservas de moeda estrangeira e se tivesse de confrontar com grandes dificuldades na importação de bens. Em 1965, em resultado das políticas da Democracia Guiada, a inflação atingiu um recorde de mais de 600 por cento e a Indonésia esteve à beira do colapso económico27. O ambiente político e económico tornou‑se bastante instável e inseguro e propiciou uma ascensão espetacular da influência do Partido Comunista Indonésio (PKI) em Jacarta. Tão espetacular que, aproveitando o descalabro económico e a onda de descontentamento geral, o PKI fez parte de um golpe de Estado, liderado por militares insatisfeitos, para assumir o poder em outubro de 1965. Esta tentativa teve uma resposta imediata das Forças Armadas nacionalistas que, lideradas pelo então major‑general Suharto, começam uma campanha de eliminação dos antagonistas do novo regime focalizado no inimigo comunista (PKI)28. Esta campanha de eliminação do perigo comunista traduziu‑se numa experiência de violência política sem precedentes e marcou profundamente a Indonésia.

 

O ANTICOMUNISMO E PRAGMATISMO DESENVOLVIMENTISTA DE SHUARTO

Com a subida ao poder do general Suharto, em 1965, centenas de milhares de pessoas, na sua maioria apoiantes rurais do PKI, perderam a vida numa operação onde 300 mil alegados comunistas foram assassinados. Nenhuma outra nação experienciou uma campanha tão violenta e em tão grande escala contra uma fação política. Esta campanha de aniquilação do PKI, na altura o terceiro maior partido comunista mundial, marcou uma viragem na história global do comunismo. Também do ponto de vista identitário marcou profundamente a Indonésia quer ao nível interno, quer ao nível do seu posicionamento internacional anticomunista.

Por outro lado, esta campanha de violência e aniquilação vai marcar a cultura e o estilo das ABRI29. Com efeito, esta relativamente habitual solução violenta e militar na Indonésia vai determinar a maneira de a Nova Ordem dominar os adversários. Esta cultura sistemática da força vai produzir um histórico de poder e impunidade das ABRI, tanto ao nível interno como externo. Será esta cultura, muito focalizada na segurança e defesa da unidade territorial e na extrema intolerância face aos dissidentes, que dará origem à articulação de uma particular doutrina militar designada «Defesa Total do Povo»30.

Basicamente, esta doutrina defendia a necessidade de envolvimento e mobilização de milícias para o esforço de guerra contra os inimigos internos do Estado unitário indonésio. Esta cultura vai estar no centro da construção do Estado moderno indonésio durante todo o período da Nova Ordem e implicou sempre uma justificação política primordial: o combate face à possível fragmentação da unidade do Estado.

Após assumir o poder, Suharto rapidamente percebeu que era necessária uma mudança na política externa indonésia e empenhou‑se em tentar apagar a imagem internacional de Sukarno, baseada no vanguardismo anti‑imperial e no nacionalismo agressivo, e em construir uma nova imagem. Deste modo, a Indonésia começou gradualmente a terminar com as atividades hostis contra a Malásia e a iniciar um processo de reatamento diplomático.

Neste período, a Indonésia enfrentava sérios problemas de credibilidade junto da comunidade ocidental. Era percecionada pelos seus vizinhos regionais e pela comunidade internacional como um Estado agressivo, irresponsável e instável. Deste modo, a primeira tarefa da Indonésia era a de «reganhar a confiança das nações que tinham experienciado um mau tratamento pelos nossos antecessores»31.

Suharto e os seus conselheiros rapidamente perceberam este problema e procuraram formular políticas que pudessem projetar uma imagem de mudança e credibilidade. Deste modo, Suharto apostou em nomear para o seu Governo vários tecnocratas civis com formação económica que pudessem elaborar planos de recuperação económica e facilitassem a restauração dos elos económicos com as instituições e investidores internacionais.

Suharto jogou forte num plano de profundas reformas económicas que sinalizaram uma luz verde para o desenvolvimento do setor privado e do investimento estrangeiro. Aliás, esta preocupação do desenvolvimento económico e da criação de riqueza foram politicamente muito importantes para a Nova Ordem. Foi com isso que Suharto cimentou o seu poder e a sua elite de suporte, designadamente através da cooptação de grupos que beneficiavam privilegiadamente das suas políticas económicas.

Todavia, estas mudanças ao nível interno não eram suficientes para acalmar os seus vizinhos. Suharto tinha de complementar estas políticas internas com sinais claros de mudança na sua política externa que demonstrassem uma vontade de virar de página. Acabar com a política de confrontação e reconhecer a Malásia e Singapura eram um bom começo, mas os líderes indonésios acreditavam que era necessário dar um outro passo. Este passo essencial para definitivamente garantir a perceção de paz, estabilidade e credibilidade aos seus vizinhos e investidores estrangeiros era o de institucionalizar laços regionais. Ora isto significava criar uma organização de cooperação do Sudeste Asiático, e foi por isso que o Governo indonésio, sob liderança do ministro Adam Malik, se empenhou fortemente em promover a criação da ASEAN.

Com este projeto, a Indonésia provava estar firmemente comprometida com uma política de cooperação regional e não com uma política de conflito. Regionalmente, demonstrava aos seus vizinhos o seu empenhamento numa política de paz e cooperação. No contexto extrarregional, a ASEAN era a prova necessária para convencer os observadores internacionais que a Indonésia iria agora comprometer‑se com uma política de estabilidade que permitisse o desenvolvimento da região32.

Deste modo, em 8 de agosto de 1967, a ASEAN é criada, com sede em Jacarta, tendo como membros fundadores a Indonésia, Tailândia, Malásia, Singapura e Filipinas. Os seus principais objetivos eram os de contribuir para acelerar o crescimento económico e fomentar a paz e a estabilidade regionais. De um ponto de vista político, a ASEAN vai consagrar o princípio sacrossanto de não intervenção nos assuntos internos dos estados. Este princípio representava a confirmação de uma política de cooperação e de paz, em que as políticas externas de poder bruto iriam ser substituídas por políticas externas de comércio e cooperação económica regional33. Claro que esta nova imagem e inserção internacional indonésia não pode ser desligada do seu reposicionamento anticomunista e da aproximação aos Estados Unidos. Com efeito, apesar de permanecer como um Estado não‑alinhado, a Indonésia com Shuarto vai substituir, gradualmente, a semialiança militar e ideológica com o bloco comunista da época de Sukarno, por uma semialiança militar e ideológica com o bloco ocidental.

A partir dos inícios da década de 1970, o crescimento dos países da ASEAN nunca mais parou de acelerar e a paz e a estabilidade regional começaram a ser uma regra como nunca tinham sido no passado nesta região. Esta segurança regional contribuiu decisivamente para que o Sudeste Asiático passasse a ser durante as décadas de 1970, 1980 e 1990, uma zona emergente com grande potencial de crescimento. Apesar da crise de 1997, esta região começou a ser considerada um milagre económico34. A ASEAN foi uma história de sucesso, tornou‑se uma importante comunidade de segurança35, e constituiu um dos principais fatores de estabilidade regional. Todavia, para além da pacificação e cooperação económica regional, a ASEAN foi também um instrumento de projeção de poder e liderança regional e internacional da Indonésia.

O regime da Nova Ordem começou a assumir alguns dos ideais dos modelos tecnocráticos do desenvolvimento e da modernização das elites ocidentais. Ao fazê‑lo, facilmente convenceu o Ocidente da sua benignidade e conseguiu tomar como garantida a aceitação por parte dos decisores ocidentais do autoritarismo indonésio como um mal menor. A perceção de grande parte destes decisores era a de que a Nova Ordem, com a sua focalização no desenvolvimento, percorreria um caminho que no médio prazo faria convergir os valores indonésios com os valores da modernização demoliberal ocidental.

Neste sentido, o seu vizinho ocidental, a Austrália, sempre assumiu uma perceção oficial positiva da Nova Ordem, levando o seu primeiro‑ministro Gough Whitlam a afirmar que a região estava a ser testemunha da criação de «uma Indonésia justa e próspera (…) um exemplo de progresso e transformação social para os nossos vizinhos»36. Esta foi, aliás, a perceção dominante não só do seu vizinho ocidental, com o qual estabeleceu uma relação especial, mas da grande maioria dos estados do sistema internacional, sobretudo os economicamente mais desenvolvidos, com os quais a Indonésia começou a partilhar poderosos interesses comerciais, económicos e financeiros.

Deste modo, ao longo da década de 1990 a Indonésia diversificou as suas relações externas e solidificou uma imagem de grande potência económica emergente.

Apesar dos problemas associados ao seu modelo de desenvolvimento económico – excessivamente baseado num capitalismo amiguista, relativamente pouco competitivo e transparente – no seu período áureo, todos, tanto ao nível interno como ao nível internacional, acreditavam que o crescimento económico da Indonésia seria imparável. Assim, até à crise de 1997, a Indonésia, com a exceção «da pedra no sapato»37 que representava a questão timorense, viu o seu estatuto de potência hegemónica regional confirmado38.

Claro que o seu capitalismo baseado no amiguismo rapidamente transbordou para um capitalismo viciado no «KKN» (conluio, corrupção e nepotismo), que acabou por gerar graves problemas ao regime da Nova Ordem. Assim, na sua fase final, surgiram, ao nível interno, problemas crescentes relativos à distribuição e equidade sustentável da riqueza, assistindo‑se a uma forte erosão da legitimidade da ordem autoritária e à condenação política dos excessos de riqueza de Shuarto e da sua família39. Estes problemas foram acentuados pela incapacidade de o regime se renovar e adaptar às pressões para a mudança. Estas pressões eram não só da sociedade civil, mas também dos próprios militares, sobretudo os mais moderados e liberais que estavam descontentes com a subalternização do seu papel no Governo em prol da excessiva concentração de poder, político e económico, em Shuarto e no seu núcleo duro40.

Ao nível externo, começou a surgir uma perceção política negativa sobre a capacidade de o regime autoritário da Nova Ordem acomodar as crescentes tensões políticas, económicas e sociais na Indonésia. Esta perceção rapidamente contagiou o mundo económico e começaram a surgir problemas relativos à confiança dos mercados e às vagas de especulação predatória. Ora, a confluência destes problemas internos e externos normalmente acaba mal, como veio a acontecer. Assim, o fim da Nova Ordem originou alguns problemas graves que afetaram a imagem internacional da Indonésia, de onde se destacam os motins sociais em Jacarta e a grave crise vivida no pós‑referendo em Timor. Todavia, apesar dos problemas, a transição à democracia na Indonésia também significou a eliminação de alguns aspetos negativos na sua imagem internacional associados a práticas autoritárias. Deste modo, após o fim da Nova Ordem, a Indonésia tenta uma reconstrução da sua imagem internacional que, sem pôr em causa o seu poder hegemónico regional e a sua especificidade identitária, faz eco do seu processo, interno e internacional, de normalização normativo‑democrática.

 

CONCLUSÃO

Para compreendermos a política externa de um Estado é importante ter em consideração três passos analíticos. O primeiro é o de conhecer as suas características identitárias e culturais. O segundo é o de assumir a necessidade de uma abordagem dinâmica sobre a reconstrução das ideias e doutrinas das suas políticas externas e dos seus consequentes contextos históricos, internos e internacionais. O terceiro é o de adotar uma visão integrada entre os fatores materiais (poder) e os fatores ideacionais (identidade, ideologias). Deste modo, tendo em conta a questão colocada, podemos dizer que, em primeiro lugar, a Indonésia procurou enquadrar a construção do Estado num conjunto de princípios e fórmulas identitárias e ideológicas. Estes princípios, como o Abagan, o Nusantara e o Pancasila, foram instrumentos importantes na consolidação do Estado indonésio e na definição da sua identidade. Por outro lado, ao nível da sua cultura e sistema políticos, embora com nuances, existem alguns elementos contínuos e estruturais. Elementos como uma forte verticalização do poder político, o culto do chefe, a patronagem, a carência de participação democrática e o papel excessivo de alguns grupos e personalidades, com destaque para as Forças Armadas e o núcleo duro do gabinete presidencial. Ao nível da política externa, a ideia de independência e de uma postura resiliente e ativa nas relações internacionais, com destaque para a sua liderança regional e para as suas alianças com estados em vias de desenvolvimento podem ser considerados elementos estruturais.

Todavia, como vimos, a relativa continuidade destes elementos estruturais não pode ocultar as importantes dinâmicas de adaptação e mudança resultantes dos vários ciclos políticos que definiram a história da Indonésia neste período.

Assim, no ciclo da Democracia Guiada de Sukarno, a política externa da Indonésia é caracterizada, ao nível regional, por um nacionalismo agressivo face a influências externas e muito particularmente pela política de confrontação contra a formação da Malásia, na altura percecionada por Sukarno como uma ameaça ao seu papel de hegemon do Nusantara. De um ponto de vista global, a política externa indonésia neste período tem duas marcas principais. A primeira é a sua aproximação aos países comunistas, com particular destaque para a China de Mao, que Sukarno visitou e que o influenciou na tentativa de definição de um socialismo indonésio que, precisamente, conseguisse integrar harmoniosamente o nacionalismo, a religião e o comunismo: o modelo Nasakom. A segunda, é a do lançamento da ideia do terceiro-mundismo não-alinhado, combatente do imperialismo e do colonialismo, aquilo que designamos de vanguardismo anti-imperial. Com a subida ao poder de Suharto e a instituição da Nova Ordem, as políticas interna e externa da Indonésia sofreram revisões profundas. Ao contrário do ciclo anterior, a Indonésia vai reverter a sua aproximação ao comunismo e passar a definir‑se como um Estado anticomunista, de que resultou um afastamento relativo da China e da União Soviética e o aprofundamento das relações com os Estados Unidos. Isto significou, de um ponto de vista interno e externo, uma aproximação aos modelos de desenvolvimento capitalistas ocidentais. Da mesma forma que as ideias esquerdistas vanguardistas de Sukarno fizeram com que a Indonésia se aproximasse do bloco comunista, as ideias anticomunistas e o que designamos de pragmatismo desenvolvimentista, de Shuarto vão produzir um reposicionamento da Indonésia, aproximando‑a do bloco ocidental e dos Estados Unidos. O desenvolvimento passou a ser a pedra de toque dos governos de Suharto. Outra mudança importante resultou da necessidade de ultrapassar a imagem de um Estado agressivo e instável na região. Assim, a política externa de Suharto abandonou o nacionalismo agressivo e desenvolveu uma estratégia de estabilidade hegemónica benigna no Sudeste Asiático, cujos principais instrumentos foram a normalização das relações com a Malásia e Singapura e, sobretudo, a criação da ASEAN. Mais do que o Estado vanguardista e terceiro‑mundista, potencialmente poderoso, da década de 1950, a Indonésia transformou‑se, na década de 1990, no Estado‑pivot da região.

 

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Data de receção: 29 de setembro de 2016 | Data de aprovação: 19 de novembro de 2016

 

NOTAS

1Crouch, Harold –The Army and Politics in Indonesia. Ithaca: Cornell University Press, 1988.

2Apesar de não estarem acima da política indonésia, as abri não faziam diretamente parte do jogo eleitoral e da competição política aberta dos partidos. Todavia, as suas elites tinham uma boa consciência sobre os interesses em jogo, uma boa perceção sobre a oportunidade política e sempre foram decisivas nas transições políticas da Indonésia.

3Mendes, Pedro Emanuel – O Poder e as Ideias na Política Externa do Portugal Democrático. Porto: Afrontamento (no prelo).

4Onde 54 por cento da população têm menos de 30 anos. Mais de 141 milhões de indonésios vivem na ilha de Java, a ilha mais povoada do planeta. Estima-se que, com base na atual taxa de crescimento anual de 1,25 por cento, a Indonésia chegue aos 288 milhões de habitantes em 2050. Cf. World Population Prospects. 2015. (Consultado em: 2 de julho de 2016). Disponível em: https://esa.un.org/unpd/wpp/publications/files/key_findings_wpp_2015.pdf.

5The World Factbook. (Consultado em: 4 de julho de 2016). Disponível em: https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/rankorder/2147rank.html.

6Acharya, Amitav – Indonesia Matters: Asia’s Emerging Democratic Power. Singapura: World Scientific, 2015.

7Todavia, continuam a existir críticas ao seu modelo de crescimento. Khan, Muhammad Ehsan, et al, – «Critical constraints to growth». In Diagnosing the Indonesian Economy: Toward Inclusive and Green Growth. Londres: Anthem, 2012.

8World Bank. (Consultado em: 3 de julho de 2016). Disponível em: http://archive.data.worldbank.org/data-catalog/world-development-indicators/wdi-2015; (Consultado em: 3 de julho de 2016). Disponível em: http://es.classora.com/reports/t24369/ranking-de-los-paises-mas-ricos-del-mundo-por-pib-segun-el-bancomundial?id=243&groupCount=50&startIndex=101&version=2014.

9Philpott, Simon – Rethinking Indonesia: Postcolonial Theory, Authoritarianism and Identity. Nova York: St. Martin’s Press, 2000.

10O Abangan é um conceito cultural e religioso utilizado para definir e caracterizar a população muçulmana javanesa que pratica uma versão não ortodoxa e sincrética do islão. O Abangan define e reflete a adaptação indonésia do islão a um conjunto de crenças locais e é exemplar da capacidade indonésia em integrar elementos multiculturais num estilo muito próprio. Assim, este sistema de crenças dominante na Indonésia funde o islão com elementos do hinduísmo, do budismo e das tradições animistas. Cf. Holt, Claire (ed.) – Culture and Politics in Indonesia. Jacarta: Equinox pub., 2007; Geertz, Clifford – The Religion of Java. Chicago: University of Chicago Press, 1976.

11 Crença em um Deus; 2. Humanidade justa e civilizada; 3. Unidade indonésia; 4. Democracia guiada pela inerente e sábia unanimidade resultante da deliberação e consulta entre os seus representantes; 5. Justiça social para todos os povos da Indonésia.

12Ramage, Douglas – Politics in Indonesia: Democracy, Islam, and the Ideology of Tolerance. Londres: Routledge, 1997.

13Kingsbury, Damien – The Politics of Indonesia. Melbourne: Oxford University Press, 2002. Claro que estas estruturas foram predominantes sobretudo no regime autoritário da Nova Ordem. Assim, no século XXI a Indonésia desenvolveu reformas democráticas no seu sistema político que procuraram eliminar os vícios autoritários do seu sistema político. Todavia, o histórico e cultural «accountability deficit» persiste. Cf. Slater, Dan – «Unbuilding blocs: Indonesia’s accountability deficit in historical perspective». In Critical Asian Studies. Vol. 46, N.º 2, 2014, pp. 287-315.

14Um Estado-pivot é crucial para o sucesso da sua região, mas tem também a capacidade de afetar a estabilidade internacional. Existem nove estados-pivot:Índia, Paquistão, Turquia, Egito, África do Sul, Brasil, Argélia, México e Indonésia. Cf. Chase, Robert, Hill, Emily, e Kennedy, Paul (eds.) – The Pivotal States: A New Framework for U.S. Policy in the Developing World. Nova York: W. W. Norton & Company, 1999.

15Dibb, Paul – «Indonesia: the key to South-East Asia’s security». In International Affairs. Vol. 77, N.º 4, 2001, pp. 805-827.

16Leifer, Michael – Indonesia’s Foreign Policy. Nova edição. Nova York: Routledge, 2014.

17Ricklefs, M. C. – A History of Modern Indonesia since c. 1200. 4.ª edição. Houndmils: Palgrave Macmillan, 2008.

18Hatta, Mohammad – «Indonesia’s foreign policy». In Foreign Affairs. Vol. 31, 1952-1953, pp. 442-452.

19Weinstein, Franklin B. – Indonesian Foreign Policy and the Dilemma of Dependence: From Sukarno to Soeharto. Jacarta: Equinox, 2007.

20Sukarno era um intelectual nacionalista e vanguardista, oriundo da elite urbana javanesa, formado nas melhores escolas de influência holandesa, foi engenheiro e arquiteto. Suharto tinha origens rurais e modestas e, comparativamente com Sukarno, sempre teve um perfil relativamente introvertido e normal nas Forças Armadas até chegar ao poder. Cf. Anderson, Benedict – «Old State, new society: Indonesia’s New Order in comparative historical perspective». In Language and Power: Exploring Political Culture in Indonesia. Cornell University Press, 1990, pp. 94-120.

21Para um fresco desta perspetiva veja--se o seu discurso de 1961. Cf. «Pidato – Sukarno (Trikora) – Speech». (Consultado em: 2 de setembro de 2016). Disponível em: http://kepustakaan-presiden.perpus-nas.go.id/uploaded_files/pdf/speech/normal/soekarno2.pdf.

22O que não significa que Sukarno fosse defensor da ausência de conflito. Pelo contrário, Sukarno tinha ideias vanguardistas e revolucionárias, iminentemente conflituais, sobre a necessidade de instaurar na sociedade indonésia uma «revolução permanente» que transformasse as relações económicas e sociais tradicionais da sociedade indonésia e permitisse criar uma sociedade mais igualitária e desenvolvida. O ponto é que, no período anterior, Sukarno teve a prova que as diversas forças políticas indonésias (nacionalistas, islâmicas e comunistas) se autobloqueavam e era impossível sustentar governos estáveis que permitissem o desenvolvimento das suas políticas reformistas-socialistas para a Indonésia. No início, o Nasakom ainda foi funcionando, mas à medida que o tempo foi passando, com o PKI a ganhar mais força, e com Sukarno a desenvolver uma crescente aproximação ao bloco comunista, nomeadamente à China e ao autodesignado «eixo do poder» anti-imperialista, Jacarta-Pnom Penh-Hanoi-Beijing-Pyongyang, as elites militares, maioritariamente anticomunistas, começaram a sentir que o caminho que a Indonésia estava a seguir era contrário aos seus interesses. Claro que a lógica de competição geopolítica da Guerra Fria, nomeadamente os Estados Unidos, não foram inocentes no apoio a todos os que na Indonésia eram contra a crescente esquerdização vanguardista de Sukarno. Cf. Ricklefs, M. C. – A History of Modern Indonesia since c. 1200.

23Vickers, Adrian –A History of Modern Indonesia. Nova York: Cambridge University Press, 2013.

24Anwar, Dewi Fortuna – Indonesia in ASEAN: Foreign Policy and Regionalism. Singapura: ISAS, 1994, p. 21.

25Ibidem, p. 25.

26Esta perceção era sobretudo das potências ocidentais e dos seus aliados regionais. No bloco comunista, especialmente no movimento não-alinhado e terceiro-mundista, Sukarno e a Indonésia eram altamente considerados.

27Anwar, Dewi Fortuna – Indonesia in ASEAN, p. 37.

28Ainda hoje se discute qual o papel do PKI e de Shuarto neste golpe. Estudos recentes parecem confirmar que o golpe foi utilizado como pretexto para eliminar a influência do comunismo na Indonésia. Cf. Roosa, John – Pretext for Mass Murder: The September 30th Movement and Suharto’s Coup d’État in Indonesia. Madison: University of Wisconsin Press, 2006.

29Freek, Colombijn – «Explaining the violent solution in Indonesia». In Brown Journal of World Affairs. Vol. ix, N.º 1, 2002, pp. 49-56.

30Robinson, Geoffrey – «Indonesia: on a new course?». In Muthiah, Alagappa (ed.) – Coercion and Governance: The Declining Political Role of the Military in Asia. Stanford: Stanford University Press, 2001, pp. 226-257; Budiman, Arief (ed.) – State and Civil Society in Indonésia. Centre of Southeast Asian Studies. Monash University, Monash Papers on Southeast Asia, N.º 22, 1990.

31Malik, Adam – «Promise in Indonesia». In Foreign Affairs. N.º 46, 1968, p. 301.

32Anwar, Dewi Fortuna – Indonesia in ASEAN, pp. 45-46. Evidentemente que, mais uma vez, não podemos ignorar a lógica de blocos da Guerra Fria e o apoio dos Estados Unidos a esta nova postura institucionalista da Indonésia.

33Frost, Frank – «Introduction: ASEAN since 1967: origins, evolution and recente developments». In Broinowski,Alison (ed.) – ASEAN into the 1990s. Londres: Macmillan. 1990, pp. 1-31.

34Beeson, Mark – Institutions of the Asia--Pacific: ASEAN, APEC, and beyond. Nova York: Routledge, 2009.

35Acharya, Amitav – Constructing a Security Community in Southeast Asia. asean and the Problem of Regional Order. 2.ª edição. Londres: Routledge, 2009.

36Australian Foreign Affairs Record. Vol. 44, N.º 1, 1973, p. 97.

37Alatas, Ali – The Pebble in the Shoe: The Diplomatic Struggle for East Timor. Jacarta: Aksara Karunia, 2006.

38Claro que o excecional caso de Timor, onde pela única vez a Indonésia se viu obrigada a abdicar de uma parte do seu território, afetou o poder da política externa indonésia. Todavia, também contribuiu positivamente para a reconstrução da sua identidade pós-autoritária. Cf. Mendes, Pedro Emanuel – O Poder e as Ideias na Política Externa do Portugal Democrático.

39Ricklefs, M. C. – A History of Modern Indonesia since c. 1200.

40Vatikiotis, M. – Indonesian Politics under Suharto: Order, Development and Pressure for Change. 3.ª edição. Londres: Routledge, 1998.

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